Por que as religiões afro-brasileiras são principal alvo de intolerância no Brasil?

Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

Por Jefferson Puff

Divulgado nesta quinta-feira (21), Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, o documento reacende o debate: por que os adeptos da umbanda e do candomblé, e suas variações, ainda são os mais atacados por conta de sua religião?

somosreligiaoO tema ganhou as páginas dos jornais recentemente, em casos como o da menina Kaylane Campos, atingida por uma pedrada na cabeça em junho do ano passado, aos 11 anos, no bairro da Penha, na Zona Norte do Rio, quando voltava para casa de um culto e trajava vestimentas religiosas candomblecistas.

Também em 2015, no mês de novembro, um terreiro de candomblé foi incendiado em Brasília, sem deixar feridos. Na época, a imprensa local já registrara 12 incêndios semelhantes desde o início daquele ano somente no Distrito Federal.

A BBC Brasil teve acesso ao relatório da CCIR e ouviu especialistas sobre as razões da hostilidade contra as religiões de origem africana e o que pode ser feito.

Para eles, há duas explicações. Por um lado, o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que desde o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana; e, pelo outro, a ação de alguns movimentos neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de mitos e preconceitos para "demonizar" e insuflar a perseguição a umbandistas e candomblecistas.

Relatório e dados

Os entrevistados destacam que, pela primeira vez, a CCIR, criada em 2008, aliou os dados estaduais a números nacionais, informações de outros institutos e relatos de três diferentes pesquisas acadêmicas.

Os dados do Disque 100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011 e dezembro de 2015, a maioria registrada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), criado em 2012, registrou 1.014 casos entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões de matrizes africanas, 7,7% contra evangélicos, 3,8% contra católicos, 3,8% contra judeus e sem religião e 3,8% de ataques contra a liberdade religiosa de forma geral.

Dentre as pesquisas citadas, um estudo da PUC-Rio sugere que há subnotificação no tema. Foram ouvidas lideranças de 847 terreiros, que revelaram 430 relatos de intolerância, sendo que apenas 160 foram legalizados com notificação. Do total, somente 58 levaram a algum tipo de ação judicial.

O trabalho também aponta que 70% das agressões são verbais e incluem ofensas como "macumbeiro e filho do demônio", mas as manifestações também incluem pichações em muros, postagens na internet e redes sociais, além das mais graves que chegam a invasões de terreiros, furtos, quebra de símbolos sagrados, incêndios e agressões físicas.

Ivanir Costa, babalaô registrado há 35 anos e iniciado na Nigéria há 11 anos, está envolvido com a luta contra a intolerância há mais de duas décadas, e encabeçou a redação do relatório, como presidente da CCIR.

Ele diz que a própria ausência de dados consistentes nacionais, que dialoguem entre si, e a subnotificação dos casos, são indícios de como o tema ainda precisa ser levado mais a sério no Brasil.

"Há alguns avanços isolados em lugares como o Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, mas estamos muito aquém do que precisa ser feito neste setor", diz o religioso, que recebeu em 2014 o Prêmio Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República pelo trabalho na comissão.

Racismo e neopentecostais

Para Francisco Rivas Neto, sacerdote e fundador da Faculdade de Teologia com Ênfase em Religiões Afro-brasileiras (FTU), baseada em São Paulo e a única reconhecida pelo Ministério da Educação como formadora de bacharéis no tema, é impossível dissociar a intolerância do preconceito contra o africano, o escravo e o negro.

"Os afro-brasileiros são discriminados, preconceituados, para não dizer demonizados, por sermos de uma tradição africana/afrodescendente. Logo, estamos afirmando que o racismo é causa fundamental do preconceito ao candomblé e demais religiões afro-brasileiras", diz.

Já a pesquisadora Denise Pini Fonseca, historiadora, ex-professora da PUC-Rio e coautora do estudo que visitou os mais de 800 terreiros fluminenses, acredita que a origem da intolerância esteja muito mais conectada à crescente influência de alguns grupos neopentecostais no país.

"É claro que o racismo tem influência, mas acredito que é muito mais forte o discurso de alguns movimentos neopentecostais que são na realidade um projeto teo-político que se apropria de símbolos muito poderosos para atingir seus interesses, e que elegeram as religiões de matrizes africanas como alvo", diz.

João Luiz Carneiro, doutor em ciências da religião pela PUC-SP, especialista em teologia afro-brasileira pela FTU e autor do livro Religiões Afro-brasileiras: Uma construção teológica (Editora Vozes), defende que os dois fatores estariam completamente conectados.

"A ligação entre esses dois fatores está muito bem resolvida na academia. As razões profundas na questão racial e o discurso neopentecostal que reforça no imaginário popular que é o macumbeiro, o sujo, o que faz o mal", indica.

Para ele, é nítido o processo em que boa parte do que é produzido pelo negro brasileiro é desumanizado, desvalorizado ou considerado estranho, exótico, folclórico, e a ascensão do discurso de alguns neopentecostais que estimula a visão da religião africana como ligada ao culto ao demônio, diabo, satanás, rituais satânicos, macumba ou que fazem o mal.

Casos de intolerância

Luiz Fernando Barros, de 52 anos, já experimentou diversos exemplos de intolerância ao longo dos 37 anos em que atua como religioso da umbanda.

"Já coloquei minha roupa branca religiosa no trabalho e vi que as pessoas queriam caçoar, fazer pouco dos meus valores espirituais. Temos filhos que frequentam escola pública e não podem usar as contas (colares religiosos). Já tive estátuas quebradas no meu templo, tentativas de invasão. Uma irmã nossa foi demitida de um hotel na Zona Sul do Rio quando a gerente descobriu que ela era de umbanda. Não foi o argumento oficial, mas ficou nítido para ela", conta.

Ele foi um dos vários pais de santo que revelaram à BBC Brasil em reportagem publicada no ano passado que se viu forçado a aumentar a segurança de seus terreiro após repetidas invasões. Um deles, Pai Costa, de 63 anos e há 45 atuando como líder religioso, já tinha sofrido três invasões na época e teve de gastar R$ 4.500,00 em sistemas de vigilância.

Outro exemplo é o de Pai Márcio de Jangun, babalorixá, advogado e escritor iniciado há 36 anos no candomblé e com terreiro aberto há 15 anos. Ele diz que a intolerância pode ser sutil e parte do cotidiano, o que também configura discriminação e crime, apesar de não envolver violência física.

"Já me recusaram vender flores quando perceberam que seriam usadas em terreiro de candomblé. No transporte público, a pessoa se levanta por não querer ficar sentada do seu lado, se benze. É algo que infelizmente faz parte do cotidiano e que os praticantes de religiões africanas lidam todos os dias no Brasil", diz.

No relatório da CCIR há casos como a invasão e depredação do centro de umbanda "A Caminho da Paz", no Cachambi, na Zona Norte do Rio, em fevereiro de 2015, assim como incêndios e destruição de estátuas no Distrito Federal.

Também são documentados xingamentos contra crianças judaicas num clube de elite da Zona Sul do Rio, na Lagoa, durante as Mascabadas, olimpíadas de colégios judaicos de todo o país, e o ataque a uma professora de teatro que recebeu uma pedrada na perna aos gritos de "muçulmana maldita" uma semana após os atentados à sede da revista Charlie Hebdo, em Paris, no início do ano passado.

Papel do Estado

Um dos objetivos de aumentar o escopo do relatório da CCIR é chamar a atenção para o problema e nacionalizar o debate, além de pressionar Estados e o governo federal para a implementação de políticas públicas mais efetivas. Outra meta é cobrar a execução da legislação já existente, que tipifica o crime de intolerância religiosa.

No Rio de Janeiro, apesar de alguns avanços pontuais, os especialistas cobram a implementação de uma delegacia especializada, aprovada por lei em 2011 mas ainda sem previsão para sair do papel. São Paulo e Distrito Federal já criaram tais espaços.

Consultado pela BBC Brasil, o governo fluminense confirmou que "não há previsão para a criação" da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância como determinou a Lei Estadual 5931, aprovada em 25 de março de 2011. O governo ressaltou, no entanto, papel pioneiro com a criação do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos, em 2012, e disse que todas as delegacias de polícia do Estado estão aptas a registrarem casos de intolerância religiosa.

Na visão dos especialistas, este é justamente um dos principais problemas. "Quando a pessoa vai a uma delegacia, o policial registra a queixa como briga de vizinho, rixa, ameaça. Falha ao não aplicar a lei de intolerância religiosa, que prevê a tipificação penal adequada", diz o professor André Chevarese, do Instituto de História da UFRJ, que coordena o Laboratório de História das Experiências Religiosas.

"Além disso, juízes tendem a ser condescendentes, não punem da forma adequada. O Estado falha ainda ao não educar melhor, não incluir mais o ensino sobre África, sobre religiões de matrizes africanas, sobre a importância das culturas africanas para a construção do país", diz.

Ivanir Costa, da CCIR, diz que ao longo do tempo já presenciou a entrega de documentos às mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, e que ouviu promessas, mas até agora falta vontade política para implementar medidas nacionais mais eficientes, a exemplo do que foi colocado em prática na questão da violência contra a mulher.

"Não temos órgãos que acolham denúncias e orientem vítimas em todos os Estados. Não temos uma base de dados nacional, os números são muito discrepantes ao redor do país. Há pouquíssimas delegacias. Delegados, policiais e juízes descumprem a lei. É um cenário muito incipiente ainda", avalia.

Em Porto Alegre, marcha pede o fim da intolerância religiosa

"Intolerância religiosa é a face mais perversa do racismo”, disse hoje (21) Baba Diba de Iemanjá, sacerdote africanista e presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul, durante a Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa, que percorreu nesta quinta-feira as ruas do centro de Porto Alegre. É o oitavo ano que a caminhada ocorre na capital gaúcha no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Nesta edição, a marcha foi uma atividade do Fórum Social Temático.  A reportagem foi publicada por Agência Brasil, 22-01-2016.

Ao som de tambores, com vestimentas brancas e cantorias, diversos terreiros do Rio Grande do Sul se encontraram no Largo Glênio Peres e seguiram até o Largo Zumbi dos Palmares. “[A marcha] surgiu como ato político para dar visibilidade à intolerância religiosa e também à luta pela reivindicação de direitos, direitos sociais, pela garantia do Estado laico e também para tentar diálogo com as outas religiões”, informou Baba Diba.

O dia 21 de janeiro é uma referência a ataques sofridos por Mãe Gilda, que teve a casa invadida por grupos evangélicos após uma foto dela ter sido colocada na capa da Folha Universal com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

A casa dela foi apedrejada e o marido agredido verbalmente. Gildásia dos Santos, nome de registro, não suportou os ataques e, após enfartar, faleceu em 21 de janeiro de 2000.

Baba Diba lembrou os ataques incendiários em terreiros do entorno do Distrito Federal. Foram pelo menos três no ano passado. “Quanto mais avançamos em política pública, em discussões que tentam aproximar as tradições, o racismo muda de status e passa de velado à revelado. Aqui ainda não incendiaram terreiros, mas no país já. Por isso, precisamos estar nas ruas e fazer desse dia o dia nacional de combate à intolerância religiosa.”

A ministra das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Nilma Lino, participou da marcha e destacou o evento como um momento de celebração da força ancestral africana.

“Ainda temos de lutar muito pela tolerância religiosa. O Brasil é uma democracia, um país de diversos e todos os credos e religiões têm de ser respeitadas e ter lugar”, acrescentou a ministra.

Sobre os ataques ocorridos no Distrito Federal, Nilma Lino afirmou que a Ouvidoria do órgão tem acompanhado o caso e prestado atendimento às vítimas.

A funcionária pública Júlia Kolatayó, 37 anos, não falava de religiosidade. “A sociedade nos julga pelos olhares. Agora que tenho militado bastante na questão social e na religião africana, tenho conseguido me afirmar mais, mas é bem difícil, porque já perdi emprego, cargo, cursos." Ela foi batizada com 25 anos e sofreu resistência da família católica quando decidiu mudar de religião.

Embora não seja de religião africana, o analista de sistemas Alexandre Hahn disse que também enfrenta preconceitos por conta da religião de bruxaria Wicca. “Não é todo lugar e momento que posso dizer que sou bruxo. Quando digo, a primeira pergunta que vem à cabeça é se faço magia negra. Magia não tem cor. Se vou numa entrevista de emprego, pentagrama é sempre dentro da camiseta. Não posso mostrar. Rosário, uso aqui hoje, mas não posso usar em todo lugar.”

Michel Borges, o Pai Maicon de Oxalá, foi criado na religião africanista no município de Santa Maria. Segundo ele, a relação do terreiro com a comunidade foi construída através de uma aproximação ao longo dos anos.

“Temos a festa de Natal, das crianças, das mães. Assim, estabelecemos uma relação com as pessoas e todos respeitam.”

Maria de Fátima Rodrigues também nasceu na religião. “Minha mãe diz que eu tinha 24 dias quando passei a fazer parte da religião.” Maria de Fátima lembrou que a estratégia para estabelecer um vínculo com a comunidade foi reunir crianças em uma ação de empoderamento da cultura negra.

Fontes: BBC Brasil e Agência Brasil

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