O Verbo Entre Nós

A Boa Notícia chegou. É Natal: a Palavra se fez carne e habitou entre nós. (Jo 1, 1-2.14)

Por Tomaz Hughes

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"Não tenham medo! Eu anuncio para vocês a Boa Notícia, que será uma grande alegria para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2, 10-11). Assim, no Terceiro Evangelho, o anjo anunciou a grande mensagem de Natal. Certamente uma Boa Notícia para os pastores daquela época, mas também para todos os povos de todas as épocas, cercados pelas trevas de opressão, guerra, violência e medo. Uma Boa Notícia para o século XXI tão marcado pelo sofrimento de milhões dos nossos irmãos e irmãs de todas as raças, religiões e culturas.

Essa “Boa Notícia” frequentemente se perde nos interesses comerciais das celebrações do Natal, muitas vezes uma festa de consumo, materialismo e exclusão, onde a pessoa do Verbo Encarnado quase não aparece, muito menos a proposta de Deus, concretizada na pessoa e missão de Jesus de Nazaré.

Embora normalmente nos sintamos mais à vontade com os relatos de Mateus e Lucas, usados nas Missas da Vigília e da madrugada da Festa, vale a pena aprofundar o Evangelho da Missa do Dia do Natal: “No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus... E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 1-2.14). É natural que nós nos sintamos mais atraí-dos a contemplarmos a imagem de um bebê numa manjedoura do que aprofundar este texto denso, mas esses versículos nos trazem o cerne da Boa Notícia.

Comunicação de Deus

A comunicação é atividade primordial da humanidade, e o seu instrumento privilegiado é a palavra. Diariamente estamos sujeitos a uma enxurrada de palavras, que muitas vezes servem para ofuscar a verdade, funcionando como instrumento de opressão, em lugar de solidariedade humana. Assim, é bom considerar o conceito atrás do termo “Palavra”.

O primeiro referencial para nós é a Palavra de Deus, com destaque para aquela comunicada através da Sagrada Escritura. No Antigo Testamento, o tema da Palavra Divina não é objeto de especulação abstrata, como é em outras correntes de pensamento, por exemplo o Logos dos filósofos alexandrinos. É antes de tudo uma experiência: Deus fala diretamente aos homens e mulheres, ao seu povo e a toda humanidade.

A Palavra de Deus é comunicação, autoexpressão e acontecimento salvífico. Por isso, podemos afirmar que a própria criação assinala o começo da história da autocomunicação e ação salvadora de Deus. A Palavra de Deus pode ser considerada sob dois aspectos, indissociáveis mas distintos: ela revela e ela age. Revela quem é o verdadeiro Deus, pelo que Ele faz. O Deus dos hebreus não é o deus dos filósofos, distante, imutável, objeto de estudo e fria análise, mas um Deus que se revela na ação da sua Palavra criadora, congregadora e libertadora. Isso fica claro no texto que podemos considerar a chave de toda a Escritura, pois o resto da Bíblia é consequência daquilo que ela revela: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios” (Ex 3, 7-8).

Esse “descer” de Deus tem seu auge na Encarnação. O projeto de Deus acontece quando essa palavra se fez “igual a nós em tudo, menos no pecado” e armou a sua tenda (ou acampou) entre nós. O verbo grego usado, eskênôsen, deriva do termo skêne, que significa uma tenda de campanha. A Palavra, o Verbo Divino, “armou sua tenda” no meio da humanidade, não “ergueu o seu Templo!” Templo é fixo, tenda é móvel, ou seja, aonde anda o povo, lá estará a Palavra Viva de Deus, encarnada na pessoa e projeto de Jesus de Nazaré. Nele e por ele a Palavra age, operando a salvação aqui na terra. O mistério da Palavra tem agora como centro a pessoa de Jesus Cristo, inseparável da sua missão.

Encarnação

Mas essa encarnação tornou-se o divisor das águas para a humanidade. “Veio aos seus e os seus não a acolheram”. Assim o texto desafia qualquer acomodação que porventura possa existir entre os cristãos, pois “acolher” a Palavra Encarnada não é só aceitar intelectualmente, mas assumir um projeto de vida, o seguimento de Jesus. É uma adesão radical à pessoa e missão de Jesus, continuada em nós hoje. Nos anima para que não esfriemos no seguimento de Jesus e assegura “aos que a receberam, os tornou capazes de ser filhos de Deus, os que creram nele, os que não nasceram do sangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do homem, mas de Deus” (Jo 1,12s).

A tomada de consciência de Jesus, da sua missão não foi algo automático. A epístola aos hebreus enfatiza claramente o processo pelo qual Jesus passou, quando diz: “embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através dos seus sofrimentos” (Hb 5, 8). O sentido mais profundo do termo “obediente” vem do latim ob-audire, que é escutar ou ouvir a vontade e Deus - e pô-la em prática! É mais uma obediência profética, (fazendo da vida de Jesus uma expressão viva da Palavra e Vontade de Deus), do que meramente disciplinar. Nesse processo, não há dúvida que a Palavra de Deus nas Escrituras judaicas teve um lugar de destaque para Jesus. Durante 30 anos, Jesus alimentou a sua espiritualidade, a sua fé, nas mesmas fontes do povo sofrido do interior da Palestina – na espiritua-lidade dos Anawim, os “Pobres do Senhor”, com destaque para Segundo e Terceiro Isaías, entre outros, que fomentavam esperança e coragem, afirmando a presença do Deus Libertador entre os pobres e aflitos, (por exemplo: os Quatro Cantos do Servo de Javé, Is 42, 1-9; 49, 49, 1-9ª; 50, 4-11; 52,13-53,12; Is 61, 1-11; Zc 9,9-11 e Sf 3,11-13;). Foi no confronto entre a Palavra de Deus transmitida nas Escrituras através dessas vozes proféticas e a realidade dura do seu povo sofrido, que Jesus clareou e concretizou a sua identidade e missão, fazendo com que, segundo Marcos, a prisão de João fosse o sinal para que ele assumisse o manto profético mes-siânico, não conforme a expectativa da sociedade, mas dentro da visão dos pobres do Senhor: “depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a Galileia, pregando a Boa Notícia de Deus” (Mc 1, 14s).

Também temos que ler esse e qualquer texto bíblico em diálogo com a realidade do nosso povo -– mas de maneira especial do povo excluído, sofrido e marginalizado, como Jesus fez.

A identidade cristã brota do Verbo Encarnado, “que armou a sua tenda entre nós”. A espiritualidade de Jesus foi mais em sintonia com a espiritualidade dos “pobres da Javé’ do que com a visão centralizadora e legalista do Templo e dos escribas. Jesus descobriu a sua missão e a colocou em prática a partir da sua prática de diálogo e escuta - com o Pai, com o povo, com as Escrituras e com a realidade dos moradores da Galileia. Ser cristão implica encarnar essa mesma prática em nossa obra evangelizadora, onde estivermos. Exige o cultivo da atitude de Jesus em diálogo com o pobre, com pessoas de outras culturas e expressões religiosas – em muitos lugares essas categorias serão quase sinônimas.

O Natal nos lembra do desafio de cultivarmos a espiritualidade da “tenda” mais do que do “templo” - nem sempre fácil numa Igreja cada vez mais clericalizada (embora o papa Francisco combata essa tendência). Com a atitude do Verbo que se encarnou, é obrigação inerente à nossa identidade cristã fazer um esforço cada vez maior de aculturação e inculturação, cultivando o respeito às experiências de Deus nas outras culturas e expressões religiosas, numa atitude de verdadeiro diálogo, que não é uma atividade a mais, mas uma atitude de “solidariedade, respeito e amor” (Gaudium et Spes 3), que deve permear todas as nossas atividades”.

Tomaz Hughes, SVD, é missionário irlandês do Verbo Divino, morando em Curitiba, PR.
(CC BY 3.0 BR)

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