O tropel da UDR

Gilson Caroni Filho*

Lideranças ruralistas pregam abertamente a sabotagem produtiva, a possibilidade de desabastecimento como forma de desgaste do governo, visando ao processo eleitoral de 2010. As ameaças não tiveram qualquer repercussão na grande imprensa.

Há um discurso ideológico recorrente na grande imprensa. Sua arquitetura básica consiste em apresentar a hegemonia do capital financeiro e das transnacionais sobre a agricultura como um "salto tecnológico" que mudou a maneira de pensar dos grandes proprietários de terra e seus representantes mais expressivos.

Como os protagonistas dessa decantada "modernidade rural" teriam trocado o radicalismo da UDR (União Democrática Ruralista), pelo diálogo em busca de resultados, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) teria perdido sua razão de ser, tornando-se um projeto incapaz de dar conta da complexidade do setor agrário. Soariam equivocadas as lutas por mudanças no campo para combater a pobreza, a desigualdade e a concentração de riquezas. Esse ilusionismo, repisado diariamente por ideólogos do "agrobusiness", sofreu um forte baque há duas semanas.

Em matéria publicada pela Folha de São Paulo, em 07/04/2009, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) disse ter "orientado os associados da entidade a trabalhar com uma perspectiva de pé no freio para a próxima safra".

O presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan, não mediu as palavras. Para ele, "pé no freio" tem de ocorrer também por uma questão política. Em síntese, o que as duas lideranças pregam abertamente é a sabotagem produtiva, a possibilidade de desabastecimento como forma de desgaste do governo, visando ao processo eleitoral de 2010. Salvo uma nota do ex-ministro José Dirceu , as ameaças não tiveram qualquer repercussão na grande imprensa. Não se viu um articulista protestando contra a "agressão à democracia" ou editoriais cobrando a punição dos que, por interesses de classe, não hesitam em lançar mão de expedientes capazes de deter o "desenvolvimento da economia nacional"

Se, como destacou o Coordenador Nacional do MST, João Pedro Stédile, "a reforma agrária deixou de ser aquela medida clássica: desapropriar grandes latifúndios e distribuir lotes para os pobres camponeses, passando a incluir a mudança não só da propriedade, mas também do modelo de produção", algumas considerações devem ser feitas para os extasiados editores de Política e Economia dos jornais nossos de cada dia.

Há um toque de ironia que não deve ser esquecido. No Brasil, ainda são os pequenos produtores sem terra (ou com muito pouca) que abastecem o deficitário mercado de alimentos, ativador de inflação, enquanto, até bem recentemente, os créditos, financiamentos, subsídios e favores do Estado eram monopolizados pela grande propriedade. A contrapartida perversa do repasse de recursos do setor público para o privado são os conflitos do Pará ao Rio Grande do Sul e os surtos de violência entre a UDR de um lado e os sem-terra de outro.

A solução das classes dominantes para resolver o problema agrário sempre foi a redução dramática da população rural, empurrada para as grandes metrópoles em ritmo que não cessava de se superar ano após ano. Nesse quadro, o MST, movimento de maior expressividade na América Latina, logrou estabelecer o contraponto necessário.

O que aparece no noticiário oculta a magnitude dos seus feitos. Silencia-se sobre o trabalho pedagógico feito em acampamentos e assentamentos de todo o país. Um processo que absorve cerca de 160 mil alunos e quase quatro mil educadores em 23 estados, possibilitando o surgimento de 1.800 escolas de ensino fundamental. Milhares de famílias incluídas, êxitos incontestes apesar da timidez de uma política efetiva de créditos. Mas isso não merece ser editado.

O embuste de Kátia Abreu - e seu séquito na imprensa e no parlamento- consiste em fingir ignorar que não há país capitalista desenvolvido que não tenha agido decisivamente nessa questão. O saudoso economista Plínio Guimarães Moraes, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária, escreveu, num artigo publicado em junho de 1985 no Jornal do Brasil, que "a Austrália dos canaviais e a França dos bons vinhos são os exemplos mais aparentes onde predomina o interesse social sobre o individualismo egoísta sem falar na Alemanha onde a função social da propriedade prevalece desde 1919. Mas o que queremos (e podemos) nós?"

Qual a nossa resposta à pergunta deixada por Plínio. Um país equânime, justo, sem violência, com salários condignos, com gêneros alimentícios baratos e disponíveis? Ou tudo isso que vivemos até hoje? Se realmente pretendemos uma sociedade inserida em moldes mais equilibrados, necessitamos ter presente que não a alcançaremos sem uma reforma agrária que enterre de vez as desigualdades abissais existentes.

Atualmente, de acordo com Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário, o Brasil contabiliza 43 milhões de hectares destinados à Reforma agrária nos últimos seis anos, dado que o transforma no país com a maior área de Assentamentos em todo o mundo. De 2003 a 2008, 519.111 famílias foram assentadas e 3.089 assentamentos foram implantados.

Resta saber qual escolha faremos. O aprofundamento de um processo inclusivo, rico em tensões e pulsões dialéticas ou os tropéis furiosos do gado de Kátia Abreu e assemelhados? Movimentos sociais e cidadãos em geral devem olhar para 2010 como um ano em que serão decididas questões substantivas.

*Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

Fonte: Carta Maior

 

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