Três dimensões da Vida Consagrada

Alfredo J. Gonçalves *

Ao chegar ao outono do Ano da Vida Religiosa Consagrada (VRC), convém manter de pé a refletexão sobre três de suas dimensões mais significativas: a oração, meditação e contemplação; a vida comunitária ou convivência fraterna; e a presença missionária entre os pobres e necessitados. Nessa perspectiva, podemos seguir de perto os passos da prática de Jesus, utilizando três metáforas em forma de binômio com forte simbologia para a VRC.

1. Montanha e deserto
Nem seria necessário insistir sobre a relevância simbólica do binômio "montanha e deserto", seja do ponto de vista do anúncio da Boa Nova por parte de Jesus, seja do ponto de vista das exigências da vida consagrada.

Montanha e deserto, de fato, marcam profundamente as atividades do Homem de Nazaré que "passou pela vida fazendo o bem" (At 10, 38). Marcam da mesma forma o alicerce inicial da VRC, se nos remetemos aos primeiros séculos da Igreja, com o surgimento dos "padres e madres" do deserto.

Vale lembrar que João Batista aparece como "a voz daquele que clama no deserto" e que o próprio Jesus se retira ali por quarenta dias e quarenta noites. Seja esse um número simbólico ou real, reforça a importância do deserto como lugar de escuta e discernimento no diz respeito à vontade de Deus. Além disso, antes de iniciar sua vida pública e, durante esta, retira-se com frequência à montanha ou a "um lugar à parte", onde se isola a sós com o Pai. Momentos de uma intensidade extrema, que poderiam durar toda a noite. Dessa intimidade, nasce a designação insólita de Deus como Abba, palavra extraída do ambiente familiar íntimo e caloroso para referir-se ao pai.

Passando os olhos pelas páginas dos quatro Evangelhos, ainda que a voo de pássaro, é difícil não tropeçar com Jesus num ponto solitário e isolado, em atitude de oração, meditação ou contemplação. Muitas e repetidas vezes Ele se retira do burburinho da multidão, às vezes por toda a noite. De resto, em todo percurso bíblico, a metáfora da montanha e deserto representa o lugar privilegiado da teofania, que significa manifestação do mistério divino, o qual nem por isso deixa de permanecer sempre oculto. Lugar por excelência do encontro com Deus. Ali Moisés encontra Yahvé no episódio da sarça ardente (Ex 3, 1-6). Ali o mesmo Moisés receberá mais tarde as tábuas da Lei. Ali Jesus se transfigura diante de Pedro, Tiago e João. Ali a Vida Consagrada, de origem simples e leiga, tanto no Oriente como no Ocidente cristãos, mergulha suas raízes mais antigas.

No isolamento ríspido da montanha e na solidão árida do deserto não há muito que ver e admirar. A vastidão infecunda e ascética se estende a perder de vista. Em lugar de oscilar distraidamente de um objeto a outro, o olhar tende a uma dupla conversão: concentra-se e volta-se sobre si mesmo. O que, em última instância, significa focalizar a atenção na presença invisível de Deus. A vastidão silenciosa da pedra e da areia estéreis chama e se funde a outra vastidão, infinita e também silenciosa. Mas neste último caso, o silêncio encontra-se povoado e melodioso, com uma voz ao mesmo tempo inaudível e inconfundível.

O olhar físico termina por dar lugar ao olhar do coração e da alma. Impossibilitado de entreter-se com as coisas e cores da paisagem externa, busca a paisagem interna. Diante de um cenário árduo e inóspito, o eu refugia-se no interior de si mesmo, busca um lar que lhe seja familiar. "Tarde demais te encontrei, Senhor! - diz Santo Agostinho. Eu te procurei por toda parte, fora de mim, mas tu estavas dentro de mim". Assim, a partir das próprias entranhas, onde pulsa e canta o mistério divino, abre-se espaço para o encontro com Deus. Então, como que por encanto, a visão espiritual substitui o mundo material. Uma luz que nasce no mais íntimo da pessoa toma o lugar da luz que ilumina os arredores desprovidos de vegetação e de vida. Tem início um diálogo sem palavras (no plural e em minúsculas), mas densa e ricamente revestido pela Palavra (no singular e com maiúsculas).

Na montanha e no deserto, lugares privados de exuberância e vivacidade, a alma, juntamente com o Criador, inicia a construção de uma casa: diferente, única, singular. Um refúgio, uma referência, um verdadeiro lar, ao qual terá ânsia de retornar com frequência. Ao abrigo aconchegante de seu teto e paredes inexistentes, passa momentos inefáveis de convivência e intimidade com o Pai. Desenvolve-se um diálogo mudo e, ao mesmo tempo, de um significado indescritível. Raios fugazes, mas de uma luz intensa e inesquecível, brilham no interior da nova casa. Relâmpagos que reluzem e se apagam em um só segundo, deixando um no céu traços de uma escrita indecifrável.

Tais momentos de êxtase supremo permanecem gravados com letras de fogo por todos os compartimentos secretos da casa de Deus. Simultaneamente efêmeros e de um brilho sem igual, passarão a iluminar a vida e o caminho de que foi por eles penetrado. À medida que semelhantes raios se acumulam e se intensificam, geram e desenvolvem a memória de um caminho cada vez mais iluminado, esplendoroso, radiante. Nasce, cresce e amadurece um itinerário místico progressivo, um processo crescente de espiritualidade.

2. Casa e mesa
"Casa e mesa" constituem um binômio que tem a ver com o conceito de família. E este conceito, por sua vez, está estritamente vinculado ao universo simbólico da vida comunitária. Aqui nos encontramos diante de um dos nós ou impasses mais complexos da vida VRC hoje: a dificuldade de testemunhar uma convivência fraterna e familiar. Em boa parte de nossas comunidades religiosas, a casa funciona mais como pensão do que como lar acolhedor e aconchegante. Cada um ou cada uma de seus membros entra e sai para comer ou dormir. E o fazem, se possível, em horários diferentes para escapar a eventuais encontros, escapando igualmente ao confronto e aos inevitáveis conflitos.

Isso quer dizer que, em não poucas vezes, no interior mesmo das comunidades religiosas, encontro é sinônimo de discórdia e conflito. Evitando um, evitamos os outros! Com isso, as tensões latentes são varridas para debaixo do tapete e aí permanecem mais ou menos ignoradas, num estado de putrefação que cheira mal e contamina toda a casa. Prevalece um mutismo constrangedor e pesado, deserto e estéril. O ambiente passa a destilar um oxigênio cheio de veneno, de olhares enviesados e de mal-entendidos. Clima irrespirável, muito diferente do silêncio, por exemplo, o qual é povoado e fecundo de boas recordações e de uma presença profundamente harmônica, mesmo sem o uso das palavras.

De fato, enquanto o mutismo fecha-se sobre si mesmo, isola-se e encaramuja-se, caracterizando-se pela recusa a qualquer tipo de comunicação, o silêncio entre pessoas que convivem em harmonia, ao contrário, pode converter-se no melhor dos entendimentos. Prova disso é o silencioso encontro de dois namorados apaixonados ou de dois idosos de longa convivência, os quais, para entrar em perfeita sintonia, são capazes de dispensar o ruído das palavras. O mutismo consiste numa espécie de monólogo que cria e nutre o gueto, o silêncio se abre ao diálogo e à formação da verdadeira comunidade. Atualmente, como bem o sabemos, a televisão e o carro próprio, depois o computador e o celular, contribuem poderosamente para a separação e o isolamento dos membros de uma família ou de uma casa religiosa. Para a redescoberta da VRC, o desafio está em reverter esse quadro, gerando autênticas comunidades cristãs, sem eliminar os avanços da tecnologia de ponta. Em termos mais concretos, como traduzir a Boa Nova do Evangelho e o seguimento de Jesus Cristo em meio aos ruídos e apelos da modernidade ou pós-modernidade urbana?

Tudo isso se torna mais evidente na mesa, no ato de comer. O comer humano, efetivamente, é bem diverso do comer animal. O cão come preferentemente só e, quando se juntam mais de um, em geral desencadeia-se a agressividade. Já o ser humano, para comer, encontra-se ao redor da mesa. Esta convida a partilhar pão e vida. Enquanto o pão alimenta o corpo, a existência do outro, ou outros, alimenta o coração e a alma. Daí que, entre pessoas, comer é o mesmo que comer-se! Na refeição, além do alimento que ingerimos, comemos também o olhar, o sorriso, os gestos, as palavras, os sucessos ou fracassos, "as alegrias e esperanças, tristezas e angústias", a história viva de quem se encontra à nossa frente ou ao lado.

Podemos afirmar sem exagero que o melhor tempero da refeição humana é a presença do outro/a. Quanto mais profunda a relação e a intimidade entre os convidados à mesa, tanto mais saboroso será o alimento. E quanto maior o número de comensais maior se torna o clima de encontro e alegria. Por outro lado, nada mais triste e desolador do que encontrar-se só na hora da refeição. Pior ainda, aproximar-se da mesa depois de uma tensão ou conflito não resolvido. Em ambos os casos, a comida desce com dificuldade, parece intragável, falta-lhe o tempero da companhia e da amizade.

A festa é a melhor ilustração disso. Promovemos uma festa ou aceitamos um convite para um aniversário, casamento ou outra comemoração festiva não, em primeiro lugar, porque temos fome, e sim porque ansiamos encontrar com os amigos, parentes, companheiros. A fome física se revolve facilmente, com um pedaço de pão e uma banana! A festa, entretanto, busca cobrir a lacuna de uma fome muito mais oculta, profunda e profundamente humana: a necessidade de estar juntos, de sentir o calor de outras pessoas, de ouvir suas histórias e contar as nossas, de intercambiar experiências vividas e vívidas. Necessidade, enfim, de um eu-tu, olho-no-olho, diálogo de coração e alma. Se a comida combate a fome material, a festa combate a fome existencial, espiritual.

Disso resulta que o comer humano tem um caráter sagrado. Da mesma forma que os animais, as pessoas sentem necessidade de alimentar-se. Ao contrário deles, porém, o nosso modo de fazê-lo implica um ritual que poderíamos classificar, sem dúvida, de liturgia da alimentação. Numa refeição familiar, festiva ou natalina, por exemplo, a mesa nunca está totalmente despida. Reveste-se de tolha, flores, às vezes de velas e penumbra, o que denota certa intimidade entre os comensais. Os copos, talheres, guardanapos e pratos não estão dispostos aleatoriamente, mas obedecem a uma forma estética que alimenta os olhos e o espírito.

O mesmo se pode dizer das bandejas que são colocadas sobre a mesa: nelas o alimento vem enfeitado com carinho e magia, onde cores e sabores ganham identidade única e singular. Em tais momentos, normalmente não falta a música e a dança, próprias de todos os povos e culturas desde tempos primordiais. Mais uma vez, ao comer e nutrir o corpo, somos convidados a nutrir igualmente a alma, comendo os outros ou outras, que nos fazem companhia, além de alimentar-nos da arte com que tudo é preparado. Também esta liturgia requer um certo número de protagonistas, em geral escondidos nos bastidores da cozinha.

Entra em cena o conceito sociológico de comensalidade ou convivialidade, justamente a dupla partilha de pão e vida. As narrações dos quatro evangelhos estão recheadas de momentos que expressam vivamente essa noção. Como João Batista, Jesus é chamado profeta. Diferentemente dele, porém, Jesus desenvolve seu ministério público em meio às pessoas, de forma alegre, promovendo e aceitando convites para encontros festivos, alguns até regados com vinho. Não é à toa que foi chamado de "comilão e beberrão". Basta recordar a bodas de Caná, a multiplicação dos pães e a última ceia, para citar apenas alguns exemplos. É marcante a diferença entre, de um lado, o profeta sisudo e austero, ascético e solitário - "voz que clama no deserto" - com o dedo em riste apontando a dia do juízo, vinculado ainda ao profetismo do Antigo Testamento; e, de outro, o profeta itinerante de Nazaré, que se comove e se compadece das "multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor". Neste último, a misericórdia e o perdão prevalecem sobre o julgamento e a condenação.

3. Caminho e rua
O binômio "caminho e rua", por fim, representa o lugar dos embates cotidianos, onde os seres humanos sonham, lutam e esperam. Lugar em que se desenvolvem os esforços pessoais e familiares para conseguir trabalho e salário, alimento e roupa, moradia e saúde, educação e segurança, transporte e lazer - enfim, para alcançar um nível de vida com o mínimo de justiça e dignidade. Neste empenho diário, as diferenças entre o andar de cima e a base da pirâmide social costumam ser notadamente abissais. A simples existência dessa estrutura piramidal, por si mesma, já é escandalosa. Desnecessário acrescentar números e estatísticas para dar-se conta que, enquanto uns poucos controlam a fatia maior do bolo, a grande maioria deve contentar-se com uma fatia irrisória.

E a distância entre o pico e o andar inferior da mesma pirâmide, em lugar de diminuir, em muitas regiões e países segue aumentando. Do ponto de vista do progresso técnico, o fruto do trabalho humano cresce em termos geométricos, mas sua distribuição continua extremamente desigual. O crescimento econômico, por si só, é incapaz de gerar o desenvolvimento integral, como lembram os documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI), de forma particular a Gaudium et Spes (1965) e a Populoruam Progressio (1967). Daí a insistência do Papa Paulo VI no sentido de que "o desenvolvimento é o novo nome da paz", expressão que se torna uma espécie de linha mestra nos demais textos da DSI.

Nessa sociedade lacerada por tanta injustiça e pelas dissimetrias socioeconômicas, a Igreja em geral e os consagrados e consagradas em particular, são convidados a uma "opção preferencial pelos pobres". Opção que, vale lembrar, não é uma novidade na tradição religiosa judaico-cristã. Baste-nos confrontar dois textos chaves. Por uma parte, no Antigo Testamento, o chamado "credo histórico" do Povo de Israel rezava que Yahvé viu a miséria do seu povo, ouviu seu clamor, conhece seu sofrimento e desceu para libertá-lo da escravidão do Egito e conduzi-lo "a uma terra em que corre leite e mel" (Ex, 3,7-10; dt 26, 5-10).

Esses verbos - ver, ouvir, conhecer e descer - revelam que a experiência fundante do Povo de Israel mergulha suas raízes na fé em um Deus atento, sensível e solidário para com os pobres, oprimidos e abandonados. Um Deus que, longe da indiferença dos ídolos dos povos vizinhos, toma partido em favor dos pequenos e indefesos, descendo do seu "trono celeste" e vindo caminhar com seu povo pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora. Um Deus que, em seu coração paterno e materno, e nas palavras do Papa Francisco, privilegia os "últimos e mais necessitados" - "o órfão, a viúva e o estrangeiro" - trilogia que resume os mais marginalizados, excluídos e necessitados do mundo antigo e que que atravessa como um fio condutor várias páginas bíblicas.
Por outra parte, no Novo Testamento, num de seus clássicos resumos intercalados no decorrer da narrativa, o evangelista Mateus escreve que Jesus, como um profeta itinerante, "percorria todas as cidades e povoados, curando todo tipo de doença e enfermidade (...). Ao ver as multidões cansadas e abatidas, teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor" (Mt 9, 35-38). Na parábola do Bom Samaritano, por sua vez, mostra que o "próximo" daquele que está caído à beira da estrada não é o sacerdote nem o escriba, os quais passam de lado, e sim o estrangeiro que parou para socorrê-lo e oferecer-lhe a ajuda necessária. E conclui: "vai e faz o mesmo" (Lc 10, 13-35).

Enfim, na parábola do chamado Juízo Final, o Mestre utiliza como critério de salvação a atitude solidária (ou indiferente) que tenhamos demonstrado diante de quem estava com fome, com sede, nu, doente, na prisão ou era migrante (Mt 25, 35-51). Não seria difícil acrescentar outros gestos, palavras e ações de Jesus onde está em jogo a seriedade, concretude e radicalidade da Sequela Christi. O seguimento de Jesus Cristo, com efeito, é a base e a motivação evangélica e primordial sobre a qual se erguem os Institutos masculinos, femininos e seculares da Vida Consagrada, não obstante seus distintos carismas.

4. Três dimensões de uma única prática
Os três binômios ou metáforas dos itens acima - montanha e deserto, casa e mesa, caminho e rua - não são gavetas fechadas e isoladas entre si, mas instâncias comunicantes e indissociáveis. Mais do que três modos de agir ou de evangelizar, constituem três dimensões de uma única prática, as quais se integram, se complementam e se interpelam reciprocamente. De forma dinâmica e dialética, uma reforça e é reforçada pela outra, enriquece e é enriquecida pela outra. Em termos concretos, quando mais Jesus aprofunda sua intimidade com o Pai na montanha e deserto, mais estreitos se tornam os laços com o grupo dos doze e com os discípulos que o seguem. E mais se desenvolve o compromisso com os pobres e excluídos que o procuram aflitos e esperançosos. Os momentos dedicados à oração, meditação e contemplação, de um lado, ou ao cultivo da amizade e convivialidade, de outro, não são tempo subtraído à missão, mas tempo que a qualifica.

E inversamente, quanto mais Jesus percorre os caminhos e ruas em busca da multidão de marginalizados, mais sente necessidade de se isolar para estar a sós com o Pai, descansar e repousar, bem como de participar dos momentos de dor e de alegria daqueles que o acompanham de mais perto, como é o caso de Marta, Maria e Lázaro, por exemplo. Também neste caso, os momentos dedicados à missão entre os que sofrem ou ao convívio interpessoal com os conhecidos não são tempo subtraído à intimidade com o Pai, mas tempo que a torna mais concreta e sacerdotalmente intercessora. Ao encontro com o Pai, Jesus leva os rostos desfigurados que encontra pelo caminho. Dele, Jesus traz o conforto e a luz resplandecente de Deus, a qual iluminará o dia-a-dia de todos os crucificados.

Em síntese, na prática e na pedagogia de Jesus, a oração, a meditação e a contemplação, sempre que verdadeiras, o devolvem às ruas e caminhos. Por outro lado, a verdadeira missão requer um retorno e um questionamento permanente à "casa do Pai". A dimensão da montanha e deserto, desvinculados da ação missionária, termina por ser uma instrumentalização de um deus com letra minúscula, feito à nossa imagem e semelhança, o qual pode ser facilmente manipulado e tudo justifica. E ao contrário, a dimensão do caminho e rua, sem momentos de profunda espiritualidade, acaba por instrumentalizar a população de baixa renda em benefício de interesses próprios ou corporativistas.

Entre eles, a dimensão da casa e mesa se interpõe como ponto de referência: ao mesmo tempo, porto e encruzilhada entre o processo de crescimento místico e a atividade sociopastoral. Encruzilhada pressupõe duas coisas: bifurcação ou trifurcação de caminhos, por um lado, e necessidade de tomar uma decisão, por outro. Tal opção, por sua vez, deve vincular-se não a um projeto pessoal ou personalista, mas a uma escolha conjunta. Daí a necessidade do espaço comunitário, seja no sentido de analisar a realidade e seus desafios, seja no sentido de fazer um plano de ação em comum.

A comunidade representa, além disso, o espaço próprio da nudez. Toda nudez revela franqueza e debilidade, requerendo inteira compreensão e confiança. A amizade e amor cobrem a nudez com a veste do devido respeito, sem expô-la aos olhares curiosos e devastadores. Quando o missionário dispõe dessa retaguarda familiar, é capaz de superar as exigências da missão; em caso contrário, logo se cansa e abandona todo e qualquer esforço. O abandono da VRC se deve não tanto às adversidades de uma missão, por mais dura e desafiadora que seja. Aí, na rua e no caminho, costumamos ser fortes e corajosos.

O abandono da VRC se deve, especialmente, a uma dupla lacuna: falta de um ambiente familiar que acolha o missionário, tanto nos momentos de crise e fracasso quanto em suas vitórias e sucessos; e falta de um processo sólido e persistente de espiritualidade mística. A missão somente se mantém se puder contar com esse processo de espiritualidade enraizada no Evangelho e na pessoa de Jesus Cristo, por uma parte e, por outra, com um ambiente onde o missionário possa ser recebido como irmão ou coirmão, independentemente da eficácia de sua ação pastoral. Montanha e deserto, ao lado de casa e mesa, são dimensões decisivas para o prosseguimento da missão, e vice-versa.

Conclusão
Casa e mesa, juntas, formam esse ambiente familiar: simultaneamente ponto de repouso, posto de abastecimento, reposição de energias - em vista da retomada do caminho. Sem esse espaço de carinho, afeto e calor humano, o viajante não poderá aventurar-se muito longe. Em breve, as adversidades haverão de superar sua coragem e o entusiasmo. É a vida comunitária, como família, que lhe recarga a bateria para continuar a missão.

Vale concluir com o episódio pós-pascal dos discípulos de Emaús. Depois da tragédia da cruz, ambos fogem de Jerusalém para Emaús. Vão cheios de medo, dominados pela sensação de fracasso, correndo da ameaça de perigo que ronda os amigos do crucificado. Ao final, após o encontro com o Ressuscitado e a casa e mesa que se tornam eucaristia, retornam de Emaús para Jerusalém. O caminho é o mesmo, mas a direção e o estado de ânimo mudaram completamente. Diversamente da ida, o retorno é cheio de alegria, domina-os novo vigor e entusiasmo. Em uma palavra, e utilizando a linguagem do Documento de Aparecida, a dimensão de casa e mesa converteu dois discípulos medrosos em dois missionários ardorosos. Nada e ninguém mais os poderá deter na tarefa de proclamar a Boa Nova do Reino de Deus.

New York, USA, 20 de julho de 2015

* Alfredo J. Gonçalves, MS, é Conselheiro Geral e Vigário dos Missionários de São Carlos.

Deixe uma resposta

dezesseis − nove =