Em campo de refugiados, igrejas e mesquitas são construídas

Por Márcia Bechara (adaptado por Joaquim F. Gonçalves imc)

Calais, na França, acolhe milhares de refugiados de muitos países. Quanto maior a quilometragem das cercas de arame farpado e violência das polícias de fronteira, maior a concentração de grupos de etnias, raças e nacionalidades diferentes.tt-4

Além dos barracos e tendas, há também discotecas, construídas com galhos de madeira, plásticos e fita crepe. Um dos construtores é afegão de codinomes variados - ele é Ibrahim, que pode se transformar em Rachid, de acordo com o interlocutor.

Na favela da New Jungle, situada em Calais (França) 25% dos moradores são refugiados que sonham chegar à Inglaterra; vêm da península do nordeste africano que mira o Oceano Índico: Eritreia, Etiopia, Somalia; 35% vêm do Sudão e de outras ex-colônias britânicas como Gana e Nigéria; 30% são asiáticos afegãos, paquistaneses, iranianos, iraquianos e curdos.

A imigração síria, que antes era relativamente pequena, cresce todos os dias.

A chamada Nova Selva é uma espécie de versão em miniatura do planeta Terra: os refugiados tendem a se organizar em comunidades-nações, estruturadas por origens-religiões. Os únicos cristãos são os ortodoxos da península do nordeste africano, relata François Guennoc em seu blog no site frances Mediapart. A maioria fala inglês, e a língua define em grande medida para onde se quer migrar. Mas, na verdade, estão todos torcendo o nariz para a França, porque aqui eles já sabem: não há empregos.tt-5

Ibrahim-Rachid-Mohammed, numa euforia quase adolescente, defende o presidente russo Vladmir Putin: "Ele fala a verdade. Fala mesmo. Ele fala como um "bom homme" (um homem médio, comum, em francês). Ibrahim-Rachid-Mohammed conversa em bom francês e mesmo num inglês inteligível e mora na região há sete anos. Foi preso 3 vezes pela policia europeia e faz parte da população "flutuante-estável" da Nova Selva, onde moram essas pessoas que já se misturaram, vivendo na condição fronteiriça, o estado da margem, o fora-da-lei, até esse fora-da-lei se tornou seu novo habitat.

Há muitos feridos e muita gente com muletas em Calais, fruto das tentativas de passar pelo Eurotúnel. Para chegar a este lugar, as viagens custaram caro: da Etiópia, Sudão, Líbia, Egito, uma travessia de 17 dias num barco para Catânia, na Sicília, Itália, custa 2.500 dólares. Apenas do Sudão para o Egito, 900.

O Sírio Moayad conta um pouco da sua história parecida com a epopeia de um povo ou uma lenda civilizatória contemporânea. Muçulmano, ele vem da cidade de Dier al-Zoor, no leste da Síria, invadida pelo Estado Islâmico, do qual ele foge. Para escapar, teve que deixar a barba crescer e o passaporte em casa: "Homens sem barba ou que carregam passaportes são imediatamente capturados e punidos pelas forças do ISIS (sigla em inglês para o Estado Islâmico)", conta.

"Sou um homem de sorte", diz Moayad, que cruzou a pé a fronteira turca e pagou 1.250 dólares para poder pegar um bote abarrotado de gente que o deixou na Ilha de Koos, na Grécia. "O barco que partiu antes de nós afundou. Algumas pessoas voltaram nadando para a praia, na Turquia. Outras subiram no nosso bote", conta.
O preço das travessias é variável, de acordo com o "passador" que negocia a "viagem". "Paguei 1.250 dólares, mas muitas outras pessoas pagaram 1.300 Euros cada", ele faz questão de frisar. Na Ilha de Koos, onde ficou nove dias, Moayad teve que ser registrado, como determina a lei europeia para refugiados: todos devem preencher a papelada no país onde chegam. Na ilha grega, com ele, outros 1.500 sírios, assim como migrantes do Afeganistão, de Mali, do Paquistão e do Iraque.

Levados para Atenas, foram até a Macedônia e pegaram um trem da Cruz Vermelha até a fronteira com a Sérvia. Caminharam cerca de seis quilômetros na estrada de ferro e pagaram um táxi (€250) até a rodoviária, onde pegaram um ônibus para Belgrado, a capital sérvia. "País estranho", afirma Moayad. A partir daí, começou a parte mais perigosa da travessia: atravessar a Hungria e tentar chegar à Áustria. Na Hungria, o pânico de serem "carimbados" pela polícia húngara, o que os levaria direto para uma espécie de campo de onde todos temem nunca mais sair.

Conseguiram escapar da polícia em Budapeste e chegaram à fronteira com a Áustria, onde subiram em um outro trem de refugiados para Viena. De Viena, um trem "normal" para Paris. "Fiquei andando pelas ruas de Paris. País legal", solta Moayad, entre um detalhe e outro. De Paris, Calais, Moayad perdeu três botas durante a longa travessia, que se abriram completamente por causa da caminhada, e me mostra com alegria o tênis azul recém-adquirido na França.tt-6

No "bairro" sírio ninguém quer ser fotografado

Moayad me defendeu de um compatriota sírio que veio gritando quando me viu com o celular, tentando fotografar o acampamento. Moayad subiu o tom e tranquilizou o homem, que me disse: "Não queremos que nossas famílias nos vejam assim, elas nos veem na internet e ficam preocupadas".

Entretanto viu outro homem chegando de biciclete e me disse: "Esse homem é muito bom. Salvou ontem aqueles dois lá, que estavam morrendo de fome". Entre uma ida e uma volta da bicicleta, Toby me explica que é professor de um jardim de infância em Londres. "Vim para ajudar, não para conversar", e parte veloz na sua bicicleta maluca dobrável cheia de utensílios. Ah, e "no photos, please" disse.

Azar e Dlzar também vêm da Síria, da cidade de Musl, recém-tomada pelas forças do Daech. "O Estado Islâmico rouba os tanques do exército iraquiano. E de onde você acha que vêm os tanques do Exército iraquiano? Dos Estados Unidos, claro. Eles são indestrutíveis, tanques muito mais fortes do que os outros. Os curdos tentam resistir, os peshmergas, mas nunca dura muito tempo", explica Azar com seu inglês perfeito.

Na hora de me despedir, minha pseudocara de brava se desmancha em muitas, muitas lágrimas, quando digo para Azar, olha, talvez nos vejamos ainda por aí, e ele mesmo responde: "Não. A gente se vê, mas é do outro lado". Azar me dá um meio abraço encabulado, nem ele nem eu sabemos o que fazer com o meu choro, onde colocar o choro entre a New Jungle e o mundo, entre este espaço de calamidade e a possibilidade de uma espécie de Disneylândia que é simplesmente estar fora deste espaço de calamidade.

Tolerância religiosa total

tt-7Em Jungle existem seis mesquitas no campo, e uma grande e impressionante igreja cristã, a Notre Dame da New Jungle, a Nossa Senhora da Nova Selva, tudo construído com plástico, fita crepe e galho de ávore/madeira.
Tem biblioteca. Tem tendas dos médicos sem fronteiras. Tem lojinhas que vendem tênis e sapatos a 15 e 20 euros, redbull, refrigerante, cigarro. Um afegão me aborda sorrindo, calçando um bom par de docksides à la francesa, com saltinho, e pergunta se ficou bom. Digo que sim. Morrendo de rir, ele responde: "Talvez para você". As lojinhas são dos próprios refugiados, para os refugiados. Nenhum sujeito veio ou vem me encher o saco. Na verdade, sou eu que incomodo. Docemente, cheia de sorriso e cansaço, mas incomodo, manquitolando e anotando e olhando.

Domingo teve missa na igreja cristã. Não poderia ter deixado de ir: foi por causa de uma foto da Reuters dessa igreja que eu decidi vir a Calais. A liturgia é cantada num idioma que, segundo meus amigos brasileiros, deve ser algum dialeto etíope, já que os etíopes constituem a maior comunidade cristã da Nova Selva.

Fonte: Opera Mundi

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