Crise política: não há disputa. Há uma composição

Por Patrícia Fachin

Dizer que a Agenda Brasil é uma proposta do Senador Renan Calheiros "não esconde o fato de existir uma aliança cada vez mais forte entre PT e PMDB, com protagonismo deste último em relação ao primeiro", diz Marcelo Castañeda em entrevista à IHU On-Line.

Na avaliação dele, as 29 propostas da Agenda Brasil "traduzem um desejo tanto de Dilma quanto do PT para tentar recuperar o prumo do neodesenvolvimentismo como pano de fundo do neoliberalismo em voga".

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Castañeda pergunta: "Que espaço para golpe existe com apoio do PMDB, da Globo, das principais empresas do país?" Se houve golpe, frisa, "ele foi dado pelo próprio PT ao longo dos seus governos, mas em especial a partir de junho de 2013, quando, para mim, o partido morreu como possibilidade de construir alternativas à esquerda na medida em que preferiu a repressão ao diálogo". Segundo ele, a "governabilidade", que justifica as ações do governo e suas coligações ao longo dos últimos 14 anos, mostra ainda que "não parece haver qualquer disputa entre a ‘força paulista' e as demais forças e grupos, mas uma composição".

Em relação às manifestações de domingo, 16-08-2015, que focaram na crítica à presidente Dilma e ao ex-presidente Lula, o pesquisador considera que elas não trouxeram "qualquer sinalização constituinte no que diz respeito aos possíveis caminhos para sairmos das crises". E conclui: "Cabe verificar como será a manifestação do dia 20 (quinta) para termos um panorama da situação, bem como os próximos passos da Lava Jato e a implementação da Agenda Brasil".

Marcelo Castañeda (foto abaixo) é doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRJ e graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é bolsista de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - PPGCom/UERJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é a Agenda Brasil e por que ela é proposta neste momento?

Marcelo Castañeda - Grosso modo e da forma como a narrativa midiática apresenta, a Agenda Brasil é um pacote de medidas visando a melhoria do ambiente de negócios e infraestrutura, o equilíbrio fiscal e proteção social, que foi sugerido pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) à presidente Dilma Rousseff (PT) a fim de superar a crise econômica em curso.

Na minha opinião, representa a passagem do protagonismo na gestão das crises, do PT para o PMDB, no âmbito da coalizão governista. Dizer que é de Renan Calheiros não esconde o fato de existir uma aliança cada vez mais forte entre PT e PMDB, com protagonismo deste último em relação ao primeiro.

IHU On-Line - Quais das propostas da Agenda Brasil trariam mais impacto para a sociedade brasileira? Por quê?

Marcelo Castañeda - A flexibilização da legislação e aceleração do licenciamento ambiental, a regulamentação das terras indígenas, a revisão de alíquotas e a questão previdenciária são questões que, dentre todo o pacote que não vou comentar item por item, mostram uma opção por facilitar a vida das empresas para estimular o crescimento econômico, sem falar na polêmica possibilidade de cobrança por faixa de renda para atendimento no SUS. Essa última medida parece que será retirada, mas mostra bem o caráter privatista e de favorecimento do mercado, como se isso fosse gerar empregos, que vem apresentando queda ao longo do primeiro semestre. É a retomada neoliberal em tempos de austeridade, indo contra o meio ambiente, as minorias étnicas e os mais pobres.

IHU On-Line - Por que a Agenda Brasil é um ataque à democracia brasileira?

Marcelo Castañeda - Se considerarmos que é mais uma "solução" decidida "por cima" e que terá consequências diretas sobre quem está "em baixo", que não foi consultado, isso traduz uma medida que só tem de democrático o fato de ter sido tecida entre aqueles que são nossos representantes. Penso que está na hora de exercermos a democracia de fato, decidindo inclusive rumos e saídas da crise. No momento em que o governo federal pede união para superar a crise, eis que surge um pacote salvador das hostes governistas. Neste sentido, acho que é um ataque à democracia e uma louvação da politicagem mais baixa, representada na figura do contestado presidente do Senado, e do mercado.

IHU On-Line - Por que a presidente aceitou a Agenda Brasil? Qual é a identificação do PT ou da presidente ou do governo com essa agenda?

Marcelo Castañeda - Chega a soar inocente essa ideia de que o PT está acuado pelo PMDB ou "pela direita". Essas pessoas se falam, tecem articulações, almoçam e jantam juntas. A presidente não aceitou, ela já sabia. A identificação do PT é total. As medidas traduzem um desejo tanto de Dilma quanto do PT para tentar recuperar o prumo do neodesenvolvimentismo como pano de fundo do neoliberalismo em voga. O PT se cacifa como o melhor gestor do capital no contexto brasileiro. Por isso, ganhou as eleições e se mantém no poder.

"É a retomada neoliberal em tempos de austeridade, indo contra o meio ambiente, as minorias étnicas e os mais pobres"

IHU On-Line - Quando se trata de analisar a conjuntura econômica e política, o que você entende por "sair da mistificação e enxergar a realidade", conforme você mencionou em artigo recente?

Marcelo Castañeda - É entender que não existe um maniqueísmo da polarização em que o PT é o lado bom e os outros são ruins. O PT é parte do problema. O que chamo de mistificação é a capacidade que o PT tem de se blindar contra a crítica, de se colocar numa posição vitimizada de forma a angariar apoio. Isso ficou claro nas eleições, mas se mantém na campanha contra Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que aparece como vilão, quando na verdade há um ano estava de mãos dadas com Dilma, ou mesmo na famigerada estória de um golpe em curso que nunca virá. Está na hora de superar o PT, ainda que o vazio gerado no campo das esquerdas seja assustador. É isso que quis dizer com "enxergar a realidade".

IHU On-Line - Você disse ainda que o "golpe foi dado. E, no andar de cima, tudo flui ‘democraticamente': PMDB e Globo no comando, Firjan e Fiesp no apoio, e o PT é o disfarce". O que você entende por "golpe" e quando esse "golpe" foi dado?

Marcelo Castañeda - Fiz uma alusão ao comportamento paranoico que toma conta de segmentos cada vez menores e menos influentes no que se configura como esfera governista. Que espaço para golpe existe com apoio do PMDB, da Globo, das principais empresas do país? Neste sentido, se houve golpe ele foi dado pelo próprio PT ao longo dos seus governos, mas em especial a partir de junho de 2013, quando, para mim, o partido morreu como possibilidade de construir alternativas à esquerda na medida em que preferiu a repressão ao diálogo. Se houve golpe ele se deu na campanha mentirosa nas eleições quando se pintava um país maravilhoso, sem crise, e não é isso que estamos vendo. Não preciso lembrar a todo instante das eleições. Por isso, acho que esse golpe vem sendo dado por dentro do governo ao longo dos últimos 12 anos com o papel cada vez mais estratégico do PMDB na tomada de decisões.

IHU On-Line - Qual é o peso das forças de São Paulo na condução da política brasileira hoje? Que forças são essas?

Marcelo Castañeda - Continua bem forte, em especial pela polarização entre PT (governo federal) e PSDB (governo paulista e contraponto ao PT no governo federal), mas sempre cadenciada pela capilaridade do PMDB em nível nacional.

IHU On-Line - Existe oposição a essas forças ou grupos que disputam o mesmo espaço que essa força paulista? Quais?

Marcelo Castañeda - Neste momento não vejo, apesar da forte influência de São Paulo na escala política nacional, que se possa analisar o quadro nacional somente em função dos estados da federação e das disputas entre esses estados, que são importantes, sem dúvida. Existem imbricamentos entre partidos, estados e municípios com assimetrias que fazem com que a hegemonia paulista no comando da federação (entre PT e PSDB nos últimos 20 anos) seja balanceada com uma força do PMDB no âmbito dos estados e municípios, sem falar dos outros partidos, que compõem a base de sustentação destes governos aparentemente paulistas. Em suma, as disputas se materializam na formação do que se chama governabilidade, seja na composição ministerial ou nas negociações entre Executivo e Legislativo. No entanto, não me parece haver qualquer disputa entre a "força paulista" e as demais forças e grupos, mas uma composição.

IHU On-Line - Quem é a direita que você menciona e de que modo ela "desmantelou as redes de ativistas"?

Marcelo Castañeda - A "direita", este fantasma que vira e mexe evocamos, traduz, neste caso específico do desmantelamento das redes de ativistas que mencionei em um artigo recente , todas aquelas forças que atuaram na repressão e na pacificação do que emergiu como levante popular e multitudinário em junho de 2013. Tomando como exemplo o Rio de Janeiro, onde este levante teve força até outubro, não tenho problema em colocar o PT como parte desta "direita", que é mais associada a partidos como DEM e PSDB. Precisamos, cada vez mais, cultivar as esquerdas como uma perspectiva que emerge das lutas travadas entre os que estão "em baixo" contra os que estão "em cima", rompendo com as divisões enquadradas que regem a institucionalidade que nos oprime.

"Está na hora de superar o PT, ainda que o vazio gerado no campo das esquerdas seja assustador"

IHU On-Line - Na semana passada, assistimos a uma articulação do vice-presidente, Michel Temer, falando da importância de união no Brasil, e sua aproximação com José Serra. Nessa semana, parece que o cenário mudou com a aproximação entre Dilma e Renan. Como você vê esse tipo de articulação? Quais são as forças políticas que compõem esses movimentos e quais os interesses delas?

Marcelo Castañeda - Esse movimento pendular é típico do PMDB, que se movimenta no sentido de manter e ampliar a sua capacidade de influenciar nos rumos de qualquer governo, se beneficiando da disputa polarizada que nos domina, entre PT e PSDB, que não mostra sinais de esgotamento no curto e médio prazo. A chantagem é o que move a expansão do PMDB, que hoje, como já disse, assume, cada vez mais, o protagonismo da coalizão governista.

Quanto às forças políticas, de forma simplificada podemos destacar um neocorporativismo que busca juntar segmentos industriais nacionais com sindicatos e movimentos já institucionalizados na vertente petista aliada, de um lado, e interesses de uma liberalização maior (se é que isso é possível) entre os tucanos, com o que pode ser visto como uma espécie de coronelismo renovado do PMDB (mas entre outros partidos também) remediando as articulações quando uma ou outra vertente se encontra no poder.

IHU On-Line - Que desfecho essa crise política pode ter?

Marcelo Castañeda - Minha perspectiva não é muito animadora. Estamos num processo de escalada do conservadorismo em função das escolhas que o único partido que detinha a esperança da mudança, que era o PT, fez em prol da governabilidade e do investimento em commodities para se manter no poder nos últimos 12 anos. Neste sentido, parece que o PMDB assume uma importância cada vez maior na manutenção desta governabilidade, o que pode ser visto na participação de Lula e Dilma na construção da tal Agenda Brasil, que, no fundo, estava combinada nos bastidores. Até agora, as "soluções" encontradas para lidar com a crise política atual atendem aos segmentos mais conservadores e aos interesses do mercado em detrimento de qualquer possibilidade de abertura democrática que possa incorporar as demandas populares. Desta forma, haverá um distanciamento cada vez maior das instituições políticas dos anseios da população com o fechamento do sistema político em si, o que soa trágico.

IHU On-Line - O que seria uma agenda de projeto para o Brasil na atual conjuntura?

Marcelo Castañeda - Na minha opinião, este projeto passaria pela adoção de uma perspectiva de radicalização democrática cada vez mais distante. Isso compreenderia o envolvimento e engajamento da população no sentido de gerir e determinar o que queremos para a saúde, a educação, a habitação, a segurança pública, as cidades, o meio ambiente, a cultura, a geração de energias, as taxas de juros, enfim, envolveria decidir o que queremos que seja feito pelos governos.

Evidentemente, esse projeto não interessa ao poder constituído, mas não impede que a sociedade civil (esta noção que parece não ter muito lugar no cenário brasileiro) possa se afirmar de forma constituinte a fim de pressionar qualquer governo a executar esse projeto. Os dois caminhos (via governo ou via sociedade) são penosos e só podem ser estabelecidos no longo prazo e através de processos pedagógicos.

"A chantagem é o que move a expansão do PMDB"

IHU On-Line - Que leitura você fez das manifestações de domingo, dia 16 de agosto?

Marcelo Castañeda - As manifestações que ocorreram no domingo (16/08) constituem a terceira de uma série iniciada em março, com uma segunda em abril. Em termos quantitativos ficou entre as duas: foi menor que a de março, mas maior que a de abril. Neste sentido, não se pode falar de um declínio. Foi uma manifestação massiva organizada pelos grupos que atuam nas redes sociais e teve a participação presencial do senador Aécio Neves (PSDB-MG) como novidade, reforçando a polarização com o polo governista.

Nas redes sociais, a ironia e o espanto conviviam, inclusive houve uma reação antecipada bem-sucedida na hashtag #CarnaCoxinha no Twitter. O fato é que me parece que a pauta anti-Dilma, que poderia envolver impeachment ou golpe, vai envolver sim um sangramento da popularidade da presidente até as próximas eleições, contando com o enfraquecimento ou inviabilidade de Lula como candidato ou fiador a fim de favorecer uma volta do PSDB ao governo federal. Parece ser essa a estratégia mais consistente para o "Fora Dilma", repetindo de forma invertida o que aconteceu quando o PT chegou ao governo federal repetindo "Fora FHC".

A questão é que temos crises a lidar e me parece que esta manifestação de domingo, ainda que tivesse uma pauta na sua convocação, ficou marcada apenas pela crítica à Dilma e Lula (que ganhou um boneco inflável caríssimo em Brasília) e não traz qualquer sinalização constituinte no que diz respeito aos possíveis caminhos para sairmos das crises. Cabe verificar como será a manifestação do dia 20 (quinta) para termos um panorama da situação, bem como os próximos passos da Lava Jato e a implementação da Agenda Brasil.

IHU On-Line - Qual foi a agenda da manifestação de rua do dia 16?

Marcelo Castañeda - Interessante perceber como, tirando o fato de uma das manifestações (do dia 16) querer o afastamento de Dilma, as pautas das manifestações do dia 16 e do dia 20 em relação à crise são muito semelhantes (como expôs brilhantemente a Camila Pavanelli de Lorenzi, o que mostra uma incapacidade muito grande dos movimentos e grupos de esquerda no sentido de produzir alternativas neste momento de crises (pois, além da política e econômica, temos a ambiental, a das metrópoles, para ficar em duas das que não são tocadas). No que diz respeito ao clamor das ruas, fica claro que existe uma pressão anti-Dilma que se mantém, como as manifestações do dia 16 mostraram. Resta ver como serão as manifestações que se apresentam como uma defesa da legalidade no dia 20, que, por mais críticas que possam ser alguns segmentos que delas vão participar, como o PSOL, se traduzem no apoio ao governo em exercício.

Neste sentido, vale destacar o esforço de pesquisadores como Pablo Ortellado (USP) e Esther Solano (Unifesp), que vêm tentando entender a composição das manifestações anti-Dilma em São Paulo, bem como de Fabio Malini (Labic/UFES), que vem mapeando o que acontece nas redes sociais. Só sinto falta de uma perspectiva comparada com as manifestações governistas.

"Fica claro que existe uma pressão anti-Dilma que se mantém"

IHU On-Line - O que as ruas podem fazer nesta situação de crise política e econômica? Vê alguma proposta surgindo das ruas?

Marcelo Castañeda - As ruas podem se articular no sentido de construir uma alternativa que fuja da presente polarização, mas isso não é uma tarefa fácil. Trata-se praticamente de constituir uma sociedade civil ativa, mobilizada e organizada que consiga pressionar qualquer governo em suas múltiplas escalas. No contexto do Rio de Janeiro, onde vivo, venho participando de algumas iniciativas que chamam atenção neste momento que qualifico como sendo de recomposição das lutas, das redes e ruas interligadas. Ainda que não exista um projeto comum, proliferam iniciativas, sendo que venho participando da construção dos Círculos de Cidadania, uma iniciativa autônoma que vem tomando corpo de forma lenta e gradual no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, entre outros, envolvendo uma forma de apostar na cidadania, no cotidiano e no desejo como forma de ação política.

Essa proposta pode não ter um fim em si, sendo algo aberto que deve se articular com outras propostas e projetos que surgem e tem como base a autonomia e a possibilidade de constituir alternativas. Cada vez mais, precisamos ter paciência e humildade combinadas com coragem de fazer o que for preciso para sairmos do vazio que parece eminente. As saídas dependem de nós que não estamos encastelados no poder constituído.

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