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Apesar de o capitalismo ter sido "o sistema de produção histórico que mais gerou riqueza material em todos os tempos", também foi responsável pela "grande desigualdade relativa", diz José Eustáquio Alves à IHU On-Line, ao analisar o atual cenário econômico global e brasileiro.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele contextualiza o quadro das desigualdades no mundo e lembra que ela foi maior entre as economias avançadas e os países em desenvolvimento nos primeiros 200 anos do capitalismo, mas, desde a década de 1990, "passou a existir um processo de convergência entre os países", o qual proporcionou um quadro de redução das desigualdades. Contudo, o "alerta" na atual conjuntura, pós-crise financeira de 2008, é "para a possibilidade de interrupção destes ganhos", enfatiza.
Alves frisa que o "mundo ainda não se recuperou da crise financeira internacional que teve início com a quebra do banco Lehman Brothers, em 2008", e a tendência daqui para frente é um cenário de "estagnação secular", considerando que "o alto crescimento econômico não tem sido a regra, mas a exceção".
Segundo ele, foi na primeira década do século XXI que o Brasil viveu "seu período virtuoso, com redução concomitante da pobreza e da desigualdade. O ganho médio anual do salário mínimo foi de 4,7% no governo FCH (1995-2002) e de 5,5% no governo Lula (2003-2010). Houve um crescimento significativo do padrão de consumo e um aumento da chamada ‘classe média'". Embora seja possível "comemorar a redução da desigualdade pessoal da renda", Alves chama a atenção de que "também é preciso reconhecer que o país continua muito desigual quando comparado com outros países, tais como Estados Unidos, China e Argentina (que possuem Gini de renda em torno de 0,450), Cingapura e Uruguai (Gini em torno de 0,400) e Japão e Coreia do Sul (Gini em torno de 0,300)".
Na avaliação dele, ainda sobre os efeitos da crise internacional de 2008, as perspectivas para o futuro "não são boas". "Além da desaceleração do crescimento econômico internacional, o cenário para os anos 2015 e 2016 é de queda do valor das commodities e aumento da taxa de juros nos Estados Unidos. Isto vai impactar o Brasil, que já vive grande desequilíbrio externo (déficit de mais de US$ 80 bilhões em Transações Correntes) e interno, com taxa de inflação acima da meta do Banco Central, preços administrados defasados e grande déficit orçamentário. Uma desvalorização do real pode colocar pressão, por exemplo, sobre o preço dos alimentos, aumentando o descontentamento popular", pontua. E acrescenta:
"Evidentemente, a conjuntura global estagnada deve afetar ainda mais o Brasil, dificultando o equilíbrio macroeconômico e as políticas públicas de proteção social. Se a economia brasileira também ficar estagnada ou crescer pouco nos próximos anos, haverá um aumento dos déficits gêmeos (interno e externo), agravamento da crise fiscal, além do aumento do custo da rolagem das dívidas. Neste contexto, ficaria difícil expandir as políticas de transferência de renda".
José Eustáquio Diniz Alves é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestre em Economia e doutor em Demografia. É professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE/IBGE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o livro de Thomas Piketty, O Capital do Século XXI(Capital in the Twenty-First Century), contribui para a discussão acerca da desigualdade no mundo?
José Eustáquio Alves - O livro "Capital no século XXI", do professor da Escola de Economia de Paris, Thomas Piketty, teve o mérito de recolocar o debate sobre acumulação de capital e desigualdade em uma visão de longo prazo. No capítulo 2, ele mostra que entre o ano 1 e o ano de 1700, tanto o crescimento da economia quanto o da população mundial foi de mero 0,1% ao ano, resultando em estagnação da renda per capita mundial. Entre 1700 e 1820, houve aceleração do crescimento populacional (0,4% aa) e econômico (0,5% aa), mas o crescimento da renda per capita mundial permaneceu muito baixo (0,1% aa). Todavia, após a Revolução Industrial e Energética, houve grande crescimento da população e um incremento ainda maior do produto econômico. O crescimento da renda per capita foi de 0,9% ao ano entre 1820 e 1913 e de 1,6% ao ano entre 1913 e 2012. Nos chamados "Trinta anos gloriosos", entre 1950 e 1980, o crescimento da renda per capital global atingiu seu valor máximo de 2,5% ao ano. Assim, o capitalismo, para o bem ou para o mal, foi o sistema de produção histórico que mais gerou riqueza material em todos os tempos (embora à custa do empobrecimento da natureza), mas também grande desigualdade relativa.
O crescimento foi pré-condição para o desenvolvimento econômico e social, o que beneficiou a maior parte da população mundial, com aumento da esperança de vida e diversificação do padrão de consumo, mas os benefícios foram apropriados de forma desigual entre os trabalhadores e os proprietários dos meios de produção e do capital. Nos países hoje desenvolvidos a desigualdade no acesso à riqueza aumentou até os anos 1920, caiu durante a crise dos anos 1930 e prosseguiu diminuindo durante a Segunda Guerra Mundial e no período de recuperação do pós-guerra e das condições demográficas favoráveis. Este fenômeno foi teorizado de forma otimista na chamada "Curva de Kuznets" (na forma de U invertido), que pressupunha um crescimento da desigualdade no começo do processo de desenvolvimento e uma menor concentração com o avanço das forças produtivas.
"O reajuste do salário mínimo deve ter no próximo governo o menor avanço desde o Plano Real (independentemente de quem venha a ganhar as eleições de 2014)"
Porém, Piketty conseguiu mostrar, a partir da construção de uma base de dados longitudinais, que a desigualdade de renda e riqueza, nos países desenvolvidos, voltou a subir a partir do final dos anos 1970, gerando uma curva em forma de um "N" e não na forma de um "U" invertido, estabelecida na "Curva de Kuznets". As perspectivas para o século XXI são de menor crescimento e de maior desigualdade.
IHU On-Line - E quais são as tendências das desigualdades entre os países?
José Eustáquio Alves - A desigualdade entre as chamadas "economias avançadas" e os países "em desenvolvimento" cresceu nos primeiros 200 anos da história do capitalismo, período de "divergência" na repartição da renda e riqueza entre os países e regiões do mundo. Contudo, a partir principalmente dos anos 1990, passou a existir um processo de "convergência" entre países "ricos" e "pobres", graças principalmente à liderança do alto ritmo de crescimento da China (que tem cerca de 20% da população mundial). Piketty mostra como se deu este processo de convergência e alerta para a possibilidade de interrupção destes ganhos.
Segundo o Fundo Monetário Internacional, na primeira década do século XXI, as "economias emergentes e em desenvolvimento" cresceram três vezes mais rápido do que as "economias avançadas". O "Terceiro Mundo" passou a produzir a maior parte do produto econômico global. Em 2013 o PIB mundial (em poder de paridade de compra - ppp) atingiu 87 trilhões de dólares. As economias do "Norte global", com uma população de 1,1 bilhão de habitantes, atingiram um PIB conjunto de 43,1 trilhões de dólares, representando 49,6% do total da economia mundial e um PIB per capita anual de 41,6 mil dólares. As economias do "Sul global", com uma população de cerca de 6 bilhões de habitantes, alcançaram um PIB de 43,9 trilhões de dólares, representando 50,4% do PIB mundial, tendo uma renda per capita de 7,3 mil dólares (em ppp).
Desta forma, nos últimos anos, a desigualdade entre os países ricos e pobres diminuiu. Isto foi possível porque houve uma reversão nos "termos de intercâmbio desigual" no âmbito internacional. A entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, possibilitou que o gigante asiático reduzisse o preço dos produtos industrializados e aumentasse a demanda e o preço das commodities, favorecendo os países em desenvolvimento. A África e a América Latina se beneficiaram muito deste processo, melhorando suas contas externas e internas. Idem para o Brasil.
IHU On-Line - Sobre as desigualdades de renda no Brasil, que análise geral é possível fazer dos dados do Pnad 2013? O que eles indicam sobre a situação das desigualdades no Brasil?
José Eustáquio Alves - O Brasil figura na lista dos países mais injustos do mundo. Vamos falar primeiro da desigualdade pessoal da renda. Embora o Brasil tenha apresentado uma das maiores taxas de crescimento econômico do mundo, entre 1950 e 1980 - cerca de 7% ao ano -, o crescimento se deu com concentração de renda. Na chamada década perdida (anos 1980) houve redução da renda per capita e manutenção da desigualdade extrema. Até 1994, o Índice de Gini estava em torno de 0,600, colocando o Brasil no topo dos países mais desiguais do globo. Depois do Plano Real houve uma ligeira redução da desigualdade, mas o Índice de Gini ainda estava na casa de 0,570 na virada do milênio.
Segundo relatório do IBGE divulgado, entre 2002 e 2009, houve a maior queda da desigualdade, medida pelo rendimento médio mensal de todas as fontes, com o Gini passando de 0,570 para 0,521. De maneira sintética podemos dizer que esta redução ocorreu em decorrência de três fatores:
Retomada do crescimento econômico (devido ao boom das commodities), com aumento do emprego, especialmente do emprego formal, e melhora das contas internas e externas do país;
Vigência do melhor período do bônus demográfico, com redução da razão de dependência e crescimento das taxas de atividade;
Políticas governamentais "pró-pobre", tais como valorização do salário mínimo (que beneficia os trabalhadores e aposentados), Bolsa Família, BPC (Benefício de Prestação Continuada), etc.
Na primeira década do século XXI, o Brasil viveu, podemos dizer assim, seu período virtuoso, com redução concomitante da pobreza e da desigualdade. O ganho médio anual do salário mínimo foi de 4,7% no governo FCH (1995-2002) e de 5,5% no governo Lula (2003-2010). Houve um crescimento significativo do padrão de consumo e um aumento da chamada "classe média".
"O ganho real de 2015 já está definido (2,5%)"
Mas cabem duas observações. Primeira, se por um lado devemos comemorar a redução da desigualdade pessoal da renda ocorrida na década inicial do século XXI no Brasil, também é preciso reconhecer que o país continua muito desigual quando comparado com outros países, tais como Estados Unidos, China e Argentina (que possuem Gini de renda em torno de 0,450), Cingapura e Uruguai (Gini em torno de 0,400) e Japão e Coreia do Sul (Gini em torno de 0,300).
A segunda observação é que, lamentavelmente, o ritmo de queda da desigualdade diminuiu no começo da segunda década do século XXI. No governo Dilma Rousseff o ganho médio do salário mínimo foi de 2,9% ao ano. Entre 2011 e 2013 o Índice de Gini, medida pelo rendimento médio mensal de todas as fontes, caiu somente de 0,506 para 0,501. Portanto, uma desigualdade ainda muito acima de todos os países citados anteriormente.
IHU On-Line - O aumento do salário mínimo foi considerado como uma medida central para diminuir as desigualdades. Entretanto, considerando a atual estrutura do mercado de trabalho e o crescimento no setor de serviços, é possível continuar reduzindo a desigualdade ou corre-se o risco de manter baixos salários? Quais são as perspectivas para a redução da desigualdade pessoal da renda nos próximos anos?
José Eustáquio Alves - Infelizmente as perspectivas não são boas. Além da desaceleração do crescimento econômico internacional, o cenário para os anos 2015 e 2016 é de queda do valor das commodities e aumento da taxa de juros nos Estados Unidos. Isto vai impactar o Brasil, que já vive grande desequilíbrio externo (déficit de mais de US$ 80 bilhões em Transações Correntes) e interno, com taxa de inflação acima da meta do Banco Central, preços administrados defasados e grande déficit orçamentário. Uma desvalorização do real pode colocar pressão, por exemplo, sobre o preço dos alimentos, aumentando o descontentamento popular.
O reajuste do salário mínimo deve ter no próximo governo o menor avanço desde o Plano Real (independentemente de quem venha a ganhar as eleições de 2014). Todo início de ano, o piso salarial sobe conforme o montante da inflação dos 12 meses anteriores mais o crescimento do PIB de dois anos antes. O ganho real de 2015 já está definido (2,5%). Como o PIB deverá ficar estagnado no corrente ano, o cenário é de ganho médio anual na faixa de 1 a 2% entre 2015 e 2018. No mesmo período, a taxa de juros real básica da economia (Selic) deve ficar, no mínimo, entre 4 e 5% ao ano. Neste quadro, a desigualdade de renda deve aumentar, pois, como mostrou Piketty, a riqueza se concentra quando a taxa média de retorno sobre o capital (r) é maior do que a taxa de crescimento econômico (g). Ou em termos matemáticos: quando "r > g". Ou seja, os desafios do Brasil serão enormes nos próximos anos.
IHU On-Line - E no que se refere às desigualdades de riqueza entre as classes sociais?
José Eustáquio Alves - Uma medida mais ampla da concentração de renda e riqueza é a chamada "desigualdade funcional", que mede não as diferenças entre os salários, mas a participação dos salários no conjunto da produção de riqueza de um país.
Artigo do pesquisador peruano Germán Alarco Tosoni, publicado pela Cepal em 2014, mostra que a participação dos salários no PIB na América Latina sempre foi baixa e caiu entre 1950 e 2011. No Brasil, que reproduz o padrão latino-americano, os números mais altos aconteceram no governo Juscelino Kubitschek, com participação dos salários em quase 50% do PIB. A participação dos salários no produto total atingiu o nível mais baixo na virada do milênio e apresentou uma pequena recuperação na última década, mas sem alcançar o nível de 1957.
Artigo de Marcio Pochmann, de 2006, mostra que no Brasil somente 5 mil famílias, de um total de 51 milhões de famílias, absorviam 45% de toda a renda e riqueza do país. O relatório sobre a riqueza global, do banco Credit Suisse, de 2012, mostra que 8,1% das pessoas adultas do mundo detinham 82,4% da riqueza (patrimônio). Ou seja, embora não haja dados sistemáticos para medir a distribuição funcional da riqueza e da propriedade, os poucos estudos existentes apontam para uma situação de concentração ainda maior do que a apropriação pessoal da renda.
Também neste ponto o livro de Piketty ajuda a prever o futuro, pois ele mostra, no capítulo 5, que a redução do crescimento econômico tende a elevar a participação do capital na renda, aumentando a relação capital-produto. Portanto, não só o cenário mundial, mas o quadro brasileiro para os próximos é desanimador, quando se analisam as perspectivas da distribuição funcional da renda e da riqueza.
"O Brasil não está livre da volta do aumento da pobreza e da desigualdade"
IHU On-Line - Quais devem ser os reflexos das políticas públicas adotadas hoje nos próximos anos? Considerando um projeto de país, vamos conseguir reduzir a pobreza e a desigualdade?
José Eustáquio Alves - O mundo ainda não se recuperou da crise financeira internacional que teve início com a quebra do banco Lehman Brothers, em 2008. Segundo Robert Gordon (2012), o período anterior de crescimento excepcional do capitalismo não vai mais se repetir devido aos ventos contrários que tendem a reduzir ou estagnar o ritmo do progresso técnico e o desenvolvimento econômico. Robert Solow (2014), prêmio Nobel de Economia, fala na "estagnação secular" como o novo normal. Existem diversos autores mais pessimistas do que Piketty e mais preocupados com a instabilidade política e os limites ecológicos da Terra. No ciclo longo da história, o alto crescimento econômico não tem sido a regra, mas a exceção.
Evidentemente, a conjuntura global estagnada deve afetar ainda mais o Brasil, dificultando o equilíbrio macroeconômico e as políticas públicas de proteção social. Se a economia brasileira também ficar estagnada ou crescer pouco nos próximos anos, haverá um aumento dos déficits gêmeos (interno e externo), agravamento da crise fiscal, além do aumento do custo da rolagem das dívidas. Neste contexto, ficaria difícil expandir as políticas de transferência de renda.
Os dados da PNAD 2013 mostram que a população não economicamente ativa (de 15 anos e mais) subiu de 52,6 milhões de pessoas, em 2012, para 54,1 milhões em 2013. A taxa de desemprego aberto subiu de 6,1% para 6,5% no mesmo período. Além disso, há o desemprego oculto e o desalento. Para o Dieese, o desemprego nas regiões metropolitanas está acima de 10%. Pela PNAD, o número de jovens (15-29 anos) que nem estudam e nem trabalham ("geração nem-nem"), está na casa de 10 milhões de indivíduos. Há muita gente fora do mercado de trabalho e das atividades produtivas. Segundo dados do Ministério da Saúde, houve um recorde de 152.013 óbitos por mortes violentas (causas externas) em 2012, atingindo principalmente os jovens e os pobres.
Sem a recuperação do emprego e da renda será difícil garantir a proteção social e a segurança pela via exclusiva das políticas assistencialistas. Como mostrou Thomas Piketty, o poder econômico e político concentrado reforça o patrimonialismo e a corrupção, beneficiando os rendimentos do capital em detrimento dos rendimentos do trabalho. O Brasil não está livre da volta do aumento da pobreza e da desigualdade. A curva de Kuznets também não se aplica para o Brasil. Ando muito pessimista com a economia global e nacional. Vejo muitas dificuldades pela frente. Mas tomara que eu esteja errado.
Fonte: www.ihu.unisinos.br