Irmã Maria Della Neve Ferrari: ???Sua terra de missão... os pobres de Roma!???

Arlindo Pereira Dias, SVD em Roma

Urci Ferrari, conhecida pelos ‘barboni' (um dos nomes dado na Itália às pessoas em situação de rua) como Irmã Maria Della Neve, nome que recebeu como religiosa. Uma vocação missionária às avessas, do sul para o norte. Nascida aos 4 de julho de 1932, chegou na Itália em 1966, tempo em que o continente Europeu ainda não se considerava terra de missão. Os ventos do Concilio Vaticano II alargaram e enriqueceram a compreensão do envio missionário como "ad-gentes", "inter-gentes" e "cum-gentes". Ofereceu-se por duas vezes para ir como missionária ao Madagascar ou Cabo Verde (1986) e à Índia (2007). "Um coração grande e horizonte largo; sua terra de missão os pobres de Roma", comenta a Irmã Maria Mabel Spagnuolo, superiora geral das Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade, as Orioninas. De pequena estatura, Maria Della Neve disse um dia numa roda de irmãs, com o sorriso brejeiro nos lábios: "As coisas pequenas são as melhores! As pessoas mais humildes são as melhores do mundo; não é verdade?"

Chamado especial
Percorreu uma longa trajetória desde sua saída da cidade mineira de Ubá até se instalar definitivamente na cidade eterna. Na mocidade, migrou para o Rio de Janeiro, onde vivia com a tia. "Um dia voltamos da missa do primeiro sábado do mês. Eu habitualmente tomava café com minha tia e depois do café fumávamos um cigarrinho. Minha tia saiu no quintal e me pediu que lhe levasse um cigarro. Abri a gaveta, tinha também um cigarro pra mim. Não tive coragem de colocá-lo na boca. Senti uma iluminação: você tem que ser pobre, viver para os pobres. A minha vida tinha sido sempre doada aos pobres, mas por dois anos eu estava vivendo uma frieza espiritual", comenta Della Neve.

Um amor sem preconceitos...
Ursi Ferrari teve uma conversa com o pároco e este lhe aconselhou a não deixar o trabalho. Passou a dedicar-se à catequese em uma favela próxima ao Santuário de Nossa Senhora da Penha no Rio. Acabou deixando o emprego. Como legionária de Maria foi trabalhar com as mulheres prostituidas da Central do Brasil. O cardeal do Rio de Janeiro havia fundado uma casa de recuperação e a colocou como dirigente. "Era um trabalho bonito, mas também exigia muita força e um amor sem preconceitos. Às vezes os vizinhos escreviam à delegacia de policia para reclamar que eu estava lá com aquelas moças. Todos diziam que eu estava doida. Um dia meu pai veio à cidade e me disse ‘você é doida de ficar no meio desta gente. Vou levar você de volta pra Ubá'. Ninguém me leva mais de volta", respondeu. Foi mesmo um caminho sem volta! A Legião de Maria a fez compreender que a sua vida deveria ser dedicada aos mais pobres, aos sem nada, através de uma comunidade. Conheceu a congregação de São Luis Orione e ingressou no grupo chamado ISO (Instituto Secular Orionino) como leiga consagrada.

Da Cidade Maravilhosa à Cidade Eterna
No ano de 1966 foi enviada a Itália para o processo de formação. Após experiência no Instituto leigo decidiu se consagrar como religiosa. Transferida a Roma no início dos anos 90 engajou-se numa nova missão. Encontrou dom Luís di Liegro, padre diocesano que se sensibilizou pela situação dos pobres em Roma. "Começava a chegar a Roma gente de todos os cantos do mundo em busca de trabalho. Outras pessoas já viviam pelas ruas. O bispo pediu a ele que encontrasse um jeito de atender aos pobres da cidade", explica. "Ao conhecer a proposta do fundador, São Luis Orione, ele pediu à Madre Geral irmãs que o ajudassem a socorrer os pobres. Ele havia decidido abrir um albergue. A Madre Geral me disse: ‘se a Maria das Neves vai lá ela estará muito contente, pois é o trabalho que mais a inspira'. Eu então me ofereci", relata com entusiasmo. Durante mais de 20 anos se juntava cotidianamente aos funcionários e voluntários da Caritas. Coração e portas abertas a todos. Fazia de tudo um pouco:, cortava o cabelo, fazia a barba, limpeza nos pés das pessoas e era responsável pelo dormitório que acolhe cerca de 130 homens.

O irmão "Tumor"
No dia 12 de abril de 2012, Maria das Neves partiu para a Casa do Pai. Dia 14 de abril, cerca de 300 pessoas participaram de sua Missa de Ressurreição que aconteceu no mesmo lugar onde cerca de 400 pessoas recebem refeição diária. Era o espaço onde passou boa parte da sua vida e de onde se despediu dos seus amados.

Ao recordar o câncer que a vitimou em um ano, Irmã Maria Mabel assim se expressou: "O Cristo sofredor, que durante toda a vida ela vislumbrou, amou e serviu nos pobres e nos últimos, tinha agora tomado forma nela mesma. Com a mesma generosidade com que havia se doado, acolheu o sofrimento que agora habitava no seu corpo, sem perder o ânimo, com um grande amor à vida, com o habitual senso de humor e realismo que a fazia chamar o tumor de seu ‘irmão'."
Irmã Mabel descreve sua última conversa com Irmã Maria: "Estou indo à minha casa, sabes?". "Vais pra tua casa?" "Sim..." e fixando-me nos olhos disse: ‘sabe de que coisa eu estou falando?'; "Sim, daquela lá de cima?"; "Maria das Neves, estas tranquila?". "Sim, sim", afirmou. "Tens medo?" "Não, respondeu rapidamente, balançando a cabeça decisivamente".

Presépio de pão, dentro do pão
O presidente da celebração, um dos bispos auxiliares de Roma, dom Guerino Di Tora, que foi por vários anos diretor da Caritas e conviveu com Irmã Maria disse durante a sua homilia que "a presença e a dedicação dela humanizou o ambiente do albergue". Durante a oração dos fiéis, uma fila de pessoas que foi expressando em forma de oração o seu afeto por ela. O sentimento dos que conviveram com Irmã Maria veio expresso na frase de Renato Porcu escrita no pano colocado sobre o caixão: "Para todo o amor que você distribuiu não existe uma medida. O tempo construiu a tua imagem, agora queremos desfrutar do teu sorriso quotidiano".
Na mensagem dirigida aos presentes, a Madre Geral definiu Irmã Maria como pessoa de "caráter forte e decidido, mas ao mesmo tempo terno e compassivo". Recordou que no natal do ano passado, em um concurso de presépio no albergue ela fez o seu "de pão e dentro de um pão. Queria recordar Belém como ‘Casa do Pão? Acabou expressando simbolicamente aquilo que foi a sua vida, um pão partido e doado, partilhado e entregue".
Outra de suas companheiras de comunidade, a irmã Bernadeth Oliveira, conselheira geral brasileira assim a definiu: "Existem pessoas que fazem a vida dos empobrecidos terem um sentido e um sabor diferente, através de um gesto de solidariedade, de uma mão quente e amiga estendida que sabe acolher, independepemente da raça, cor ou religião".

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Entrevista:
"É duro ver pessoas sem casa, sem trabalho..."
Há cerca de um mês, no pequeno e simples quarto da Casa Geral arranquei dela uma última entrevista que transcrevemos a seguir. "Nunca imaginei que o meu batismo me daria tanta alegria!", exclamou ela antes de me dizer adeus.

Que experiências mais te tocaram junto aos pobres de Roma?
Irmã Maria: Apesar de ter visto muita gente pobre no Brasil, não imaginava que as pessoas pudessem chegar ao estado de algumas que encontrei nestes anos: cheias de piolho, com o corpo todo ferido, inchadas, com feridas infectadas por terem dormido no chão por períodos de até 18 anos. Sentia-me ferida por dentro ao ver que as pessoas perderem a dignidade. É duro ver pessoas sem casa, sem trabalho, sem seu núcleo familiar.
Lembro-me de uma senhora chamada Carmela. Ela pesava 130 quilos e não gostava de banho. Eu e outra irmã que vinha comigo fizemos amizade com ela. Finalmente ela aceitou ser lavada. Depois disto até decidiu ir ao cabeleireiro para ficar elegante no Natal.

Outra vez o médico do albergue me chamou e disse: ‘irmã Maria, chegou uma senhora. Não posso levá-la ao hospital. Está tão suja e eles não aceitariam interná-la. Você teria coragem de dar-lhe um banho?' ‘Claro que sim', respondi. Tinha febre altíssima. Quando a levei ao banheiro a roupa estava grudada ao corpo, pois um buraco se abriu em sua coxa de tanto ela dormir no cimento. Eu a coloquei dentro da água com remédio. Quando passava remédio saiam vermes de dentro. Disse à irmã que estava comigo: vá ao guarda roupa e pegue o melhor vestido que tiver. Quando terminamos, ela só sabia dizer em inglês: "meu Deus, meu Deus!" Eu me perguntava: com uma pessoa consegue viver assim?

Que espiritualidade brotou do serviço de limpar os pés das pessoas?
Irmã Maria: Às vezes chegavam pessoas que não podiam andar. Numa Quinta-feira Santa o porteiro e me disse: ‘tem uma pessoa que não pode andar pois tem o pé todo ferido'. As pessoas que vem aqui na Caritas caminham durante todo o dia. Os pés delas são piores que os pés de Jesus quando ele caminhava na Galileia. Dava medo. É preciso ter coragem! Mas, para quem não tem, a coragem vem!

Ele não tinha onde colocar a mão de tanta casca grossa, uma encima da outra. Eu o coloquei sentado com o pé na água. Olhei o relógio. Era a hora do lava-pés na Igreja e eu não podia ir. Tinha a impressão de ver o rosto de Jesus naquela pessoa. Disse a mim mesma: ‘é hora do lava-pés na Igreja, mas eu não preciso me preocupar porque estou fazendo um serviço semelhante ao lava-pés da Igreja'. Aqui eu o faço no pé de uma pessoa viva que representa Jesus. Sabia que estava deixando Ele por ele. Vivo esta situação espiritual de lavar os pés de Jesus nos pés do pobre.

Foi a reflexão sobre o meu serviço no albergue. Nunca me arrependi de não poder rezar as vésperas com minhas irmãs quando tinha que ficar para servir aos pobres. Agora que estou doente, isto me parece a coisa mais importante que há no albergue. O dia melhor para mim é aquele que eu lavo os pés dos pobres, pois eu também me alivio de algumas penas.
Eu recebi muito no albergue: a amizade, a confiança, o amor que eles têm por mim. Às vezes eles nos falam de coisas profundas da vida deles. São Luis Orione nos dizia: quando vocês ajudam as pessoas no corpo, devem ajudá-las também no espírito. Vocês são mães e devem fazer um trabalho espiritual com os filhos. E esses filhos ali são muito especiais pra mim.

Como você vive a enfermidade?
Irmã Maria: Sempre tive muita saúde e força. Quando soube que tinha um tumor no pâncreas, rezei muito para receber o resultado com calma, paz e serenidade. Eu não sou a primeira a ter essa doença. Comecei então a minha via sacra de ir e voltar do hospital. Dizem que eu fui muito corajosa, mas durante a terapia não tive tanto problema.

Estou vivendo a doença com muita serenidade. Não se pode sofrer com desespero. Houve um momento em que psicologicamente comecei a ter medo. Tive muita ajuda espiritual e apoio das pessoas que me querem bem. Estou muito serena. Fico triste porque neste momento não posso fazer o meu serviço. Espiritualmente é duro, só mesmo segurando nas mãos de Deus e confiando muito em Nossa Senhora. Eu rezo muito. Muita gente vem me visitar. Recebi a unção dos enfermos e me deu muita força.

* Arlindo Pereira Dias, SVD, é conselheiro Geral dos missionários Verbitas em Roma.

Fonte: Revista Missões

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