Elaine Tavares *
Tenho acompanhado a gritaria nas redes sociais sobre o panelaço durante a fala da presidente Dilma. Não consigo ver nada de "absurdo" nesse ato. Até gosto de ver que, finalmente, as classes sociais no Brasil estão se manifestando, de um lado e de outro.
Quando a direita governou o Brasil, por centenas de anos, as manifestações eram da esquerda. Lutas de toda ordem, por direitos, por liberdade, por terra, por salário, enfim, tudo o que torna a vida dos empobrecidos, dos trabalhadores, dos explorados, melhor. Sempre houve manifestações, protestos, gritos de fora esse, fora aquele. Os ricos, os opressores, a classe dominante nunca precisou se manifestar por nada. Eles tinham o controle de tudo. A única coisa que precisavam fazer era ordenar as tropas da repressão para o combate aos lutadores.
Nos últimos tempos, na vez que os ricos se sentiram realmente ameaçados - e eram apenas algumas reformas propostas pelo povo e aceitas pelo governo de João Goulart - o que eles fizeram? Aliaram-se ao exército e colocaram as tropas nas ruas. Prenderam, torturaram, mataram todos aqueles que ousavam gritar ou lutar contra o estado de exceção. Eles tinham a força e a usavam, sem pruridos.
Eis que o Lula chega ao poder em 2003. Nem era mais esquerda, dada as alianças que fez com a burguesia nacional representada pelo seu vice. Mas, ainda estava colada em Lula toda uma história de resistência ao regime militar, toda a construção - pela esquerda - feita pelo Partido dos Trabalhadores. Então, etiquetaram o governo dele de "esquerda", embora estivesse completamente integrado a lógica social democrata. Ceder em alguns pontos para os trabalhadores e empobrecidos, mas manter os privilégios da sempre classe dominante. A jogada funcionou. Em tempos de crescimento econômico, a claudicante classe média encantou-se com a possibilidade de comprar coisas, ter crédito e tudo mais. Ficou do lado de Lula. Os graúdos não tinham grandes perdas econômicas, os mais pobres conseguiram garantir políticas públicas.
Ainda assim, o governo de Lula foi bastante generoso com a velha elite rapinante. Garantiu boas vantagens aos banqueiros, introduziu os transgênicos, ampliou a fronteira agrícola dentro da lógica do agronegócio, domesticou o movimento de trabalhadores. Fez dois mandatos em relativa paz, com a economia controlada.
Então veio a Dilma, sua herdeira política, seguindo a mesma cartilha e com a mesma coloração de esquerda, embora as bandeiras já estivessem rasgadas e o caminho cada vez mais liberal. Já no final do primeiro mandato, a curva do crescimento começou a cair e aí a classe dominante - que nunca saiu do poder - começou a cobrar mais e mais. Já não era suficiente o que tinha, afinal, com o crescimento em baixa as vantagens não bastavam. Precisava retomar o controle do barco. Até então tinha sido razoavelmente cômodo aturar os chamados "esquerdinhas" com suas políticas para a pobreza. Mas, com o anúncio de tempos difíceis era melhor retomar o leme. Mesmo que os dois governos petistas estivessem sempre ajoelhados diante dos interesses dos graúdos, já não era mais possível deixar que seguissem no comando.
Veio a reação. Aécio Neves disputou com Dilma no mesmo campo. Poucas eram as diferenças programáticas, e as que existiam estavam colocada nas políticas públicas. O PT ainda conserva em alguns dos seus quadros um certo sentimento "cristão", fruto de suas origens, o que permitiu acreditar que se manteriam as políticas de combate à pobreza que, de fato, deram um certo respiro a milhões de pessoas no país. Nada muito revolucionário no campo político, mas significativo para quem nunca teve renda ou acesso à educação.
E foi aí que começou a reação da classe dominante para retomar o comando do estado, já que das demais áreas nunca saíram. Não queriam mais os petistas a seus pés. Os queriam fora do caminho, definitivamente. Na queda de braços eleitoral, Dilma levou vantagem, mas, completamente dominada pela tal "governabilidade" decidiu abrir mais espaço para os velhos grupos de poder. Não mais escamoteando. Tudo bem às claras. Kátia Abreu na Agricultura, Joaquim Levy , na Fazenda, Cid Gomes na Educação, e até Mangabeira Unger - que sempre orbitou o círculo tucano - na Secretaria de Assuntos Estratégicos. Nada poderia ser mais servil.
Entre os eleitores ingênuos da presidenta, veio a perplexidade e um sentimento de traição. Não bastasse isso, a locomotiva dos BRICs começou a diminuir a marcha. Voltou o mantra do "apertar os cintos", como sempre apenas para a classe trabalhadora. A classe média, que aplaudiu a abertura do crédito sem limite nos dois governo Lula, começou a esganiçar, ainda que não compreendendo totalmente a armadilha na qual estava colocada. Grita contra o governo porque vê o preço da coisas subir, no mais das vezes, seguindo o diapasão da mídia. O panelaço foi um pouco isso, motivado pelo aumento da gasolina e alavancado pela greve dos empresários do transporte.
Nesse cenários passamos a ver algo ao qual não estávamos acostumados: a ação de "luta" da classe dominante. No tabuleiro político, com o desejo de retomada do comando do Estado, as forças da direita começaram a tramar o seu roto tecido de apoios. E são esses apoios - concretizados na pequena burguesia, em parte da classe média e alguns integrantes da classe dos trabalhadores que seguem amarrados aos interesses da classe dominante - os que começam a se mexer em atos de protesto. Sim, porque a classe dominante mesmo, os ricos, os graúdos, esses não se dignam a sair de seu conforto para qualquer ação. Quem se manifesta é o grupo que a orbita.
É por isso que o "panelaço" se fez ouvir nos prédios mais refinados e mesmo nos redutos da classe média. São esses que fazem o trabalho braçal enquanto os velhos coronéis pitam seus charutos e observam, entre largos sorrisos e barrigas forradas. Não que não estejam aí também os trabalhadores, que aproveitam para extravasar suas demandas, o que é óbvio. É que o clima de "protesto" tem esse dom de contaminar, ainda mais quando apoiado pelos tradicionais inimigos das mobilizações. Vejam como a mídia cobre a greve dos professores do Paraná, por exemplo, em comparação com a chamada greve dos caminhoneiros. No Paraná são os "baderneiros", aos quais está destinada a força da repressão, nas estradas são os "heróis".
Longe de mim fazer a defesa do PT. Creio firmemente que foi justamente sua política claudicante que jogou o Brasil nessa espécie de limbo político, no qual as pessoas já não conseguem mais vislumbrar as fronteiras do que seja direita e esquerda, do que seja algo bom para as gentes, e do que seja interesses dos graúdos. Tudo está muito misturado, justamente pela incapacidade do governo em cumprir aquilo com o qual se comprometeu na campanha: guinar para a esquerda, avançar na democracia participativa, batalhar pelas bandeiras históricas da classe trabalhadora.
Meu papel como pessoa que pensa a realidade é expor os elementos da conjuntura desde meu ponto de vista. E o que vejo é a luta de classe se explicitando de maneira clara. E classe no contexto do que dizia Lênin: "Chamam-se classes a grandes grupos de homens que se diferenciam pelo seu lugar no sistema historicamente determinado de produção social, pela sua relação (na maioria dos casos confirmada e precisada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, por conseguinte, pelos meios de obtenção e pelo volume da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de homens em que uns podem apropriar-se do trabalho dos outros graças à diferença do lugar que ocupam num sistema da economia social". A luta que temos visto no Brasil é essa. O grupo que domina os meios de produção e que se apropria do trabalho das gentes quer retomar seu lugar à frente do comando do país. Não quer mais gerentes. E, para isso, está travando a sua batalha. Ela se dá nos meios de comunicação, nas ruas, e vai disputando corações e mentes. O mote é ser contra o PT, porque é esse partido que gerencia o barco.
Nossa desgraça reside no fato de quem nem a classe dominante nos serve, nem o PT, justamente por servir aos interesses dos primeiros. Teríamos de ter uma opção que brotasse da luta mesma, dos trabalhadores, dos oprimidos. Só que esta opção ainda está em construção. Muito trabalho ainda temos pela frente, inclusive o de barrar o golpismo, manobra das velhas oligarquias que apesar de serem donas do campinho e de todos os jogadores, ainda querem a bola. É preciso muita frieza política, muito estudo e muita compreensão da realidade para não cair no golpe do golpe. Seguir o trabalho de articulação e organização da classe trabalhadora, construir uma alternativa de poder que garanta o bem viver e fazer acontecer a revolução brasileira. Trabalho lento, mas necessário.
* Elaine Tavares é jornalista.
Fonte: Revista Missões