Do monólogo ao diálogo

Alfredo J. Gonçalves *

Palavras como individualismo e hedonismo, egoísmo e egocentrismo - entre tantas outras de igual teor e timbre - estão na ordem do dia. Traduzem não apenas um determinado comportamento e modo de ser, mas sobretudo uma visão de mundo que caracteriza a sociedade contemporânea. Descrevem, de forma particular, uma grande multidão, hoje majoritariamente urbana, instruída e globalizada que, não obstante atropelar-se a todo momento pelas ruas e praças da cidade, amarga boa dose de abandono, solidão, isolamento. São palavras que se aplicam a pessoas aparentemente saudáveis mas que, sem o querer e sem o saber, exalam certo mal-estar. Nessa gigantesca "multidão solitária" (David Riesman), o monólogo é por vezes a única forma de comunicação.

Paradoxalmente, em meio ao avanço sem precedentes das telecomunicações e da multiplicação dos meios de transportes, em lugar de pontes, tais pessoas parecem insistir em construir entre elas muros, barreiras e guetos. Alguns analistas falam de "sociedade atomizada": a exemplo do átomo, cujas partículas circulam ao redor do próprio núcleo, os desejos, esforços e paixões de grande parte da população giram em torno do próprio umbigo. Correm de um lado para outro, porque devem manter um grau mínimo de prazer e satisfação. Mas, em proporção inversa ao rio/mar de gente que cotidianamente se cruza e recruza nas grandes metrópoles, a tendência de cada pessoa é a de tornar-se uma ilha. Encaramujar-se dentro de um casulo protetor, diante da ameaça de ser incomodada, questionada, interpelada. Em semelhante ambiente fechado, pode acabar por destilar um respiro pesado que envolve a si mesmo e aos outros. Chega ao limite de um narcisismo progressivamente nocivo, venenoso, contagioso.

Isso explica o monólogo, seja ele individual ou coletivo. Este não se confude com o silêncio obstinado, nem com o mutismo ou a rebeldia, e tampouco com o ato de falar sozinho. Ao contrário, na maioria das vezes o monólogo é recheado de palavras, formado por um palavreado sem pé nem cabeça, que parece não ter fim. Todos falam a partir do mundo individual ou corporativo em que vivem (às vezes de forma simultânea), mas ninguém é capaz de ouvir. Cada pessoa ou corporação cultiva as flores do próprio jardim, deixa-se inebriar pelo seu perfume, contempla-as e enaltece suas cores e sua beleza. Raro, porém, aquele que tem olhos para o jardim do vizinho. Em palavras mais concretas, cada pessoa ou categoria move-se dentro do próprio universo de interesses, ideias, valores. Mas poucas são capazes de apreciar, por um instante que seja, o que o outro tem a dizer (pessoa ou associação). O mundo urbano não dispõe de ouvidos! Por outro lado, o silênco de duas pessoas que se amam ou aquele da contemplação mística constitui, não raro, o mais eloquente dos diálogos.

Desnecessário lembrar que semelhante modo de comportar-se ocorre nos ambientes mais variados e inesperados: nas relaçãões do casal, da família, da amizade, do lugar de trabalho, do clube ou associação, da igreja ou comunidade... Não que as pessoas deixem de conversar, repetimos. A conversação pode até ser intensa, buliçosa, estridente - mas não calorosa no sentido da atenção e da proximidade. Quantas vezes a própria estridência evidencia a necessidade de fazer-se ouvir por cima das vozes que se embatem e se atropelam umas sobre as outras! O monólogo é justamente a arte de falar e escutar sem ouvir. Escutar com os ouvidos, não com o coração. Uma troca de palavras, não de ideias, emoções e sentimentos. Uma relação superficial e desatenta que, por mais discursos que utilize (ou justamente devido ao seu excesso), ignora o universo cultural do outro. Apesar da avalanche e da lucidez das palavras, cada interlocutor mantém-se fechado ao universo do outro. Contato com a cabeça, não com o coração; com o intelecto, não com a alma; luz e lucidez, não calor!

O monólogo, inútil recordar, cria um mundo à parte - um gueto isolado - onde o indivíduo busca um refúgio. Foge do turbilhão das águas revoltas para não ser por estas arrastado. Incapaz de suportar a moda ou a "onda do momento", e não sabendo como argumentar contra essa corrente avassaladora, prefere esconder-se. A sociedade atual fornece uma série de instrumentos para essa fuga: o video game, o celular, o computador, o carro, os fones de ouvido, o quarto solitário equipado com televisor... E, no extremo oposto, a multidão e a conversação sobre tudo e sobre nada, como se costuma dizer. Assim, pode-se curtir o isolamento, seja no interior do próprio casulo, seja diluindo-se no rio anônimo da muldião apressada. Em ambos os casos, o que se procura é um deserto árido e estéril, que não se confunde com o deserto fecundo e fértil do silêncio, sendo este último, ao contrário, um tesouro inexaurível povoado e boas recordações e de rostos amigos. No fundo, enquanto o monólogo cria cercas, o diálogo amplia o espaço para o mútuo intercâmbo.

A passagem do monólogo ao diálogo consiste em uma tarefa lenta, difícil e faticosamente empenhativa. Num primeiro momento, exige romper com o isolamento, deixar o gueto aparentemente autoprotetor, quebrar a casca do ovo/casulo e, com coragem, colocar a cabeça para fora. Enfrentar sem medo os outros e o mundo. Sair de si mesmo - eis o passo inicial e absolutamente necessário. Tanto mais necessário quanto mais nos damos conta do tempo que se perde em afagar individualmente o próprio ego, buscando satisfações pessoais e solitárias de todo tipo. O resultado costuma ser uma atitude doentia e mórbida de autolouvação ou autocomplacência ou autocomiseração. E no fim da linha, espera-nos em geral o vazio, o tédio, quando não o medo puro e simples.

Mas não basta deixar a ilha. Tal abandono complementa-se com um segundo momento. Junto com a ilha, é preciso deixar uma série de objetos, atividades, situações que levam ao fechamento sobre si mesmo. Numa palavra, é preciso renunciar ao próprio brilho, muitas vezes falso, e que não passa da sombra de uma caverna (como diria Platão). Deixar-se penetrar até as entranhas pela luz do sol, isto é, pelos raios de outras ideias e outros valores. Abrir as portas e janelas da própria casa/casulo para dar espaço à brisa e à luminosidade que vem de fora, deixar-se rejuvenescer pelo ar da primavera, ganhar um novo ardor e entusiasmo, abrindo ao mesmo tempo oportunidade para limpar o mofo, a poeira e as teias de aranha que o tempo e a solidão acumularam.

E então, num terceiro momento, começa o diálogo. Abrindo espaço em nossa existência para outras vozes, concepções e pensamentos (não palavras ocas e discursos vazios), damo-nos conta que nossa visão de mundo não é absoluta, mas relativa. Não é totalmente errada nem totalmente correta, apenas diferente e parcial. Há valores e contravalores no universo que o indivíduo cria e no qual vive e se move, como também há valores e conravalores no universo de outros indivíduos. O que vale em nível individual e interpessoal, vale igualmente em nível familiar, grupal, étnico, comunitário... Toda pessoa, cultura ou nação cultiva fontes de água viva e, ao mesmo temo, sofre a sede de determinadas de lacunas, ressequidas e necessitadas de novo oxigênio. O coração de cada pessoa, bem como a condição humana, é terreno movediço e ambivalente, onde água e sede se mesclam, se entrelaçam e se complementam reciprocamente. Daí a necessidade do encontro, do intercâmbio de valores e contravalores, de depuração e purificação - enfim de diálogo franco e aberto, plural e livre.

Convém, entretanto, concluir com um um alerta. Os três momentos acima descritos não se verificam de forma linear nem ocorrem na sequência apontada. O processo de passagem do monólogo ao diálogo, em vez disso, vem acompanhado de avanços e recuos, altos e baixos, sucessos e insucessos, e pode iniciar de forma inesperada, sem qualquer tipo de lógica conceitual. Alegrias e tristezas, sentimentos e emoções, sonhos e esperanças - nada disso costuma obedecer à ordem matemática. O importante é deixar-se interpelar pelas surpresas e novidades do caminho. Ao longo deste, econtraremos pessoas, situações desafios. Uma atitude de abertura diante do "novo", por mais temido e incômodo que seja, ajuda a superar o monólogo e, simultaneamente, desencadeia a dinâmica espiral do diálogo.

Roma, 19 de fevereiro de 2015

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos.

Fonte: Revista Missões

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