Vocações com prazo de validade

Alfredo J. Gonçalves *

Prestes a celebrar o Ano da Vida Consagrada, convocado pelo Papa Francisco para 2015, não custa tecer algumas considerações sobre o título acima. Trata-se, evidentemente, de uma frase com sabor de caricatura, polêmica, extraída do âmbido do mercado, onde os produtos à venda devem expor aos consumidores o "prazo de validade", evitando com isso eventuais dissabores tanto por parte de quem compra quanto por parte de quem vende os bens em questão.

No caso concreto do comércio, o prazo de validade é mais do que um simples alerta. Indica uma data aproximada além da qual o produto à venda pode ter-se deteriorado, comprometendo, de um lado, a saúde do consumidor e, de outro, o bom nome da empresa que o produz e/ou comercializa. O que, em última instância, significa regular ou tomar providências para a proteção de ambos. Produto "vencido" é uma garantia de que o sistema de produção-comercialização-consumo é saudável e confiável.

Vocação: chamado e resposta
O mesmo não ocorre com o sistema vocação-formação-missão. Diferentemente do mercado de consumo, falta aqui uma instância reguladora que identifique com certa precisão os eventuais germes de deterioração no "chamado-resposta" de cada candidato ou candidata à Vida Religiosa Consagrada (VRC). Evidente que não faltam testes vocacionais, critérios mais ou menos rigorosos de admissão, consultas e acompanhamento psicológico, igual acompanhamento e diálogo com os respectivos superiores, opinião dos companheiros e coirmãos, tempos especiais para "rezar, meditar e rever" o próprio "sim"... Toda essa "artilharia pesada" encontra-se devidamente prevista nos manuais, programas e percursos formativos de cada Instituto ou Congregação.

Nem por isso alguns vocacionandos (jovens de ambos os sexos) deixam de se esconder. Cedo aprendem a arte do disfarce, da dissimulação e do engano. Alguns por ignorância ou simples falta de motivação, é certo, mas outros (e hoje são cada vez mais numerosos) conhecem bem os mecanismos para ocultar suas verdadeiras intenções. Ocultam-nas sob o véu invisível e indecifrável de uma espiritualidade formal, falsa e mecânica; ou também sob o comportamento aparentemente humilde, marcado pela obediência cega, a qual, no fundo, não passa de calculada subserviência; e ainda sob a máscara de amizades superficiais, costuradas horizontalmente (com os colegas) ou verticalmente (com os superiores), onde a sinceridade e a transparência deixam muito a desejar. Mais que hipocrisia, trata-se de uma estratégia de resistência e sobrevivência, com vistas a pavimentar o caminho que leva à VRC.

Tais "motivações" oblíquas e obtusas costumam permanecer adormecidas durante os anos de formação. Os candidatos (de ambos os sexos) sabem como fechar-se sobre si mesmo, e exemplo dos caramujos. Ao mesmo tempo, porém, sabem igualmente como desenvolver e cultivar uma atitude exteriormente aceitável, respeitosa, tanto nas relações ad intra (formandos e formadores) quanto nos relacionamentos ad extra (comunidades eclesiais, lideranças, pessoas do sexo oposto). Raramente levantam suspeitas e, com uma frequência inusitada, são capazes de ganhar as graças de todos. Não raro, logram ser os mais estudiosos no âmbito acadêmico, os mais bem desenibidos no campo pastoral e os mais bem comportados no interior dos seminários e conventos.

Como isso não se quer dizer que todos os "bem sucedidos" devam ser colocados sob nova suspeita, uma suspeitas às avesas, como se estivessem escondendo um determinado jogo. Tampouco quer dizer que a falta de sucesso constitui um passaporte automático para a profissão perpétua e entrada definitiva na VRC. Não é o sucesso ou o bom comportamento, e muito menos o grau de inteligência, que traça a fronteira entre as motivações verdadeiras e a falsa intencionalidade. Em todos os ambientes, profissões e caminhos vocacionais encontramos indivíduos bem ou mal intencionados. Por outro lado, nos critérios de seleção, diversos fatores entram em cena, num quadro bem mais complexo que inclui as várias dimensões da pessoa humana.

O importante é chamar a atenção para o fato de que uma boa parte dos candidatos à VRC (sempre de ambos os sexos) desenvolve uma capacidade inegável de camaleão. Adapta-se a todas as exigências e a todas as circunstâncias do período formativo, até chegar o dia da profissão perpétua. Logo em seguida, de forma imprevista e imprevisível, como que despertam as "motivações" ocultas e adormecidas: o novo professo abre as asas, afia as unhas e mostra os dentes, no sentido negativo de descartar os princípios recebidos no percurso formativo, como coisa do passado. Em alguns casos, por exemplo, despedem-se completamente dos livros, quando não da Liturgia das Horas.

Repentinamente revelam-se os desejos e interesses escondidos, nem sempre condizentes com a vida consagrada. Numa palavra, tais pessoas abraçam a vida religiosa sem qualquer compromisso com o patrimônio espiritual do Instituto ou Congregação (carisma religioso), por uma parte, e, por outra, desprovidos de qualquer responsabilidade pessoal ou comunitária. De forma inesperada e inoportuna, deparamos com uma atitude que pode ser traduzida com a seguinte frase (não dita, mas subentendida): "Agora, como religiso, religiosa ou sacerdote, posso fazer o que quiser"; "agora que cheguei lá, ninguém me segura"!

VRC e o contexto social
Convém, a esta altura, alargar o horizonte de nossa visão, introduzindo-a no contexto mais amplo, ou seja, no universo predominantemente urbano, moderno ou pós-moderno em que "vivemos, nos movemos e somos". Estudiosos do timbre de Gilles Lepovetsky (Era do vazio e Era do efêmero), Guy Debord (Sociedade do espetáculo), Zygmunt Bauman (Modernidade líquida, Amor líquido), David Riesman (Multidão solitária) e Umberto Galimberti (O hóspede inquietante - o niilismo e os jovens) - entre outros - alertam para o caráter provisório e efêmero das relações no mundo contemporâneo. Os laços outrora sólidos e os princípios pétreos parecem dissorver-se nas águas de uma corrente fluída e passageira, ou na nuvem virtual e volátil da Internet. O valor real e simbólico das tradições, que passava de geração em geração como patrimônio cultural e religioso, cede lugar à sede e à busca frenética de novidades.

Instituições históricas como o matrimônio e a família, a lei e o sistema jurídico, a administração pública e os políticos, a educação e seus fundamentos éticos, a religião e a moral - tudo tende a diluir-se no oceano ao mesmo tempo líquido, nebuloso e fugidio da modernidae. Abalam-se os alicerces do "contrato social", sobre o qual, ao longo dos últimos séculos, erguera-se o edifício da democracia e das relações socioeconômicas e político-culturais. A ideia de unidade ou de totalidade - uma espécie de significado cósmico de toda trajetória da humanidade sobre a face da terra - parece quebrar-se e fragmentar-se irremediavelmente. As certezas acabam sendo substituídas pelas dúvidas e inquietudes, as verdades dão lugar a opiniões, hipóteses e interpretações. Perguntas novas e imprevistas estão a exigir novas respostas. Como nos tempos de Freud é quase palpável "o mal-estar da civilização".

Semelhante tendência a volatizar ou liquidificar os valores sólidos e solidamente enraízados em compromissos duradouros penetra com toda força nos ambientes da VRC. Esta, de fato, não representa uma instituição etérea ou angélica, como que pairando acima das turbulências e tempestades mundanas, protegida pela mão invisível de Deus e imune aos riscos que lhe cercam. Ao contrário, todas as incongruências e contradições que sacodem, dilaceram e rasgam o tecido social, sacodem, dilaceram e rasgam igualmente os vínculos da vida consagrada. Também esta, como frágil embarcação em meio às ondas agitadas, sofre ameaças de naufrágio. No seu interior, da mesma forma que do lado de fora de seus muros, respira-se o oxigênio incerto daquele mal-estar.

Experiência versus experimento
Não que a vida contemporânea deva reduzir-se a "um vale de lágrimas" ou a "um mar de lama". A noção catastrófica e negativa dos avanços científicos e tecnológicos costuma ser cega ou míope. Não ajuda a entender o ritmo e o valor das inovações, por um lado, e, por outro, tampouco ajuda a valorizar as conquistas do progresso. São inegáveis os benefícios e a evolução, por exemplo, dos meios de comunicação e dos transportes, da medicina e das possibilidades de estender o tempo e a qualidade de vida do ser humano, do conforto pessoal e de novas formas de convivência com as coisas, os animais e pessoas... A própria revolução da informática, e em particular a Internet, tida não raro como vilã de todos os males, traz insuspeitada abertura para novas relações, encontros e crescimento recíproco. Em termos concretos, todo avanço tecnológico e toda forma de progresso inclui, ivevitavelmente, riscos e potencialidades.

Retomado o fio dos relacionamentos e compromissos humanos, no mundo de hoje o "experimento" parece tomar o lugar da experiência vivida em profundidade. Se fizermos de nosso olhar uma espécie de radar giratório, não será difícil constatar essa primazia do "experimento" não somente no ambiente da vida consagrada, mas nas relações de amizade e companheirismo, no namoro e no casamento, na vida familiar e nos laços de parentesco, na sociedade e na prática política... Os vínculos, antes duradouros e quase sagrados, se atam e desatam com extrema velocidade. "Vou tentar, se não der certo, parto para outra!". E se o radar se detiver, ainda que por breve tempo, no campo das mensagens eletrônico-virtuais, constatar-se-á que amizades, amores e até noivados se fazem, desfazem e refazem com inusitada rapidez.

Tal provisoriedade e liquidez dos vínculos humanos não pode deixar de ter reflexos no interior da VRC. Por exemplo, da mesma forma que, entre jovens de ambos os sexos (para não falar dos adultos), se descartam amizades, namoros, noivados e até casamentos, podem-se descartar igualmente as exigências com os votos de pobreza, castidade e obediência. Diante de semelhante contexto, qual o valor efetivo da profissão perpétua ou do sacerdócio? Também estes vínculos, espiritual e teologicamente sacralizados, sofrem a corrosão dos bens, coisas e laços "descartáveis".

Na vida contemporânea, mais que uma experiência profunda de amor, dedicação e entrega (seja no matrimônio, na profissão ou na vida consagrada), muitos buscam um simples "experimento". De novo, "se não der certo, parto para outra!" Em outras palavras, o experimento temporário e potencialmente descartável toma o lugar da experiência definitiva. Enquanto nesta última a vida toda é colocada em jogo, naquela faz-se uma aposta com a possibilidade de, a qualquer momento, rever a própria decisão e, consequentemente, de voltar atrás. "Quem põe a mão no arado e olha para trás, não serve para o Reino de Deus" (Lc 9,62)! Na experiência profunda e definitiva, coloca-se a primazia na doação integral e sem reservas da existência; no experimento, em vez de doar-se a si mesmo, a pessoa dá algo externo, uma parte de si e apenas por algum tempo, mas mantém reservada a "propriedade privada" da própria vida.

O cultivo do "sim"
Nessa diferença, é possível distinguir a "vocação com prazo de validade". De fato, o "sim" com reservas representa, em últma instância, um redondo não. Tanto o matrimônio quanto a profissão perpétua e o sacerdócio, se e quando celebrados com a intenção secreta de um "experimento", revelam-se inválidos. Mas essa pode ser uma forma simplicista de ver as coisas. A realidade costuma ser bem mais dinâmica, complexa e contraditória que nossos esquemas mentais. Na verdade, embora não possamos ignorar a mã fé de alguns, em grande parte dos casos nem mesmo para os noivos, os professandos ou os ordenandos as intenções são claras e transparentes.

Do ponto de vista da reta intenção no ato do sacramento, aquilo que cedo se revelará como "experimento", pode, aqui e agora, ser vivenciado como experiência definitiva. Em muitos casamentos fracassados, como também em muitos religiosos (de ambos os sexos) que abandonam a vida consagrada ou o sacerdócio, poderíamos dizer que raramente predomina a má fé. Com frequência, é um verdadeiro entusiasmo que fornece o combustível para iniciar a corrida. O "sim" parece sólido, robusto e pronunciado em caráter definitivo. Por que então em alguns anos (às vezes alguns meses) se transfiorma em "não"? Eis a pergunta que questiona, instiga e interpela não apenas os envolvidos, mas de forma ainda mais pronunciada os formadores. Mais ainda, põe em jogo todo o sistema formativo de um Instituto ou Congregação.

Não há respostas simples e imediatas. Mas a constatação não deixa dúvidas: muitas vezes um "sim" aberto, sincero e entusiasta (no matrimônio, na vida religosa ou no sacerdócio) logo se desgasta, sofre uma corrupção progressiva, até converter-se em "não". E então vem a pergunta fatal: o que ocorreu com Fulano de Tal? Quem, quando, onde e como erramos? O que não deu certo? Também não faltarão a ironia, a alegria secreta e sardônica, bem como os sorrisos disfarçados, onde se pode ler as palavras: "bem que eu previa", ou "bem que eu avisei" e ainda "eu já sabia"!

Numa tentativa de resposta, nenhum "sim" pode considerrar-se definitivo no ato da celebração. A intenção, sem dúvida, deve ser definitiva. Mas o "sim" deve ser cultivado, como a semente e a planta frágil. Não faltarão espinhos, pedras e momentos de estiagem. Tampouco faltarão ameaças e apelos, com o risco de um desvio insuspeitado. Daí a necessidade de, a cada hora e a cada dia, repetir a intenção inicial. Na vida consagrada e/ou sacerdotal, como também no matrimônio, não basta percorrer a nado a superfície das águas. Faz-se necessário mergulhos profundos, em nível pessoal e coletivo, na dor e na esperança, nas ilusões e desilusões, nas trevas e na luz, nas lutas e sonhos, nos temores e tremores, na cruz e na ressurreição.

Em conclusão, todo "sim" se nutre da àgua viva extraída da fonte, e esta tem nome e sobrenome: Jesus Cristo. As palavras e gestos, vida e obras do profeta de Nazaré constutiem um alimento e um combustível imprescindíveis para prosseguir no caminho. O desafio aqui tem uma tríplice dimensão: vem 1) de sua relação íntima, total e contínua com o Abba (=Pai); 2) de sua entrega sem reservas à causa dos pobres, indefesos, excluídos e últimos; e 3) do cultivo de uma convivialidade comunitária, viava e fecunda, fraterna e solidária.

Roma, Itália, 9 de outubro de 2014

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos.

Fonte: Revista Missões

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