A família cristã no mundo moderno

Helio Amorim *

Os ensinamentos da Igreja sobre a família já não são acolhidos passivamente pelos católicos como antes. Já não se submetem a doutrinas fechadas e impositivas sob ameaça de castigos eternos. A prática decorrente de seus ensinamentos passa por avaliações críticas dos católicos cada vez mais capazes de ajudar na busca sempre dinâmica da verdade nos procedimentos humanos individuais e sociais, iluminados pela fé. A Igreja estendeu por tempo demasiado a sua centralidade pastoral familiar na questão do divórcio e novo casamento, da paternidade responsável e rejeição do planejamento familiar por meios considerados artificiais, estes como afastamento da lei natural querida por Deus. Essa posição repressora causou um mal desnecessário para a acolhida a este e outros ensinamentos da Igreja.

As diferenças culturais entre as gerações no mundo moderno tornam extremamente difícil a transmissão de conceitos sobre casamento e família na visão integral dos cristãos adultos na fé. O desafio de hoje é a criação e manutenção de um modelo de relacionamento amoroso e respeitoso com os filhos, sem imposições autoritárias, mas de transmissão de valores humanos e cristãos. Os pais devem ser capazes de acolher as diferenças e entender o ritmo normal de maturação do adolescente e do jovem, sem criar barreiras para chegar à etapa de relações adultas entre pais e filhos. O êxito dessa transmissão estará sempre ancorada no exemplo e coerência de vida dos pais, mais efetiva do que simples discursos.

Desafios no pontificado de Francisco

A postura repressora do passado sobre teólogos e leigos que contestam questões mal resolvidas na vida da Igreja vai sendo revisada e removida. O celibato forçado dos sacerdotes, por exemplo, é um anacronismo prejudicial na vida da Igreja. Também as citadas posições sobre a vida conjugal e familiar caminham para soluções mais convergentes com a ciência e a caridade. Assim, normas canônicas e pastorais já não são tratadas como questões fechadas, dada a inconsistência das bases teológicas que as sustentaram.

Um extenso questionário do Vaticano em preparação ao Sínodo convocado para este ano, circula mundo afora para conhecer a posição de leigos sobre as normas atuais frente ao mundo moderno: novos tipos de relações matrimoniais chamadas irregulares, ou homossexuais, os recasados, a formação dos filhos nessas situações e outras questões ainda não estudadas em profundidade.

Frente a esses questionamentos, a única reação da autoridade religiosa, em qualquer nível, sempre foi, ainda no passado recente, a ameaça de condenação, os expurgos, proibições de ensinar ou mesmo de falar em espaços controlados pela Igreja - nunca a análise franca e desarmada de argumentos e proposições inovadoras.

Parece-nos interessante recordar, entretanto, o muito que tem mudado nas doutrinas e práticas da Igreja, não apenas nas grandes mudanças ocorridas ao longo de séculos, mas nos tempos de uma vida.

Os filhos dos divorciados que voltam a se casar

Uma situação familiar rara no passado torna-se hoje comum e já não leva os filhos a psicólogos. Mas os divorciados recasados constituem uma realidade pastoral relevante ainda mal resolvida. O conceito vigente pode ser assim resumido: o casamento é um sacramento divino por ser a união de um homem e uma mulher que assumem sua relação de amor tomando como modelo a relação amorosa de Deus conosco, amor fiel, gratuito, responsável, construtivo, comprometido com o bem do outro. A ruptura desse vínculo referido ao amor de Deus pode decorrer de uma deterioração irreversível desse amor humano e passar ao desamor ou a uma relação doentia de ódio e desprezo mútuo, deixando de ser, portanto, um sacramento, sinal do amor de Deus, porque se transformou no seu oposto. Não subsiste esse matrimônio como sacramento, como sinal do amor de Deus por seu povo.

Uma segunda união pode vir a existir e consolidar-se com base numa nova e talvez mais madura relação de amor, mais verdadeira e adulta, referida efetivamente à relação com Deus, portanto, sacramento. Assim deve ser acolhido pela Igreja, como acolhido será pela família e seus amigos. Perde qualquer sentido a proibição de comungar, o que se configura como violência espiritual contra o novo casamento, como se fora o único pecado sem perdão. O sacramento existiu antes, mas deixou de existir por falta do seu conteúdo essencial: o amor humano que toma o amor de Deus como modelo. Não mais existe na união desfeita, não obstante os frios registros formais em livros cartoriais ou paroquiais. Os recasados ouvirão palavras bondosas do sacerdote para que suporte esse sacrifício.

O efeito é desastroso para a relação da família com a Igreja por essa exclusão, naturalmente visível aos filhos dos casamentos desfeitos. Raramente o novo casal seguirá presente e atuante na vida da Igreja, sentindo-se rejeitado como os únicos "pecadores sem possibilidade de perdão". Essa rejeição já não faz mais sentido. Os filhos perceberão essa discriminação e se tornarão céticos em relação à caridade e à justiça na vida da Igreja. Tendem a se afastar igualmente.

As mudanças esperadas do Sínodo

As mudanças, essas e muitas outras, são hoje urgentes. Assim permaneceremos abertos ao muito que seguirá mudando nos próximos anos e décadas, permitindo-nos relativizar as "certezas" que se impunham. É claro que, como antes aqui afirmado, tudo o que se refere ao amor e à justiça, à humanização e à esperança cristã, à caridade e à solidariedade humana, permanecerá como essência da mensagem evangélica. O resto é dinâmico e evolutivo, criações humanas sob influxo da cultura, entendimentos provisórios, sujeitos a revisões em vista do avanço das ciências e da reflexão teológica que nenhum autoritarismo impedirá. Para isto, Deus nos presenteou com o papa Francisco.

* Helio Amorim é membro do Movimento Familiar Cristão - MFC

Fonte: Helio Amorim / Revista Missões

Deixe uma resposta

12 − dez =