Nei Alberto Pies *
Não somos o que, normalmente, escrevemos. Dificilmente, na escrita cotidiana, transportamos o que somos, na realidade, para uma folha de papel, ou uma tela de computador. Escrever, por isso mesmo, pode traduzir o "projetar-se para além-mundos cotidianos". Fazemos, por ela, a escrita, parecer significações que ainda não sabemos. Sendo assim, somos o que ainda não sabíamos que éramos, porque ainda não havíamos oportunizado a sermos do tamanho que só nós podemos projetar.
Incrivelmente, a arte da escrita faz parte da magia particular de cada um lapidar, desprender e apoderar-se das ideias, construir argumentos, produzir a existência, descobrindo assim as razões pelas quais vale a pena viver. Escrever pode ser a oportunidade de parirmos a nós mesmos. Quiçá, possam as mulheres compartilhar conosco, duplamente, a arte de parir, o que significa tornar concreto e presente o que até então permanece invisível aos olhos.
O domínio da escrita e, consequentemente, da leitura, não pode significar subordinação e, jamais, condição de superioridade. O que temos são diferentes formas e níveis de habilidades. Cada um desenvolve, em particular, a maneira de ser, viver e de encarar a vida nalguma forma de arte.
A escrita é uma habilidade que não segue receitas, formulários, horários e regras definidas. Como arte, precisa das condições mais subjetivas do que objetivas para, realmente, expressar, com verossimilhança, um pensamento ou ideia, num determinado momento, lugar, em que a gente se encontre.
Raras vezes nos satisfazemos com nossos escritos, sem produzir rascunhos. Rascunhos são fontes ricas e inesgotáveis de saber, que ainda não sistematizamos da forma como gostaríamos. No lixo, ou nos guardados, eles cumprem a função pedagógica de mostrar a distância entre o perfeito e o mais-que-perfeito a que nós próprios nos impomos. Por tal razão, são eles, os rascunhos, as tentativas que fazemos para organizar as nossas ideias. E, como tal, ainda não nos preenchem o suficiente naquilo que imaginamos ser a construção e organização ideal do nosso pensamento.
Constitui arte também o "preenchimento de vazios". De forma motivada, ou não, construímos nossas obras literárias. Muitas vezes no improviso, bem como no discurso elaborado e na maneira de expressarmos, sempre, um vazio. Em uma folha de papel, numa tela de computador, ou em outras linguagens em que podemos desfrutar, sempre é um espaço ainda não ocupado, uma palavra ainda não dita, um sentimento ainda não externado.
Como é bela, significativa e poderosa a arte de produzirmos a nós mesmos! Mesmo que limitados e em contradições, fazemos muito esforço para construirmos o nosso caminho, que jamais poderá ser o caminho de outros.
* Nei Alberto Pies é professor e ativista de direitos humanos.
Fonte: Nei Alberto Pies / Revista Missões