Biógrafos e biografados

Roberto Malvezzi (Gogó) *

O debate surrealista - e com todos os venenos - sobre a biografia não autorizada de grandes artistas de nosso meio tomou conta da mídia esses dias.

Hoje, tudo que era para ser público - terra, água, ar, florestas, rodovias, saúde, etc. - tornou-se privado. E tudo que era para ser privado - intimidade das pessoas, sua vida sexual particular, sua vida familiar, etc. - tem que ser público.

Nesses dias minha mulher fez uma observação numa foto das "belas da torcida" estampadas na página online da UOL. Ali só aparecem as bundas das mulheres, quase nunca seus rostos. O detalhe é que uma delas exibia a auréola do ânus. Portanto, o ânus da bela da torcida deve ser público. Por que não a vida íntima e familiar das grandes personalidades? Agora um fotógrafo americano decidiu fotografar e divulgar as relações sexuais de sua mãe com homens mais jovens. Nesses casos, entretanto, as fotos são divulgadas com consentimento das pessoas fotografadas.

Na área jurídica se faz uma distinção entre "calúnia, difamação e injúria". Todos são considerados crimes contra a honra. O argumento dos que se julgam no direito de expor a vida de todos para ganhar dinheiro com seus livros, sem autorização ou diálogo algum com o biografado, é que se alguém ficar insatisfeito, que recorra à justiça para ser ressarcido pelos danos morais que sofreu. Acontece que uma imagem destruída na mídia atual jamais volta a ser resgatada em sua dignidade integral. Não há redenção jurídica equivalente para quem foi moralmente destruído em público.

O filme "Cidadão Kane" - até hoje considerado um dos melhores de todos os tempos - já prefigurava o que seria a execração pública das pessoas pela mídia. Além do mais, junto com a pessoa está sua família e círculos de sua amizade.

Por isso, para os meios cristãos, todos esses crimes que execram as pessoas devem ser evitados. Em público se discute apenas o que é de domínio público, como a questão política, social, etc. A vida particular das pessoas deve ser respeitada, a não ser que a pessoa a queira revelar por livre vontade, ou se um crime particular tem consequências sobre o público. Mas, um princípio cristão como esse também é coisa do passado.

O que está por detrás dessa disputa é a avidez do público por detalhes da vida íntima das celebridades, o dinheiro que rende aos biógrafos e o mercado editorial. A ação movida para eliminar a autorização prévia vem de um grupo de editoras. O Congresso deve votar uma lei até o final do ano para anular esses empecilhos. Enfim, nada mais que razões de mercado.

Se assim os tempos atuais exigem, comecemos pelo direito de divulgar as contas bancárias das elites e onde elas guardam dinheiro no exterior. A polícia federal não precisará mais de autorização da justiça para grampear telefones e tornar seu conteúdo público, mesmo antes da justiça decidir se são verdadeiros ou não. A polícia, como nos tempos da ditadura, poderá invadir nossas casas sem permissão judicial. Depois recorremos. O que está em jogo é algum nível de privacidade no Big Brother contemporâneo.

Se a vida íntima das pessoas pode ser violada sem restrições, não há porque restringir o acesso a outros aspectos de suas vidas.

* Roberto Malvezzi (Gogó) é agente da Comissão Pastoral da Terra, CPT de Juazeiro, BA.

Fonte: Roberto Malvezzi / Revista Missões

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