Elaine Tavares *
Nos últimos dias assomou nos noticiários brasileiros a notícia de que um grupo de índios colombianos havia ocupado uma base militar na cidade de Toríbio, região de Cauca, expulsando dali o exército. As notas falavam que os indígenas já estariam cansados de viver sob o fogo cruzado das forças do Estado e da guerrilha comandada pelas Forças Armadas Revolucionárias Colombianas, as Farcs. Mas, a notícia, assim, solta, não dá conta do longo processo de luta e resistência das comunidades originárias daquela estratégica região. Como sempre, falta a imprensa brasileira o devido cuidado com a contextualização dos fatos.
A zona de Cauca é considerada um importante e estratégico corredor que liga a região amazônica ao oceano pacífico, com passagem também para o Equador e, por isso, desde muitos anos vem sendo disputada pelo Estado e pelas FARCs. Além disso, sempre é bom lembrar que a situação de guerra civil na Colômbia tampouco é de hoje. Isso começou no longínquo ano de 1948 quando Jorge Gaitán, um político liberal e progressista, às vésperas de ganhar a eleição presidencial, foi assassinado, levando o povo a uma explosiva revolta que foi violentamente reprimida pelas forças reacionárias, mandantes do crime. Desde aí, a população acabou sendo obrigada a se armar, para enfrentar as forças do exército como também os inúmeros grupos de bandoleiros que se aproveitaram do caos para roubar e saquear.
Essa situação de insegurança e de profunda violência também gerou - já na década de 60 - as forças revolucionárias que, com inspiração marxista, buscaram organizar o povo para uma reação organizada e ordenada de tomada do poder. Mas, a América Latina vivia a surpreendente revolução cubana e a reação dos Estados Unidos foi imediata. Não haveria de permitir que outro foco socialista nascesse nas terras de baixo. Não foi à toa que desde os anos 60 as ditaduras pipocaram por todo o continente.
Ao longo dos anos, com a ajuda militar e tática dos Estados Unidos as forças conservadoras seguiram dominando a Colômbia, enfrentando a persistente reação revolucionária. Esse processo que segue até hoje tem causado profundas feridas no corpo social. Lá se vão mais de 60 anos de conflitos e combates nos quais vão sendo ceifadas as vidas das gentes. Não bastasse essa realidade explosiva, ainda existem no país os chamados paramilitares, que são grupos de combate à guerrilha, geralmente formados por militares e mercenários que também impõem o terror. A eles se somam os narcotraficantes financiados pelo sistema internacional que igualmente investem em milícias armadas. No meio de tudo isso está o povo, as gentes que querem viver em paz.
A região de Cauca é um desses lugares assolado pelos grupos armados, justamente por sua localização estratégica. E ali, vivem comunidades indígenas que, nesses anos a fio, também entregaram seus filhos, ora ao exército, ora à guerrilha e que cotidianamente sofrem a ação das lutas entre essas forças armadas. São pelo menos 570 mil hectares de terras comunais, onde tradicionalmente essas comunidades plantam e criam seus animais.
A guerra civil, que teve seu espocar em 1948, aos poucos foi perdendo a sua própria memória. Geração após geração se viu enredada nos conflitos e na batalha diária pela sobrevivência. Muitos dos que viveram os primeiros momentos do conflito morreram no caminho, e os motivos da revolta foram ficando obscurecidos. Já faz tempo que a Colômbia busca um caminho para a paz, mas não tem conseguido pavimentar essa estrada. Primeiro porque o poder econômico aliado aos Estados Unidos não tem a menor intenção de permitir que os aliados saiam do poder. Por outro lado a guerrilha não avança mais do que a perpétua resistência. E no meio desse fogo cruzado estão as pessoas comuns.
Os indígenas colombianos tem uma longa história de resistência e de luta. Primeiro contra o opressor colonial e agora contra o Estado terrorista. A região de Cauca, particularmente, é muito aguerrida. Desde o ano de 1971 a população indígena organizou o Conselho Regional Indígena de Cauca, o CRIC, entidade que tem sido protagonista de muitas lutas, chegando também a organizar um grupo armado de autodefesa que acabou depondo as armas em 1991 em um dos acordos de paz. Assim como todos os colombianos eles precisavam defender suas vidas. Desde a organização do CRIC os indígenas passaram a reivindicar direitos que estavam perdidos nas contas da guerra: terra, educação, saúde, proteção da natureza da mão destruidora das mineradoras.
A ação de expulsão do exército de suas terras, assim como a de qualquer outro grupo armado - sejam as FARCs, os paramilitares ou os narcotraficantes - está amparada na decisão comunitária de dar um basta a desaparição sistemática das gentes. "Queremos semear a paz telúrica no nosso território e colhe-la na vida comunitária", dizem. Mas essa paz de que falam não é a paz dos vencedores de plantão, que significa a morte ou a submissão da comunidade seja ao exército ou à guerrilha. A eles não interessa dominar o espaço, mas sim conservar a terra para as próximas gerações.
Mais uma vez os indígenas estão dizendo a sua palavra, sempre ignorada nesses mais de 500 anos. A forma de organizar a vida pleiteada pelas comunidades indígenas não encontra parâmetros na forma imperial/capitalista - como quer o governo, nem na forma socialista, de matriz europeia - como quer a guerrilha. Os indígenas querem viver a sua vida baseada na lógica dos seus ancestrais, com autonomia e autogoverno. Eles querem o direito de impor a sua justiça comunitária, de definir sua economia, sua educação, saúde. Querem o direito de conservar, proteger e gerir os recursos naturais de seu território. Por isso eles derrubaram os portões do exército e as tendas da guerrilha. "Tanto um como outro nos expropria, nos tira a vida e não nos garante o direito de viver segundo nossa vontade autônoma. Uns trazem a guerra e outros querem nos dizer como resistir. Ambos nos negam como povo", afirmam.
Assim, as comunidades ligadas ao CRIC tem uma pauta simples, de quatro pontos:
1 - Que saiam todos os grupos armados do seu território
2 - Que respeitem a sua forma de organizar a vida
3 - Que deixem a eles o cuidado de seus recursos naturais
4 - Que não se aproveitem mais do seu sofrimento e tampouco falem sobre sua resistência.
Os indígenas de Cauca querem ser reconhecidos como comunidade autônoma e capaz. Já basta da mesma velha cantilena de que as gentes originárias precisam de proteção e tutelagem. Manter essa visão é estagnar no pior momento do mundo medieval. A esquerda e os intelectuais precisam entender de uma vez por todas que para compreender o mundo indígena é preciso se desvestir da episteme ocidental/eurocêntrica e olhar o mundo sob outra ótica, outra episteme, autóctone. Esse exercício de humildade e de respeito é hoje, na América Latina, uma obrigação. As gentes de Cauca estão ensinando. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça...
* Elaine tavares é jornalista. Blog da Elaine: www.eteia.blogspot.com
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Fonte: www.eteia.blogspot.com