Corpus Christi

Ronaldo Lobo *

Na instituição da Eucaristia encontram-se os maiores ensinamentos da Igreja primitiva rumo à missão.

A celebração do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo é festa tardia no calendário litúrgico. A euforia que ela cria é contagiante. Parece que a fé do povo se derrete aos pés de Jesus eucarístico, transformando-se num tapete colorido. As longas procissões, os caminhos enfeitados, os altares preparados, a presença dos adultos cheios da fé e das crianças alegres nas fileiras falam uma linguagem que só Deus feito Pão entende. Tal é o tamanho do carinho, respeito e amor do povo quando vem apalpar este Deus Pão que passa nas suas ruas. Raramente encontramos tamanha beleza em outras celebrações litúrgicas. O povo aprecia a presença deste Deus andando no meio dele, e tem dificuldade de encontrá-lo, no silêncio do sacrário fechado! No meio dos festejos, vale a pena perguntar, se entendemos o que celebramos.

Contexto
O contexto, portanto, é da festa da Páscoa. Durante esta solenidade, a cidade de Jerusalém ficava lotava de peregrinos. As autoridades, religiosas e políticas temiam levantes motivados pelos nacionalistas. Mais ainda: as autoridades religiosas já haviam feito um complô para matar Jesus, justamente naqueles dias. Jesus sendo judeu celebrava a festa junto com seus amigos. O evangelista Marcos mais tarde recorda à sua comunidade este episódio, nos anos 60-70 d.C.

A Páscoa dos judeus
A ceia pascal (dos judeus) era celebrada em vários momentos e com seus componentes simbólicos, de ritos, gestos, narrativas, e mitologias. Toda celebração pascal girava em torno do símbolo da refeição. Ou seja, uma refeição simbólica, antes da refeição real, no qual cada aspecto recordava o evento histórico da saída do Egito. Os participantes deviam ter postura e vestuário que recordava tal momento. Mais ainda, os pães ázimos e o cordeiro assado faziam parte do cardápio principal, junto às ervas amargas, e um doce feito de mel e nozes. Cada elemento recordava aos participantes: a pressa, o anjo da morte que passa adiante saltando as casas dos hebreus observando a marca do sangue do cordeiro nos batentes, o sofrimento nas mãos dos capatazes egípcios, a doçura e a alegria da liberdade.

Evangelho
Gostaria de limitar-me a comentar algo sobre o Evangelho deste dia, que acompanha a celebração tirada do evangelista Marcos (Mc 14, 12-16.22-26). A perícope do evangelho de Marcos, em dois fragmentos apresenta-nos a trama de Jesus nos últimos momentos da sua vida. No primeiro trecho (Mc 14, 12-16) descreve os preparativos para a ceia, narrados com todos os pormenores. O segundo fragmento descreve a ceia pascal que Jesus celebrou (Mc 14, 22-26), ou seja, a instituição da eucaristia. Aparenta-se um trecho litúrgico, introduzido pelo evangelista no contexto da última ceia.

Pão-Corpo
Inicia-se o rito com a bênção do pão (v. 22). Cada participante recebe parte do pão, porque participou da amizade compartilhada à mesa. O pão (lehem) em si e a refeição tem um lugar importante na tradição judaica. Nesta ceia a única diferença é que o pão distribuído é para eles, e só para eles! Mais ainda, a refeição da noite da Páscoa, a mais faustosa e a mais rica entre todas as refeições hebraicas. Nesta ceia, Jesus faz do pão seu próprio corpo, que acaba de ser preparado para a morte.

Jesus, sabendo que as lideranças judaicas e romanas tinham tramado a sua morte, celebra sua última páscoa. No seu interior, sabe da cruz e da morte que aparecem no horizonte. Serão consequências de sua vida, dedicada a serviço do Reino de Deus. Ele não foge, encara-as. Mas dá um significado novo e revolucionário à última páscoa que celebra: isto é o meu corpo! Jesus é para os seus discípulos o pão da vida (Jo 6, 35), e o pedaço carregará sempre a certeza da sua presença entre eles! Antes de ser entregue aos seus algozes, ele entrega-se a si próprio aos seus discípulos. Nas palavras de Jesus, o pão se torna o corpo, a carne, a existência humana. O corpo pessoal torna-se corpo da comunidade, para quem quiser, para quem precisar. Não para um, para muitos. A nós que gostamos de acumular, resta a questão: será que podemos comungar?

Vinho-Sangue-Aliança
Depois de partilhar o pão, distribui o vinho que está no cálice. Provavelmente, algo que acontece depois da ceia propriamente dita. O vinho que se torna sangue é o sangue derramado na sua morte violenta, no dia seguinte. Isto é o meu sangue da nova aliança, que vai ser derramado por muitos. Toda a sua pregação sintetizada pelas duas frases. A sua fala aponta à paixão e sofrimento da cruz do dia seguinte onde será selada a nova aliança. Desde a Antiguidade o sangue era visto como um mistério porque significava a vida.

A aliança entre Deus e os seres humanos era selada com o sangue de um animal sacrificado (Ex 24, 3-8). Nos sacrifícios dos animais, o sangue era derramado no altar (Lv 1, 5). Na festa da expiação, o sacerdote, depois de sacrificar um dos bodes (Lv 16, 18), pegava seu sangue, ungia o altar nos quatro cantos e no meio, para purificá-lo dos pecados do povo. O sangue derramado na cruz ajuda a ver o corpo despedaçado do Senhor, dado como alimento ao mundo. Ou seja, o pão e o vinho, transformam-se no corpo e sangue do Senhor, e assumem significados gigantescos na fé cristã. Mais ainda, na instituição da Eucaristia estão os maiores temas da pregação e do ensinamento da Igreja primitiva rumo à missão.

Conclusão
A ceia que Jesus celebra contém uma das últimas palavras que tem sensações de morte, as vibrações de uma dolorosa despedida, antes de uma execução cruel, injusta e tramada pelas autoridades. O que seria estar diante daquele que estava prestes a ser executado? Ficamos com sensações de dor, medo, angústia, revolta e completamente desnorteados. Nesta hora, aqueles que participam da ceia, são chamados a não abandonar aquilo que o Mestre pregou e viveu, mas levar adiante seu projeto. Pelo fato de participar na ceia, tornam-se aquilo que comeram, que tem significado dum pacto, a aliança. Os discípulos tornam-se um pedaço do corpo do Mestre. Hoje nós é que nos tornamos propagadores deste projeto. No meio do todo o júbilo, o significado do mistério da festa é grande demais. Quem entende ficará boquiaberto, sem palavras!

* Ronaldo Lobo, svd, é biblista e atualmente formador no Seminário Verbo Divino em Toledo, PR. Publicado na revista Missões, N. 05 - junho 2012.

Fonte: Revista Missões

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