O povo da Núbia

Elaine Tavares *

Estando no Egito, conhecer o povo núbio era uma exigência ontológica. Desde pequena as imagens dos escravos negros guardando as divindades egípcias me enchiam de estupor e curiosidade. Eram sempre mais dignos e belos que os próprios faraós que guardavam. E as mulheres, de pele retinta, destacavam-se como deusas, cortejadas e desejadas pelos filhos de Amon-Rá. Os núbios, mais do que escravos, eram um povo que tinha cultura e língua próprias e além de entregarem seus corpos, também eram sangrados das riquezas de sua terra, como o ouro e o marfim. Mais tarde, já adulta, fui saber que também houve um tempo em que governaram o Egito, não mais escravos, mas faraós, deixando sua marca indelével na cultura daquele esplendoroso país. Assim, quando o pequeno barco que navegava pelo Nilo aportou em Assuã eu me preparei para um encontro desde há muito esperado. Não foi em vão.

Um pouco de história
Cinco mil anos antes da nossa era, quando nas terras de Abya Yala (América Latina) começaram a vicejar povos como os tiahuanaco, collas, mayas e mexicas, no vale do rio Nilo, norte da África, já se organizava - com centenas de anos de história - o povo núbio. Há relatos que contam que essa pode ser a mais antiga civilização negra da África, com origens pré-históricas. Durante o domínio do Egito faraônico a Núbia era a região que separava o Egito da África subsaariana. Seu território era pródigo em riquezas como ouro, pedras preciosas e diorito, e se estendia desde a primeira catarata do Nilo até Khartum (hoje no Sudão). Abrigava, então, o generoso e fértil vale do Nilo assim como o deserto até o Mar Vermelho pelo leste, e até a Líbia pelo oeste.

Durante milênios esta região foi muito importante porque configurava um espaço de encontro entre o mundo Egípcio, que principiava a crescer como um poder regional, e os demais povos da África. Em 3.100 a.C, a Núbia foi conquistada pelo Egito que ora incorporava a nação a seu império, ora concedia que vivesse como um reino independente. Mas, o certo é que por muitas dinastias os faraós utilizaram os núbios como escravos e são eles os que se podem ver nas gravuras do Egito antigo a guardar os palácios e as tumbas.

No ano 2.000 a.C, a Núbia se fortaleceu e formou um reinado forte e coeso sob a dinastia Kush. Criou cidades importantes e sua capital Kerma era um fervilhante centro comercial, onde se negociava o ouro, peles de animais e marfim. O crescimento econômico da nação núbia outra vez acendeu a cobiça e o Egito voltou a dominar. Ainda assim, por volta de 1.700 a.C. a aristocracia núbia seguia com poderes e mandava seus filhos para estudar no Egito, sendo alguns deles funcionários importantes junto aos faraós. No ano 900 a.C, os núbios se independentizam outra vez e fundam outra capital, Nepata, mais ao sul da antiga Kerma. Era próprio da sua cultura fazer túmulos em forma de pirâmides, assim como manter uma escrita própria. Ainda hoje é possível ver essas belezas nas pirâmides de El Kurru, Nuri e Meró, na região do Sudão.

No ano de 730 a.C., o rei Piye, decidiu que era hora de os núbios assumirem o comando do Egito e recuperar os tempos gloriosos de Ramsés e Tutmés, uma vez que o país estava sendo governado por chefes medíocres, e perdido de sua espiritualidade. Assim, Piye partiu do sul com seus exércitos, navegando pelo Nilo até a cidade de Tebas, capital do Alto Egito. Foram muitas batalhas até que veio a vitória e Piye tornou-se o primeiro faraó negro, sob o nome de Tutmés III. Ele inaugurou a XXV dinastia, na qual governaram vários faraós núbios. Os faraós negros unificaram o Egito, fortaleceram o império, e resistiram por anos aos assírios. Foram os núbios que, inclusive, pararam a marcha dos assírios sobre a Judéia, garantindo aos judeus a recuperação da cidade de Jerusalém.

Sob o domínio Núbio, o Egito teve uma nova fase de florescimento e após a morte de Piye em 715 a.C, seu irmão Shabaka consolidou a XXV dinastia estabelecendo a capital egípcia de Menfis. Ele ficou conhecido por sua generosidade e em vez de executar os inimigos, fez com que eles atuassem na construção de diques para proteger as aldeias das inundações do Nilo. Sob o nome de Pepi II, ShabaKa reformou os templos de Luxor e Karnak, acrescentando sua própria estátua.

Outro rei núbio que se tornou figura de vital importância ao Egito foi o filho de Piye, Taharqa, que governou 26 anos. Após a vitória diante dos assírios ele semeou o Egito com maravilhas arquitetônicas ao logo de todo o rio Nilo, num arrojado programa de obras civis que rivalizou em beleza com os antigos faraós. Taharqa repaginou os velhos templos, mas jamais promoveu qualquer destruição, ao contrário de seus inimigos que, depois de sua morte, destroçaram os narizes de suas estátuas, fato que o impediria de retornar da terra dos mortos.

No ano de 671 a. C Taharqa enfrentou outra vez os assírios e perdeu a batalha, recuando até Menfis enquanto Esarhaddon se apropriava de parte do Egito, massacrando os moradores e erguendo montes com suas cabeças. Mais tarde, diante de novos ataques, abandonou Menfis e voltou para Napata, na Núbia. Foi o fim da dinastia dos núbios.

A Núbia hoje
Estando no Egito, conhecer o povo núbio era uma exigência ontológica. Desde pequena as imagens dos escravos negros guardando as divindades egípcias me enchiam de estupor e curiosidade. Eram sempre mais dignos e belos que os próprios faraós que guardavam. E as mulheres, de pele retinta, destacavam-se como deusas, cortejadas e desejadas pelos filhos de Amon-Rá. Os núbios, mais do que escravos, eram um povo que tinha cultura e língua próprias e além de entregarem seus corpos, também eram sangrados das riquezas de sua terra, como o ouro e o marfim. Mais tarde, já adulta, fui saber que também houve um tempo em que governaram o Egito, não mais escravos, mas faraós, deixando sua marca indelével na cultura daquele esplendoroso país. Assim, quando o pequeno barco que navegava pelo Nilo aportou em Assuã eu me preparei para um encontro desde há muito esperado. Não foi em vão.

A região núbia já se difere do restante do Egito pela cor. Não só do povo, que tem a pele negra, mas da cidade em si. Tudo vibra. As casas, as pessoas, as coisas. O artesanato é muito telúrico, com desenhos que imitam peles de bichos como os jacarés e as cobras. Pode-se perceber que os animais tem um valor inestimável. Eles estão em tudo, nas imagens pintadas nas casas, empalhados nas salas, ou mesmo vivos, circulando pelas residências como seres da família. O camelo é quase sagrado, indispensável para o transporte nas regiões de deserto. Já no rio, o que impera é a faluca, um tipo de barco à vela usado desde os tempos mais remotos, sempre navegando ao sabor do vento.

A cidade de Assuã, chamada de "a pérola do Nilo" é grande e cosmopolita. A paisagem é incomparável, bonita demais. Há uma classe média que vive bem e cuida da cidade, mas são as pequenas comunidades já na região do deserto, que mostram a cultura núbia na sua mais completa tradução. Para chegar até lá é preciso andar pelos menos uns 40 minutos no lombo dos camelos, aproveitando a paisagem exuberante e contraditória de rio e deserto, lado a lado. Pelo caminho, a toda hora passa um menino, voando, sobre o camelo que se faz veloz em suas mãos. No povoado, tudo é cor. As casas seguem um modelo bastante típico do povo núbio, arredondadas, com abóbodas e imensos pátios. Cada uma delas é pintada de uma cor diferente, vibrante. Não faltam os murais, espalhados por toda a aldeia. Neles, o retrato do cotidiano, gente trabalhando, sobre os camelos, plantando, cuidando dos animais, mulheres nos afazeres domésticos, paisagens. Uma lindeza.

Uma das práticas mais antigas é o tradicional chá. Nenhum visitante passa por uma comunidade núbia sem entrar e partilhar desse líquido saboroso. Na casa onde fomos recebidos, os cômodos eram grandes, coloridos e arejados, apesar de serem de chão batido. Na sala, muitos animais empalhados. "Eram companheiros muito amados", diz a mulher. No meio do pátio, um poço com jacarés, animal também muito estimado por ali. Percebe-se uma harmonia entre gente, bicho e espaço geográfico.

O povo é pobre, vive do artesanato, dos passeios de camelo e de uma modesta agricultura de subsistência. Mas, o que impressiona é o cuidado com a cultura. Na escola da comunidade, os professores ensinam o núbio, língua originária, que é uma das formas mais seguras de manter o modo de ser. Também não são poucos os artistas que colorem as casas com as cenas do seu mundo, muito típicas.

A relação com o Egito segue sendo de integração, mas sempre com esse sentimento único de povo autônomo. Na política contemporânea, chegaram a amar muito um egípcio: Gamal Abdel Nasser, o qual inundou 500 quilômetros de suas terras para fazer o maior lago artificial do mundo: o lago Nasser. Desses 500 km, 350 pertencem ao Egito e 150 ao Sudão. Na época, com a promessa de conter as cheias sistemáticas do Nilo, Nasser conseguiu convencer centenas de famílias (10 mil pessoas) a sair de suas terras, garantindo novas casas, novas terras e também a realocação de 16 dos 17 templos que estavam nos espaços a serem alagados. Hoje, ao falar sobre aqueles dias, os núbios que trabalham com artesanato no embarque para a ilha onde está o templo de Filae seguem acreditando que fizeram certo em confiar no político de esquerda. "Ele foi melhor que tivemos".

O lago nasceu da construção da Alta Represa, um gigante de quatro quilômetros de largura por 11 metros de altura. As pedras de puro granito que foram usadas para a obra poderiam erguer mais de 147 pirâmides. Com a represa, Nasser buscava proteger o Egito da seca e das inundações. Conforme os moradores locais, isso foi conseguido. "Agora podemos fazer três colheitas no ano, mesmo que o barro bom do Nilo não consiga mais passar". Segundo o egiptólogo Abdel Aziz, como é da cultura núbia cultivar aquelas terras, muitas das famílias que foram embora estão voltando e o governo tem garantido tratores e terras, principalmente aos jovens.

Também são os jovens que dominam os barcos que fazem os passeios no lago e levam turistas para ver os templos. De certa forma, no Egito em geral, o turismo ainda não é dominado por poucas empresas. Há uma grande divisão de tarefas, todas cumpridas por pessoas físicas ou pequenos negócios. O que se nota é que cada um ganha seu quinhão no grande bolo turístico. No ancoradouro que leva a ilha do templo de Filae, são muitos os barcos e apesar da grande movimentação, os trabalhadores se organizam de tal forma que cada um deles sempre tem um freguês. Esse templo, dedicado à deusa Isis, é um dos que foram removidos do seu lugar original, pedra a pedra. Foi o último resgatado da água. Segundo conta Abdel Aziz, o trabalho de remoção dos 16 templos levou oito anos e ocupou a força criativa de representantes de 48 países. Por conta dessa ajuda internacional quatro dos templos foram levados para fora do Egito. Um está na Espanha, um em Nova Iorque, um na Alemanha e outro na Holanda. "o governo egípcio ofereceu como um presente".

No início desse século a história desse povo ancestral sofreu mais um baque. O governo do Sudão, que tem apoio dos Estados Unidos (Sudão é um espaço estratégico para o império) construiu outra usina hidrelétrica no Nilo, cerca de mil quilômetros acima da barragem de Assuã, criando um lago de 170 quilômetros de comprimento. Esse lago inundou milhares de outros sítios arqueológicos ainda inexplorados, que contam da cultura núbia. Com isso, grande parte das belezas do apogeu do povo núbio seguirá soterrada. Pirâmides, grandes estátuas, enfim, a prova da grandeza de uma nação que aglutinou o comércio na região por séculos. Ainda assim, na grande curva do Nilo, ao sul, podem-se ver as ruinas da antiga capital, Nepata, que, no mundo antigo, foi tão vibrante e cosmopolita como é hoje Assuã.

O fato é que, apesar de ter parte do seu passado destruído ou escondido sob as águas, o povo núbio segue reverenciando sua cultura ancestral, mantendo um jeito peculiar de ser, vivenciando um equilíbrio natural com o ambiente. Deles, trouxe uma bonequinha de madeira, que representa a mulher local, a fertilidade, a fartura. Ela me observa, todas as manhãs, com seu olhar risonho. De mim, ficaram dois brincos de prata, ofertados à pequena anfitriã, Sara. Enternece meu coração saber que naquela margem do Nilo uma garotinha de pouco mais de 10 anos se enfeita no espelho das águas, cantando uma velha canção, com uma belezura que já me enfeitou. A ligação com a sorridente menina núbia é a concretude de um velho desejo, quando eu, debruçada sobre surrados livros de história, sonhava em encontrar seu povo de valentes e belos guerreiros. Encanta-me saber que eles estão lá, de pé, gigantes, tão lindos como nos tempos dos faraós. E livres, fazendo hoje, a nova revolução egípcia!

Que o segundo turno das eleições ponha no poder o que for melhor para o Egito.

* Elaine Tavares é jornalista.

Fonte: www.eteia.blogspot.com

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