Vale de ossos: do desespero à esperança

Exilado com o povo estava Ezequiel. Profeta como Isaías e Jeremias, mas diferentemente destes últimos, exercera no templo de Jerusalém a função de sacerdote.

Por Alfredo J. Gonçalves

A imagem do “vale de ossos”, no Livro do profeta Ezequiel, como o próprio texto afirma, representa Israel. Os reinos de Efraim, ao norte, e de Judá, ao sul, haviam sido invadidos. Grande parte do povo fora exilado para a Babilônia. Jazia inerme, com o peso do medo, do fracasso e da impotência sobre os ombros. No exílio, vive tempos de luto e de desespero. Perdeu a casa, o solo pátrio e a capital de Jerusalém. Até mesmo Ihaweh havia deixado o templo em chamas. Da cidade e do templo onde habitava o Deus do Êxodo, só restou cinzas, ruínas e escombros. “Como pode nosso Deus ter perdido o combate para os deuses da Babilônia, justamente o nosso maior inimigo”? – geme o povo “à beira dos canais da Babilônia” Prostrado e sem ânimo os exilados se lamentam: “nos sentamos e choramos com saudades de Sião; nos salgueiros que ali estavam penduramos nossas harpas (...). Como poderíamos cantar um canto de Ihaweh numa terra estrangeira” (Sal. 137)?

Exilado juntamente com seu povo, entretanto, estava também Ezequiel. Profeta como Isaías e Jeremias, por exemplo, mas, diferentemente destes últimos, exercera no templo de Jerusalém a função de sacerdote. Sabe da tensão entre sacerdócio e profetismo, conhece as intrigas e contradições do trono e do palácio. Em terras da Babilônia, não podendo oficiar como sacerdote, torna-se profeta. Profeta de um povo que improvisamente se vê órfão, tanto em relação à terra quanto em relação ao céu. Entre os vários representantes do movimento profético no Antigo Testamento, Ezequiel é um mensageiro único, que se vale de visões, gestos e imagens para despertar o povo enlutado e abatido. Porém, em meio às dúvidas, à escuridão e às interrogações, não é um profeta da desgraça e do pessimismo. Tudo ao contrário, torna-se uma sentinela atenta e empenhada no retorno e na reconstrução do Povo de Israel.

Sua longa profecia segue um crescendo que vai da derrota e do desespero em direção a uma nova esperança, passando por distintas etapas de autoconhecimento, arrependimento e conscientização. Mesmo distante da pátria e do templo, Deus não abandonou o seu povo. Através de uma série de parábolas literárias que levam o povo a dar-se conta que, embora exilado, ainda lhe resta forças para levantar-se e caminhar, o profeta como que energiza seus conterrâneos. Faz-se o arauto da renovação da aliança de Ihaweh com seu povo: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. E ainda: “Tirarei de vosso peito o coração de pedra e porei em vós um coração de carne”. Nesse processo de reabilitação a partir do exílio, Ezequiel é conduzido pelo Espírito ao estranho “vale de ossos”. Sim, a o quadro representa “toda casa de Israel”, mas este, ao contrário do que parece, não está morto. E o Espírito dirige-se ao profeta e ordena: “Profetiza sobre os ossos, profetiza”! Ele o faz e, imediatamente, os ossos põem-se a se mover, uns buscam os outros, começam a se juntar, formando esqueletos de pessoas: nervos, carne e pele vão cobrindo os ossos. Estes se articulam e se erguem. Surge uma multidão de pessoas e, ao final, como diz o texto, “o espírito penetrou-os e eles viveram, firmando-se sobre os seus pés como um imenso exército” (Ez 37, 1-14).

A imagem revela uma tonalidade de tragédia, mas o sentido é demonstrar que, não obstante a devastação do país, da cidade e do templo, é possível levantar-se do chão, como o fazem as espigas, as flores e os edifícios. Mais espantoso, ainda, é dar-se conta que essa mesma imagem se repete nos tempos atuais, por motivos tão diferenciados e em lugares tão distintos, como na Faixa de Gaza, na Ucrânia, na Venezuela, no Afeganistão, no Sudão do Sul, na Síria, em Myanmar, para citar apenas alguns exemplos.

Às centenas e milhares, corpos perdem a vida e se acumulam pelas ruas e escombros. Corpos de soldados, mas também da população civil, em especial mulheres, idosos e crianças. Em nome dos deuses, da raça, da política ou da ideologia, casas e templos, cidades e países inteiros seguem sendo bombardeados, destruídos e devastados por guerras de uma indústria bélica cada vez mais sofisticada e letal. Mentes perversas e interesses escusos guiam as bombas, os mísseis e as balas que ceifam vidas inocentes.

Novos vales de ossos vão se formando a cada momento. Faltam os profetas e o espírito que lhes insuflem o sopro e a seiva da vida. Parecem adormecidos o vigor e a veemência da profecia, seja por parte dos chefes de estado, seja por parte dos organismos internacionais. O que se pode constatar – nas duras palavras do Papa Francisco – é uma espécie de “terceira guerra mundial aos pedaços”. Guerra fragmentada, policêntrica, mas nem por isso menos trágica em quantidade de vítimas, de mutilados, de viúvas e órfãos e de refugiados. Em forma de desafio, cabe uma pergunta: Ezequiel, onde estás?

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo.

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