O Papa Francisco e a literatura

O Papa escreve Carta sobre o papel da literatura na educação, datada de 17 de julho de 2024.

Por Alfredo J. Gonçalves

Como de costume, o Papa Francisco surpreende ao conseguir conjugar, ao mesmo tempo, simplicidade e profundidade. Referimo-nos à sua mais recente publicação Carta sobre o papel da literatura na educação, datada de 17 de julho de 2024. Num texto relativamente breve, de apenas dez páginas, o pontífice faz uma rápida retrospectiva de seu tempo de professor de literatura, ao mesmo tempo que chama a atenção para a relevância da leitura das obras que marcaram tantas culturas. No seu modo de ver, o romance não deixa de descortinar importantes janelas para o contexto socioeconômico e político-cultural em que estamos inseridos. Logo nos primeiros parágrafos da carta, Jorge Mario Bergoglio refere-se à literatura como “um caminho de acesso” (expressão cunhada por São João Paulo II em Carta aos artistas, de 1999) que ajuda o pastor a entrar em diálogo fecundo com a cultura do seu tempo (n.8).

Com olhar voltado para a formação, em especial nos seminários, o texto assegura que “na literatura entram em jogo questões de forma de expressão e de sentido. Ela representa, portanto, uma espécie de ginásio de discernimento, que aguça as capacidades sapienciais de escrutínio interior e exterior do futuro sacerdote (n. 26). A própria ambiguidade das obras de arte, e de forma particular de tantos romances, conduz o leitor a um discernimento. Ele se depara, de um lado, com paixões, desejos e instintos imediatos, de outro, com valores e sentimentos nobres e elevados. Ao constatar que a mesma ambiguidade dilacera suas entranhas mais íntimas, o leitor será capaz de discernir, pouco a pouco, o essencial do secundário. Aprende que enquanto os impulsos podem levar a becos sem saída, as ações refletidas tendem a nos enriquecer no caminho da liberdade, além de pavimentarem a estrada da vida fraterna e solidária.

Lembrando-se do grande escritor argentino Jorge Luiz Borges, o Papa afirma que seu homônimo costumava dizer aos alunos: “o mais importante é ler, entrar em contato direto com a literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos”.

Insistia o escritor que, embora às vezes não estivessem compreendendo a leitura, teriam pelos menos escutado a “voz de alguém”. E o Santo Padre conclui: “aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém” (n. 20). A partir da sabedoria de seu conterrâneo, o texto alerta para o isolamento, a solidão e o solipsismo que tanto atingem os jovens estudantes nestes tempos modernos ou pós-modernos. Jovens marcadamente ensimesmados, fechados aos desafios e aventuras do contexto em que vivem e se movem.

Entre a multidão dos escritores engendrados no interior de cada cultura, o pontífice refere-se à grandiosa obra em sete volumes de Marcel Proust À larecherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido). A carta reproduz a célebre imagem cunhada pelo famoso romancista francês: “No que diz respeito ao conteúdo, há que reconhecer que a literatura é como “um telescópio” apontado para os seres e as coisas, indispensável para medir “a enorme distância” que o cotidiano abre entre a nossa percepção e o conjunto da experiência humana. “A literatura é como um laboratório fotográfico, no qual as imagens da vida podem ser processadas de modo a revelarem os seus contornos e nuances. Eis a “utilidade” da literatura: “desenvolver” as imagens da vida”, levar-nos a interrogar sobre o seu significado. Serve, em suma, a fazer eficazmente a experiência da vida (n. 30). O que orienta o texto na direção de outra imagem, desta vez biológica, mas não menos sugestiva, segundo a qual “a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais (n. 33).

Citando, enfim, o escritor romancista anglicano, de origem irlandesa, C.S. Lewis, o pontífice assinala que “ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de “ver com os olhos dos outros” (n. 34). O que quer dizer sair de si mesmo para uma visão mais ampla, múltipla e multicultural. Estabelecer um contato vivo, ativo e dinâmico com outras formas de saber, outras experiências e outras visões de mundo. Vale insistir, enriquecer o próprio vocabulário com palavras e imagens diferentes, e com diferentes formas de linguagem, desvelando novos horizontes ao conhecimento.

Nada mais natural do que concluir estes parágrafos com as palavras do Santo Padre (n. 42). De um ponto de vista espiritual, a carta termina chamando a atenção para o fato de que “a palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de esperad’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5).

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do SPM – São Paulo.

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