Montserrat Martins *
Eu me trataria até cirurgicamente pelo SUS, se fosse num local como o Instituto de Cardiologia de Porto Alegre. Esse exemplo radical é para ilustrar um ponto de vista que não vem aparecendo nos debates sobre o SUS, tratado como se fosse uma coisa só em todo o país. Não é. Você tem um atendimento de qualidade pelo SUS nas Santas Casas do Rio Grande do Sul, mas não sei como é nos outros estados. Um primo que advoga em Recife e viaja por todo o país me relata que o atendimento público de saúde é dramático em toda a região nordeste. Se aqui no sul já temos grandes dificuldades - comecei listando alguns locais "de exceção" - imagina por lá. E imagine como era antes do SUS.
Existe um SUS que funciona, sim, mesmo que seja minoria na vasta imensidão deste país. Deveríamos examinar cuidadosamente, identificar competências e buscar reproduzí-las em outros locais, ampliando esses "focos de boa saúde pública". Os locais que conheço que melhor funcionam, até o momento, tem alguma forma de apoio de setores da sociedade civil. São geridos por fundações e recebem doações inclusive de pessoas jurídicas, um apoio muito bem vindo.
É evidente que há questões gerais a enfrentar, como a Emenda 29, para garantir um aporte de verbas suficientes por parte do governo federal. Aliás, registre-se o lamentável episódio de distorção da CPMF, que na sua época deveria ter sido usada para a saúde e não foi. Mas não se trata só disso, se trata também de como as verbas são empregadas. Para levantar os problemas da área há várias entidades atuantes, incluindo o SIMERS, que se tornou um "incômodo" para governantes de todas as esferas - federal, estadual, municipal - ao cobrar soluções para os graves problemas e distorções encontradas. Há locais que gastam 3 vezes mais do que outros, trazendo à tona questões de gestão. O tipo de competência que leva partidos e políticos a se alçarem a cargos de responsabilidade, nem sempre corresponde à competência de gestão em certa área, que requer conhecimentos específicos.
Governantes são tentados ora a repassar responsabilidades para categorias profissionais ou, ao contrário, antagonizar com elas (foi o que aconteceu em Porto Alegre, com o poder público jogando a população contra os médicos). Quem nunca se filiou a partidos foi o gestor de saúde gaúcho mais reconhecido, por seu trabalho na reestruturação da Santa Casa, o Dr. João Polanckzyk, que incluiu sempre em sua gestão a escuta real dos pacientes, tratados como cidadãos.
Sim, é verdade que a saúde pública não é um problema só do Brasil, é do mundo todo. Mas temos vendido a imagem de uma capacidade de construir políticas sociais, que ainda não encontrou o caminho da saúde. A política brasileira já fez as pazes com o crescimento econômico, com a internacionalização da economia, com as políticas de inclusão social e está começando a investir no ensino técnico, mas ainda não fez as pazes com a saúde.
Nas polêmicas passionais na internet, um sábio título foi o editorial do site Sul 21, "a doença de Lula como mote para a melhoria do SUS", uma tentativa de entender o que pode ser melhorado, a partir da polêmica existente. É de mau gosto, no momento da doença do ex-presidente, a campanha apontando para ele se tratar no SUS. No passado, a indelicadeza fora do próprio ex-presidente, dizendo que o SUS estava "ótimo". Na maioria dos lugares, nunca esteve - e, neste sentido, foi uma afirmação também de mau gosto, desconsiderando essas provações da maioria dos brasileiros.
Enfim, a questão do SUS me lembra um conceito do Direito Constitucional, o de "Constituição-Programa". Os direitos ali garantidos, mesmo que estejam longe de se concretizar, necessitam estar ali para serem reconhecidos como direitos. São uma meta a ser alcançada, para a qual devemos orientar os nossos esforços, se formos gestores, bem como nossas reivindicações, na condição de cidadãos. Podemos começar identificando "qual SUS" temos em cada local e área de atendimento.
* Montserrat Martins, é Psiquiatra e colunista do EcoDebate.
Fonte: www.ecodebate.com.br