Fim de um tirano

Alfredo J. Gonçalves , CS*

Na segunda quinzena de outubro/2011, o mundo foi surpreendido pelas comemorações sobre a morte de Muammar Kadaffi, alguns de seus filhos e conselheiros. Cenas festivas e efusivas se repetiam não apenas no território da Líbia, mas por vários países: gritos, vivas, gestos, danças, bandeiras desfraldadas, tiros para o ar e até declarações de personalidades influentes no palco da política internacional. Ao redor de todo o planeta, as manchetes escritas, faladas ou virtuais alardeavam sobre o "fim de um tirano", o "começo de uma nova era", a "primavera árabe", a "da possibilidade de democratização"... E assim por diante. Vem à tona, quase sem querer, a obra clássica de Gabriel García Márquez, "O outono do patriarca", publicada em 1975. Também na ficção do colombiano, Prêmio Nobel de Literatura, reserva-se ao tirano de ferro um fim simultaneamente trágico e melancólico.

Tais comemorações, entretanto, embora compreensíveis no calor dos combates vitoriosos, no mínimo deixam um gosto amargo na alma das pessoas mais sensíveis, uma estranha sensação de constrangimento, para não falar de um terror indescritível . A morte se chora, se lamenta, se reza, se venera, às vezes até se deseja no caso de um ente querido que vegeta e sofre... Mas não se comemora! A presença da morte requer silêncio e reflexão, faz pensar na própria vida. Até porque o fim de cada pessoa, em geral, confere um sentido à sua passagem pela face da terra. Na história da humanidade, em seus diferentes estágios, povos e culturas, a morte é invariavelmente reverenciada. O luto, em suas múltiplas expressões, faz parte da cultura universal. Os corpos são exumados e sepultados com a devida dignidade. Mesmos aos mortos em campo de batalha, de ambos os lados da trincheira, é costume enterrar para poupá-los da voracidade repulsiva dos abutres.

É bem verdade que o personagem em questão representa um dos tiranos mais brutais dos últimos séculos. Por mais de quatro décadas submeteu a ferro e fogo o povo do próprio país, provocou genocídios, trucidou adversários, baniu a oposição, fez senhor absoluto da riqueza e do poder... Além disso, com a avalanche dos petrodólares que jorravam do subsolo, exibiu em família um luxo ostensivo, enquanto os pobres amargavam condições extremamente precárias de fome e miséria. Sua trajetória pessoal está marcada pela opressão e injustiça, por acordos espúrios com as potências ocidentais, pelas mais fragrantes contradições. É um homem que deixa rastos de sangue e morte nos caminhos e pedras da história.

De qualquer forma, comemorar a vitória sobre cadáveres ainda quentes faz prever um futuro funesto, revestido de ódio e vingança. Vilipendiar a morte dos opositores, quem quer que sejam, equivale a incentivar o revanchismo. Uma retrospectiva histórica, por mais superficial que seja, revela que esse tipo de atitude dá margem a uma espiral de violência que só faz aumentar e aprofundar o cenário da guerra sem fim. Se isso é certo em termos gerais, o é muito mais no caso da Líbia, onde diferentes grupos de caráter religioso, ideológico ou político, disputam palmo a palmo a renda e o poder. As cenas amplamente divulgadas deixam entrever um futuro incerto e preocupante. A nova aurora libanesa não deixa de ser uma incógnita, um ponto de interrogação.

Por outro lado, os países centrais do Ocidente, cujos representantes aparecem em público, às vezes para comemorar a morte de Muammar, não são neutros nem inocentes. Nem todos, frente às atrocidades do ditador morto, estão isentos de culpa e cumplicidade. Muitos contratos bilaterais entre o Líbano e qualquer um desses países, penalizaram claramente a população libanesa, enquanto engordavam as contas bancárias da família Kadaffi e os negócios petrolíferos em todo o mundo. Não seria difícil, aqui, apontar uma procissão de países e personalidades que, embora em negociatas com os poderosos daquele país, posteriormente combateram ao lado das forças rebeldes para derrubar o tirano. O terreno neste ponto é ambíguo, modediço e cheio de matizes contraditórios. As relações internacionais, com o petróleo de entremeio, deixam as nações com telhado de vidro e pés de barro. Difícil atirar a primeira pedra!

Quanto ao comportamento da população e dos meios de comunicação diante do fim trágico de Kadaffi e seus filhos, vale o mesmo para a violência cotidiana que atualmente bate às nossas portas. A vida se banaliza e a morte ocupa amplos espaços nos jornais, rádio e TV. Culposa ou dolosa, ela se tornou a atriz mais freqüentada pelos noticiários. Quantas vezes temos sido espectadores passivos (ou secretamente ativos) do sensacionalismo com que a mídia explora o sentimento de retaliação sobre os corpos ensaguentados dos "bandidos mortos em confronto com a polícia"! O linchamento, tanto em termos literais quando figurados, está fortemente enraizado no imaginário da população brasileira. Volta e meia, o tema da pena de morte emerge com virulência e com razoável apoio popular. Não raro, cenas agressivas e de extrema barbaridade são tidas como naturais, assistidas com indiferença e inconfessadamente aplaudidas. A intransigência, perseguição e até morte contra minorias étnicas, raciais, de opção sexual, prostitutas, indígenas, povo da rua, etc. tornaram-se corriqueiras. Por trás, está a idéia de raça pura fascista e neonazista.

Feridos e cadáveres expostos sem qualquer respeito nem reverência a um público atônito (ou que, no íntimo, aplaude e comemora! ). Trata-se, em grande maioria, de adolescentes e jovens na flor da idade, pobres e afro-brasileiros. Jogados no mundo do crime organizado por circunstâncias socioeconômicas adversas. Definitivamente, festejar a morte é uma forma de estimular o círculo vicioso da violência.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

Fonte: www.provinciasaopaulo.com

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