2023, o ano mais sinistro para o Programa Nuclear Brasileiro

E 2024 já chegou com problemas, incluindo o desligamento de Angra 1.

Por Zoraide Vilasboas

Desde que foi criado, há 72 anos, o Programa Nuclear Brasileiro e as Indústrias Nucleares do Brasil
(INB) nunca viveram um ano tão catastrófico. 2023 chegou muito agourento, pipocando graves
denúncias, especialmente em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em Caldas (MG), funcionou o primeiro
complexo mínero-industrial de exploração de urânio, hoje chamado Unidade de Descomissionamento
de Caldas (UDC). Ali aconteceu a primeira fase da cadeia de produção da energia nuclear no Brasil. Em
Rezende e Angra dos Reis (RJ) ocorrem as atividades da última fase do ciclo atômico, incluindo a
operação de duas usinas e a inconclusa obra de Angra 3 que, em 40 anos consumiu R$8 bilhões do
orçamento estimado em R$28 bilhões. As populações atingidas mais diretamente por estes infortúnios
são, portanto, do Planalto de Poços de Caldas (MG) e do Rio de Janeiro.

Em 2023, ocorreram mais de 10 eventos funestos, provando falhas críticas nos protocolos de
segurança, relativos ao deslocamento e guarda de material radioativo, colocando em risco a segurança
nuclear e em radioproteção dos trabalhadores e da sociedade. Abaixo apontamos alguns desses fatos.
Em fevereiro/23, finalmente, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) multou a Eletronuclear por ter omitido o vazamento de efluentes com material radioativo da
usina Angra 1, ocorrido em 16 de setembro de 2022. A empresa tentou negar a todo custo a vazão que
atingiu a Baía de Itaorna (Angra dos Reis – RJ).

Barragens radioativas

Ainda em fevereiro, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) admitiu existir infiltração e
problemas com uma pluma de drenagem ácida atingindo o Córrego Consulta, em Poços de Caldas
(MG), consequência das atividades radioativas da UDC/Caldas que, desde 1995 passa por um longo e
polêmico processo de desmontagem. A CNEN – que regula e fiscaliza as atividades radiológicas da INB
– admitiu também que o leito da Bacia de Águas Claras tem resíduos gerados pelo sistema de
tratamento de águas ácidas da mesma UDC, o que eleva o potencial de contaminação do lençol freático
da região por metais pesados e radioativos.

Em março, noticiou-se o vazamento do gás hexafluoreto de urânio, causado por defeito em
equipamento da Unidade de Enriquecimento de Urânio da Fábrica de Combustível Nuclear da INB, em
Resende (RJ). Em contato com o ar, o gás gera ácido fluorídrico (HF), gás incolor e corrosivo,
Em abril, a obra de Angra 3 foi, mais uma vez, paralisada por embargo da prefeitura de Angra dos Reis,
que alegou ter havido alteração no projeto urbanístico da usina, aprovado pelo governo municipal.

A primeira inspeção oficial na UDC/Caldas, pela Agência Nacional de Mineração (ANM), que há dois
anos passou a regular e fiscalizar as estruturas de mineração da INB, aconteceu em junho. Os fiscais
da ANM enquadraram a Barragem de Rejeitos BAR e a D4 – que abrigam lixo radioativo oriundo de
rejeitos da mineração, materiais pesados e lama radioativa – no Nível de Emergência 1 (NE1), com
categoria de risco alto, pelo perigo de rompimento. O NE1 é o segundo degrau na escala de gravidade,
indicando que já ultrapassou o nível de alerta.

Urânio à deriva

Entre os furtos de material perigoso, destacamos o sumiço na Fábrica de Combustível Nuclear, em
Resende, em julho, de duas cápsulas, com gás hexafluoreto de urânio enriquecido, usado no fabrico de
elementos combustíveis para as usinas atômicas de Angra. Mais de seis meses depois, não se sabe o
paradeiro do urânio, que porta perigos radiológicos e químicos significativos, em caso de manipulação
errada. A sociedade aguarda a divulgação do resultado das investigações sobre este bizarro furto. Na
época, a Polícia Federal arrolou 20 empregados da INB, onde foram inúteis as buscas, incluindo nas
áreas supervisionadas e controladas.

Também em julho, no relatório final da primeira inspeção realizada nas instalações da INB/Caldas, a
ANM além de manter o Nível de Emergência 1 (NE1) para a Barragem de Rejeitos BAR e a D4,
enquadrou também a Bacia Nestor Figueiredo no NE1.

Setembro trouxe más notícias. A ANM fez nova inspeção nas barragens de rejeitos de Caldas. O
relatório da vistoria informa não ter encontrado anomalias que ameacem, de imediato, as estruturas,
mas identificou situações que precisam de monitoramento e trouxe novas exigências técnicas. No
mesmo mês, a Inspeção de Segurança Regular realizada sobre as estruturas da UDC por auditor
independente, contratado pela própria INB, confirmou a gravidade da situação, indicando obras de
adequação nas edificações.

Falhas em Angra 1
Inaugurada em 1981, Angra 1, apelidada usina “vaga-lume” (foi desligada dezenas de vezes). A
unidade, que vem tentando modernizar seu ultrapassado projeto, passou por várias paradas no
segundo semestre/23. Estava desligada em outubro e em 22 de novembro, com falhas em
equipamentos elétricos, enfrentou um “Evento Não Usual”, o primeiro da escala de emergência da
unidade.

2024 chegou evidenciando, mais uma vez, a fragilidade da (in)segurança atômica coletiva, onde casos
policiais se destacam. Já no 1o dia do novo ano, em área de segurança nacional (pasmem!) sete jovens
foram presos, após invadirem o prédio do Centro de Treinamento, no distrito de Engenheiro Passos
(Rezende), na mesma Fábrica de Combustível Nuclear da INB, de onde sumiram as ampolas de urânio
enriquecido que ensejou muitas críticas sobre a conhecida desorganização do setor nuclear.
Supostamente interessados em equipamentos eletrônicos, os jovens foram levados para a Polícia
Federal e redirecionados para a Polícia Civil, onde foram autuados por tentativa de furto e liberados pra
aguardar convocação da Justiça.

No último 16 de janeiro Angra 1 voltou a ser paralisada para consertar a turbina da
unidade, pois ocorreram avarias em uma das válvulas de bloqueio de vapor do circuito secundário. Não
há previsão para o retorno da usina ao Sistema Integrado Nacional. Apesar dos alertas de especialistas,
Angra 1 vem sendo recauchutada para durar mais 20 anos. https://taniamalheirosjornalista.
blogspot.com/2024/01/angra-1-comeca-2024-com-defeitos-e-mais.html

Produção

Inaugurada em 1981, Angra 1, apelidada usina “vaga-lume” (foi desligada dezenas de vezes). A
unidade, que vem tentando modernizar seu ultrapassado projeto, passou por várias paradas no
segundo semestre/23. Estava desligada em outubro e em 22 de novembro, com falhas em
equipamentos elétricos, enfrentou um “Evento Não Usual”, o primeiro da escala de emergência da
unidade.

Produção frustrante

2023 também foi desastroso na esfera da produção do urânio, matéria-prima do combustível da energia
atômica. Na Unidade de Concentração de Urânio da INB, em Caetité/BA – única mineração em
atividade no Brasil – lavrou-se quantidade de minério, muito além do que se pretendia, complicando
ainda mais os problemas da empresa. A INB opera com uma planta industrial ultrapassada, com
equipamentos obsoletos e quebradiços, escassez de água e uma série de problemas. Neste janeiro/24,
a indústria sofreu nova parada, desta vez porque um vendaval destelhou a fábrica. A jazida do Engenho,
inaugurada com toda pompa, há quatro anos, prometia 260 toneladas do minério por ano, estreando um
ciclo de ouro atômico para o país. Mas até 2022 atingiu uma escala pífia de produção. Em 2023 só
conseguiu produzir 100 toneladas, menos da metade do total anunciado.

A exploração do urânio do Ceará, que deveria suceder a Bahia como estado supridor da demanda
nacional do minério, está emperrada. Há mais de 20 anos, a INB tenta explorar o minério de Itataia
(Santa Quitéria), que se apresenta associado ao fosfato. O licenciamento da mineração foi negado três
vezes. O de 2004 foi arquivado pela Justiça. O de 2009 foi arquivado pelo IBAMA, por inviabilidade
hídrica e ambiental. O de 2014 foi desaprovado pelos técnicos do IBAMA. Mas, em dezembro/22, o
condescendente presidente do órgão, deu mais tempo para o consórcio solucionar os problemas
apontados. Importante registrar que este maléfico projeto disputa o uso da água, em região de extrema
escassez, e pode afetar diretamente 156 comunidades, 30 territórios de povos e comunidades
tradicionais e cinco etnias indígenas.

Prestes a findar 2023, em audiência pública da Comissão de Minas e Energia da Câmara dos
Deputados (28 de novembro), a auditora do Tribunal de Contas da União (TCU) Arlene Nascimento
citou a insegurança das barragens de rejeitos em Caldas (MG) e o desaparecimento das ampolas de
urânio enriquecido em Rezende (RJ) como eventos que preocupam. Lembrou que há mais de 10 anos,
o TCU indicou a necessidade da criação de um órgão para tratar da segurança nuclear, considerando
que o “modelo adotado no Brasil para o tema estava em desacordo com a Convenção Conjunta sobre
Gerenciamento Seguro de Combustível Nuclear Usado e de Rejeitos Radioativos, da qual o Brasil é
signatário.” Como a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN) não funciona (mesmo após
dois anos de criada), a CNEN segue respondendo pela segurança, porém com “dispositivos restritos” e
sem “mecanismos que evitem problemas”.

Novo acórdão do TCU (dezembro/23) expõe os riscos da sustentabilidade econômico-financeira da
INB, identificados pela auditoria operacional que apontou graves debilidades da empresa, sinalizando
que a badalada meta de autosufiência na produção do combustível nuclear pode redundar em fracasso.
O trabalho encontrou fragilidades, como a inexistência de incentivos naturais e regulatórios na produção
desse combustível e a não implementação integral da política de gestão de riscos.

A auditoria concluiu que a falha de mercado, relativa ao custo de combustível nuclear, não tem recebido
tratamento adequado, existindo lacuna regulatória na fiscalização e na avaliação da eficiência na
produção do elemento combustível. Como consequência, a INB não terá incentivo para produzir de
forma eficiente, o que poderá resultar em desequilíbrio econômico e financeiro da empresa.
Debate inadiável

A perene incapacidade jurídico-administrativa para solucionar os desafios técnico-operacionais e de
gestão pela INB e CNEN está bem exposta em fiscalizações e incontestáveis alertas do TCU e da ANM.
A insegurança sistêmica vigente coloca em cheque a capacidade do Sistema de Proteção ao Programa
Nuclear Brasileiro dar conta de suas tarefas, agravando os perigos do desenvolvimento da tecnologia
nuclear para a produção de eletricidade.

A falta de acesso a informações confiáveis sobre o caos que envolve a insegurança da exploração da
tecnologia nuclear, a partir da expansão da mineração – que vem deixando um passivo ambiental
irreparável em Minas Gerais e na Bahia – há muito vem provocando crescente reação da cidadania
brasileira. Em audiências públicas, ocorridas ao longo do ano no Congresso Nacional, assembleias
estaduais e câmaras de vereadores de Minas e do Rio de Janeiro, graves problemas foram expostos e
críticas severas atacaram especialmente a falta de transparência, a inconsistência na comunicação e a
insegurança técnico-operacional que caracterizam a indústria nuclear.

O cenário de desordem e confusão de ideias, trazidas pelo açodamento de mudanças da legislação
ocorridas nos dois últimos governos – que confundiu ainda mais o atual arcabouço jurídico – e a soma
de erros evidenciam a necessidade urgente de uma autêntica revisão da legislação de caráter
nuclear/militarista que norteia o setor. Que o governo entenda esta emergência e agilize esta revisão da
política nuclear, promovendo um debate aberto, democrático, com ampla participação da sociedade,
que não pode seguir convivendo com os riscos da insegurança nuclear e em radioproteção!

Zoraide Vilasboas é jornalista e facilitadora da Articulação Antinuclear Brasileira.

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