A verdadeira espiritualidade é necessariamente centrífuga. A partir o mistério central, irradia seu fulgor em todas as direções, numa rede espiral que vai se ampliando na exata medida em que cria e recria novos núcleos.
Por Alfredo J. Gonçalves
Quando Jesus habita o coração de uma pessoa, necessariamente ela buscará a presença de outras, como que contagiada pela luz da Boa Nova, fazendo de tudo para fazê-la brilhar sempre mais. Toda semente tende a germinar e expandir-se, seja criando raízes para baixo, mergulhando no solo escuro e úmido da terra, seja para cima, renascendo em folhas, flores e frutos. Ébria, tem sede do ar puro, dos raios do sol e do céu azul. Do mesmo modo, quando Jesus habita o coração de uma família ou comunidade, necessariamente elas hão de buscar o convívio de outras, ampliando sempre mais o campo de suas relações e da mesma luz da Boa Nova. De gueto, bolha ou esconderijo cerrado, a família/comunidade se transforma em ambiente aberto ao encontro e ao confronto, ao diálogo e à solidariedade.
Aqui reside o cerne de toda a espiritualidade que bebe nas fontes cristãs. O percurso espiritual não se isola, mas, a exemplo do botão que se converte em flor, desabrocha e divide sua beleza com o maior número de pessoas, famílias ou comunidades. A verdadeira espiritualidade é necessariamente centrífuga. A partir o mistério central, irradia seu fulgor em todas as direções, numa rede espiral que vai se ampliando na exata medida em que cria e recria novos núcleos, prontos por sua vez a espalhar indefinidamente a luminosidade original. Em outras palavras, se é verdade que todo caminho mítico contém seus momentos de silêncio e de segredo, também é certo que esse tesouro oculto tende a ser “proclamado por sobre os telhados”. Silêncio e segredo são terrenos fecundos para a palavra viva e ativa.
Não será difícil compreender isso quando se lê os escritos de São João da Cruz, de Santa Tereza D’Ávila, de Santa Terezinha do Menino Jesus, de Santo Inácio de Loyola... e de tantos outros místicos. O movimento centrípeto de profunda intimidade com o sobrenatural, centrado sobre o encontro do próprio peregrino com Deus, momento de oração, meditação e contemplação, se complementa com o movimento centrífugo da alegria e da irradiação. Efetivamente, “não se pode acender uma lâmpada para colocá-la debaixo do alqueire, e sim em lugar alto onde todos possam vê-la e serem por ela iluminados”. Essa alegria que emana do fundo da alma, e não pode ser confundida com o contentamento efêmero, momentâneo e superficial, torna-se o cimento de qualquer família, comunidade ou associação. Sem ela, com muita frequência o grupo se desfaz, se pulveriza, se reduz a cinzas.
Não seria equivocado falar, ainda, de mundo interior e mundo exterior. É sabido e notório que este último nos tempos contemporâneos se caracteriza pelo marketing cada vez mais apelativo e estridente. Mercado e moda tudo regem, tudo comandam. O esquema de produção, comércio e consumo, movido a lucros sempre crescentes e à acumulação do capital, adquiriu uma velocidade tão vertiginosa que vem comprometendo o ritmo da própria natureza. Os seres humanos valem enquanto trabalhadores e consumidores. Fora do campo, tornam-se descartáveis. A propaganda e a publicidade, por sua vez, se encarregam de revestir os produtos de um verniz de tamanha sedução que a todos fascina. Nas lojas dos shopping-centers, tudo é oferecido sob um cenário profusamente atraente e iluminado. A ansiedade e o frenesi convertem os cidadãos em consumidores. Ter e/ou aparecer esgotam as energias de cada indivíduo.
Dessa dispersão alucinada decorre a necessidade de criar um mundo interior. O “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates, por um lado, e as visitas de Jesus à montanha, por outro, ganham extrema relevância. A intimidade consigo mesmo, quando sincera e transparente, cedo ou tarde descobrirá a presença do Espírito de Deus que habita no mais íntimo de cada pessoa. Começa então o exercício espiritual de poda e de enxerto. Poda das ervas daninhas que habitam as reentrâncias mais ocultas de nossas entranhas.
Administração e controle dos instintos e impulsos imediatos, das paixões e interesses egocêntricos e egoístas. O exercício do enxerto, por seu turno, como denota o verbo, trata de preparar o terreno para enxertar no “homem/mulher velho/a” os sentimentos e ações do próprio Jesus de Nazaré. Amor, bondade, perdão, compaixão e misericórdia vão tomando o lugar das ervas nocivas. Passo a passo, “o joio cede espaço ao trigo”. O percurso espiritual não é linear. Além de lento e laborioso, costuma contar com avanços e recuos. Percorre árduos atalhos, tropeça com noites escuras e desertos inférteis. A boa notícia é que, nessa tarefa de recriar o “homem/mulher novo/a”, com um único raio de luz o mundo interior ilumina o mundo exterior. O que vai pelo coração e pela alma transparece no rosto, no olhar, nas palavras, nos gestos e nas ações, enfim, na própria presença.