Numerosas e intensas diásporas do mundo contemporâneo constituem sintoma de um organismo doente.
Por Alfredo J. Gonçalves
As numerosas e intensas diásporas do mundo contemporâneo constituem sintoma de um organismo doente. De fato, em qualquer organismo enfermo, as células se agitam febrilmente para tentar retomar a saúde que, no fundo, é o retorno ao equilíbrio. As diásporas hoje tendem a ser variadas, dispersas por todo o planeta e extraordinariamente complexas. Quais os maiores povos em diáspora? Venezuela, com cerca de sete milhões de pessoas fora do próprio território; Ucrânia, de onde se ausentaram aproximadamente seis milhões de pessoas; Síria, com mais de 6 milhões de habitantes no exterior; Afeganistão, com grupos de cidadãos esparramados aos milhões por todo mundo; Sudão do Sul, em que já se fala mais de três milhões de refugiados; Myanmar, com quase um milhão de cidadãos no Bangladesh. Isso sem contar outros povos, em menor número, também desterritorializados por conflitos étnico-religiosos ou político-ideológicos, bem como os povos desprovidos de chão próprio, tais como os curdos e os palestinos.
Não há dúvida que tal situação tem a ver com três ordens de fatores entrelaçados: a dinâmica subjacente do xadrez que reorganiza a geopolítica mundial, com suas tensões e conflitos latentes ou abertos; as assimetrias socioeconômicas e cada vez mais profundas da economia globalizada, com suas desigualdades crescentes; e, por parte dos migrantes, refugiados, itinerantes e apátridas, o sonho, a resistência e a teimosia para fazer de cada fuga uma nova busca de melhor futuro.
O fato é que a história se move. E se ela se move é porque milhões de pessoas estão em marcha. Tal marcha, de resto, representa a parte aparente e visível de transformações ocultas e invisíveis. As seguidas caravanas de migrantes e refugiados são como que as ondas superficiais de correntes subterrâneas profundas. Elas, ao mesmo tempo, velam e revelam as mudanças históricas e estruturais em curso, sejam elas de ordem social, econômica, política e cultural. Mudanças que, segundo estudiosos e especialistas do tema, têm contribuído poderosamente para uma concentração de renda e riqueza, de um lado, e de exclusão social e mobilidade humana, de outro. Daí a pobreza, a miséria, a fome de imensas regiões do planeta. E daí também o número crescente de trabalhadores “supérfluos e descartáveis”.
Semelhantes condições de natureza socioeconômica e político-cultural, acrescidas dos abalos sísmicos para reordenar o tabuleiro da geopolítica mundial, põem dezenas de milhões de pessoas em contínuo movimento. Deslocamentos humanos difíceis, penosos e incertos que se debatem a cada curva do caminho e a cada fronteira política com barreiras e obstáculos não raro intransponíveis. Nessa travessia sem rotas previamente traçadas e sem destino certo, não são poucos os que encontram a morte nos desertos, nas águas do mar, nos rios e florestas, quando não no poder de traficantes inescrupulosos.
Fugir torna-se a única possibilidade de sobreviver. Mas permanece a dúvida sempre instigante: sobreviver onde, como, com que recursos? De que maneira reunir e reorganizar a família, os parentes?
Semelhantes e tamanhas diásporas são filhas de tempos ásperos, conturbados, turbulentos. Cortam fundas raízes familiares e culturais. Multiplicam-se as lágrimas, o suor e o sangue de inúmeras feridas, tanto de quem parte quando de quem fica. Chagas às vezes incicatrizáveis, que se reabrem a cada embate, deixando tais raízes expostas ao sol, com o perigo de murchar, secar e perecer definitivamente. Nome e identidade se tornam ignorados. Como resgatar e recompor a tradição positiva? Como fazê-lo num confronto igualmente positivo nos lugares de chegada? O que podem significar, neste caso, o encontro, o diálogo e a solidariedade, no combate à discriminação, ao preconceito e à xenofobia?
Diáspora é pisar terra estranha. Solo minado, no qual não é recomendável caminhar depressa e em linha reta. “Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho; alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho”, interpreta Tereza Cristina a canção de Ivone Lara. Desde a época do êxodo do povo de Israel, quando da libertação do Egito onde era escravo, os povos em diáspora formam multidões pelo deserto, o caminho, o exílio. Gente desenraizada do lugar em que nasceu, errante por vias tortuosas, anônima, na tentativa de encontrar um novo solo pátrio. O que exige esforços inauditos de documentação, aprendizado, inserção na sociedade, trabalho e moradia, saúde e paz. E grande empenho para refazer laços e relações, amizades e valores. Aqui entra em cena a tarefa conjunta – de quem chega e de quem recebe – no sentido de combater a “globalização da indiferença”, na busca pela cultura da empatia, do diálogo e de uma cidadania universal.