Histórica e estruturalmente, desde o início, o país se especializou em fornecer matéria prima ou bens beneficiados para os centros dinâmicos da economia mundial.
Por Alfredo J. Gonçalves
A recente aprovação do Marco Temporal pelo plenário do Senado constitui um retrato vivo de como as classes dominantes brasileiras permanecem com os olhos voltados para os centros dinâmicos da economia globalizada – primeiramente a metrópole Lisboa, depois o Reino Unido, e agora Estados Unidos, China e Europa – e ao mesmo tempo de costas para as necessidades básicas da população de baixa renda. Devido a essa postura obtusa, retrógrada e atrasada, sequer foram capazes de realizar as reformas básicas, não do socialismo evidentemente, mas do liberalismo digamos clássico. Para usar os termos do escritor, sociólogo, antropólogo e historiador Darcy Ribeiro, o país segue sendo administrado como uma “feitoria” e não como uma nação autônoma. Em lugar de cidadãos integrados nos destinos nacionais, a população é vista como a grande massa de trabalhadores e trabalhadoras do eito, da mina, da fazenda ou da indústria. Com razão Jessé Souza cunhou a expressão “elite do atraso”.
Tomemos emprestadas as palavras do citado antropólogo. Diz ele: “O que nos falta hoje é maior indignação generalizada em face de tanto desemprego, tanta fome e tanta violência desnecessária, porque perfeitamente sanáveis com alterações estratégicas na ordem econômica. Falta mais, ainda, competência política para usar o poder na realização de nossas potencialidades”. E prossegue, apostando otimistamente no futuro deste país de riqueza múltipla, plural e abundante e dimensões continentais: “A história nos fez, pelo esforço de nossos antepassados, detentores de um território prodigiosamente rico e de uma massa humana medita no atraso, mas sedenta de modernidade e de progresso, que não podemos entregar ao espontaneísmo do mercado mundial. A tarefa das novas gerações de brasileiros é tomar este país em suas mãos para fazer dele o que há de ser, uma das nações mais progressistas, justas e prósperas da Terra” (Cfr. RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, 3ª edição, Global Editora, São Paulo, 2015, pág. 154).
Em polêmica cumplicidade com o mercado globalizado e com os dirigentes das transnacionais instaladas no país, a elite brasileira ao longo dos séculos tem ignorado com heroica indiferença a penúria de sua população de baixa renda. Esta, hoje em dia, lhe é tão estranha como o eram os indígenas e os negros durante a Colônia e o Império. Os “donos do poder” (Raymundo Faoro) visam unicamente auferir a maior quantidade de lucro possível e multiplicar o próprio capital, completamente esquecidos dos males, chagas e feridas causados ao meio ambiente e à “brava gente brasileira”. Voltemos a nosso autor: “Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo destes cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente aos milhões” (Idem, pág. 53).
Em última instância, quem decide o que plantar e/ou produzir em território brasileiro? Quem decide como plantar e/ou produzir? Quem decide para quem plantar e/ou produzir? Histórica e estruturalmente, desde o início, o país se especializou em fornecer matéria prima ou bens beneficiados para os centros dinâmicos da economia mundial. Ficaram sempre em segundo plano as necessidades urgentes e primordiais da população que habita a base da pirâmide socioeconômica. Tudo converge para a satisfação imediata e imperiosa das classes abastadas, sejam estas internas ou externas. Essa política econômica simultaneamente concentradora e excludente resultou, década após década, nas assimetrias regionais hoje visíveis e olho nu. Mas resultou igualmente numa das maiores e mais escandalosas desigualdades sociais do planeta, onde o fosso entre o pico e a base da pirâmide só faz aprofundar-se.
Daí a coexistência, nas cidades brasileiras, de grandes e sofisticadas mansões ao lado de favelas e casebres, de apartamentos de luxo ostensivo (não raro vazios) ao lado de periferias sem qualquer tipo de infraestrutura, de marcas famosas de carros e outros equipamentos ao lado da pobreza e da miséria, de roupas e calçados de grife ao lado de crianças descalças e esfarrapadas, de condomínios cercados de muros e avançados sistemas de segurança ao lado dos morros dominados a ferro e fogo pelas milícias urbanas... “Pelos campos a fome em grandes plantações”, dizia a canção de Geraldo Vandré. Faz-se necessário e urgente reverter a situação. Entre outras, vale repetir ambas as sugestões de Ribeiro: indignação generalizada, de um lado, e competência política, de outro, para realizar as potencialidades deste continente chamado Brasil.