A obra Os anos, de Anne Ernaux demonstra como sua vida pessoal reflete a vida social do próprio país, a França.
Por Alfredo J. Gonçalves
A escritora francesa Anne Ernaux, ganhadora do Prêmio Nobel de literatura em 2022, na obra Os anos nos surpreende positivamente, ao demonstrar como sua vida pessoal reflete a vida social do próprio país. O arco de tempo de sua narrativa vai de 1940, ano em que nasceu a autora, até 2008, quando o livro vem a público. E ela insinua, além disso, que o mesmo pode valer para cada um de nós, na medida em que permaneçamos atentos, contemporaneamente, às mudanças do corpo, do espírito, do ambiente familiar e das circunstâncias históricas que nos acompanham ao longo dos anos.
Em plena euforia dos chamados “anos de ouro do capital” que vão, aproximadamente, do pós-guerra, em 1945, até o início dos anos 1970, escreve a autora: “a profusão de coisas ocultava a escassez de ideias e o desgaste das crenças” (pag. 84). A frenética corrida às novidades do mercado de consumo não deixa espaço para a reflexão crítica, nem para a oração, meditação e contemplação. Os rumores permanentes e estridentes do consumismo abafam a voz do silêncio, único terreno onde novas palavras e novos pensamentos podem se forjar. Banida a pausa e o repouso necessários ao silêncio – oficina da palavra e do mistério – dissolvem-se igualmente as ideias e os deuses. Os valores culturais e religiosos de uma tradição milenar, são vistos como peças de roupa fora da moda. Razão, ciência e tecnologia se erguem como novas deusas às quais é preciso prestar culto incessante. O mundo se “desencanta”, diria Max Weber.
Pouco depois da metade do livro pode-se ler: “a esperança e a expectativa se deslocavam das coisas para o cuidado com o corpo, com a busca de uma juventude inalterável” (pag. 144). Termos como os de narcisismo, hedonismo, individualismo e egocentrismo – entre outros “ismos” – passam a dominar as horas, os dias, os meses e os anos. Cada indivíduo se vê, e pretende ser visto, como o centro do universo.
A atenção se dobra sobre o próprio umbigo. Uma espécie de presente eterno, com objetos, prazeres e relações sempre novos, ofusca simultaneamente toda memória do passado e a preocupação com o futuro. Estica-se ao extremo limite o conceito latino de carpe diem, distorcendo o sentido de viver intensamente o “aqui e agora” pela opulência ostensiva e acintosa do “viver bem” em oposição ao solidário “bem viver”. Respostas imediatas a desafios e problemas também imediatos substituem a lenta, longa e laboriosa tarefa de avaliar o caminho percorrido até os dias atuais, bem como de planejar os passos do porvir.
Desde um ponto de vista marcadamente econômico, social e político, escreve Anne Ernaux, aproximando-se já da terceira parte da obra: “A caridade se institucionalizava. A mendicância saia das grandes cidades indo para as portas dos supermercados nas cidades do interior e às praias do verão” (pag.157). No Brasil de hoje, ao invés, a mendicância parece concentrar-se nas metrópoles, bem como nas pequenas, médias e grandes cidades. Os grandes centros urbanos se reconvertem em verdadeiras favelas, onde se multiplicam as barracas de lona e as filas para o prato feito ou a cesta básica. Migrações em massa, tanto internas quanto externas; desemprego e subemprego; trabalho informal, tráfico de pessoas e situações análogas à escravidão – tudo isso compõe um cenário que se aproxima das cinzas, ruínas e escombros de uma verdadeira guerra.
Enfim, nas últimas páginas de sua trajetória pessoal e coletiva, a escritora se exprime do seguinte modo: “O ‘orgulho’ que uma pessoa sentia por algo realizado se transformava em orgulho por algo que se era: mulher, gay, provinciano, judeu, árabe etc.” (pag. 184). A ânsia febril e obsessiva pela identidade, seja ela de caráter pessoal, familiar ou corporativista, toma o lugar de determinado ideal a ser alcançado. Trata-se de evolução ou involução? Vejamos: do ter (através do consumo excessivo) ao ser (através do cultivo personalizado), passando pelo fazer (desempenho de uma profissão), leva-se ao limite toda e qualquer possibilidade.
Em lugar de um “ser” (pessoa humana) revestido de bom senso, sabedoria e testemunho a ser seguido, o que se cultua é um ego plastificado e inflado pelos artefatos cada vez mais sofisticados do mercado mundial e contemporâneo da economia globalizada. Aliás, o próprio ser identitário se mistura, se confunde e se funde com os objetos que o mercado nos empurra pela goela abaixo e pela posse do dinheiro para comprá-los antes dos vizinhos, como também se mescla com a performance do cargo ou da função que se exerce. Entre ser, ter e fazer, o ponto focal da existência se desloca de uma banda para a outra com a “velocidade de um clique no mouse do computador”, diz com razão Ernaux. Pessoal e/ou coletivamente, concentração e dispersão, euforia e abatimento, ilusão e desilusão – tudo se alterna a todo momento.