Não é raro ouvir alguém dizer que até por volta da meia idade nos comportamos como revolucionários ou incendiários, depois nos convertemos em bombeiros.
Por Alfredo J. Gonçalves
“A meio caminhar de nossa vida /fui me encontrar em uma selva escura / estava a reta minha via perdida”. Com essa estrofe, começa o poeta italiano Dante Alighieri sua grandiosa obra A Divina Comédia. Consciente ou inconscientemente, o autor parece referir-se à notória e conhecida crise da meia idade, ou ao “demônio do meio-dia”, como a designam certos estudiosos do tema. Se até a metade da vida costuma predominar o vigor e o entusiasmo, a partir daí, tropeçamos com o cansaço, a apatia e, não raro, a depressão. Aquela vontade de recolher os remos supera a força e a coragem de enfrentar águas turvas e bravias. São frequentes os casos em que se pulverizam as grandes referências, sejam elas familiares ou culturais.
Na linha de Zygmunt Bauman, as referências sólidas se liquidificam. E então, parafraseando Simone De Beauvoir, as estrelas se apagam no céu, os marcos desaparecem da estrada e o chão foge debaixo dos pés. Entra-se numa espécie de “túnel escuro”, onde há pouca ou nenhuma esperança de sair dele. Na epopeia conhecida, Dante e seu guia Virgílio tiveram que enfrentar a dura travessia pelos círculos terrificantes e descendentes do inferno; depois, aventurar-se pela íngreme subida do purgatório, o qual depura a alma de seus vícios; antes de entrar na luminosidade do paraíso, na região dos bem-aventurados.
Em termos populares, não é raro ouvir alguém dizer que até por volta da meia idade nos comportamos como revolucionários ou incendiários, depois nos convertemos em bombeiros. Um realismo amargo, para não falar de pessimismo, substitui o otimismo anterior; o outono-inverno toma o lugar da primavera-verão. O simples fato de repetir quase à exaustão que “somos eternamente jovens” ou que “o jovem não se mede pelos anos”, é sinal eloquente de que já nos sentimos para além da juventude. Imperceptivelmente, a subida da montanha cede o lugar à descida. Para o bem ou para o mal, inicia-se o declínio. Enquanto os passos se ralentam e a cabeça se inclina, as articulações vão ganhando uma camada de “ferrugem”, carecendo às vezes de remédios ou cuidados clínicos e hospitalares, mais sérios e invasivos.
Retomando o poeta da epígrafe, que significa dizer que “uma selva escura” faz perder “a minha reta via”? O desânimo bate à porta,os estímulos perdem brilho e energia. Em não poucos casos, na exata medida em que as forças nos abandonam, chega-se a uma melancolia com ares e vagares de enfermidade. O olhar tende a voltar-se para “os dias felizes do passado”, na vã tentativa de fugir a um presente marcado por achaques e fragilidades e, mais ainda, a um futuro incerto e inseguro. É mais ou menos como se quiséssemos caminhar para trás, deixando o amanhã nas mãos dos outros, isto é, “dos mais jovens, que esbanjam energias”. Uma espécie de saudosismo doentio, associado a certa descrença e até desesperança, tolhe a vontade de planejar novos projetos e novos planos. Vem à lembrança, a esta altura, a metáfora do pescador, na obra do escritor norte-americano Ernest Hemingway, O Velho e o mar.
Desde o ponto de vida da ação pastoral, social ou política, boa parte se auto aposenta precocemente, tomando uma atitude reativa e passiva. Prevalece a tendência em relembrar e administrar os feitos realizados, como se tudo o resto fosse coisa vã. Paradoxalmente, enquanto a memória começa a emitir sinais de amnésia, torna-se mais aguerrida a vontade de contar os acontecimentos passados, os quais, irremediavelmente, deslizam por entre os dedos. As paredes do quarto se enchem de fotos e imagens das aventuras de outrora, ao passo que as conversas se enchem de recordações. E estas últimas, com o passar inexorável dos anos e das forças, passam a ser narradas uma, duas, três, quatro... ou mais vezes!
Em outros termos, passamos da vanguarda ao meio campo, depois à retaguarda, vivendo e alimentando-nos das memórias acumuladas na trincheira pelos momentos de sucesso. Entre nós, um punhado se converte em bons contadores de “causos”, sublinhando o “eu”: fiz isso ou fiz aquilo, estava ali naquele momento, acolá naquele outro. A ação buliçosa dá lugar a um repouso centrado sobre si mesmo. Menos mal quando não há mágoas ou ressentimentos a corroer as entranhas. Grave em todo esse processo, ao mesmo tempo difícil e inevitável, é o fato costumeiro de não conseguirmos renovar o quadro das lideranças. Ao recolher os remos, o vento deixa de orientar a direção do porto, as velas deixam o barco à deriva. Ao sabor das ondas, passamos as horas e os dias, o que pode culminar num sono de pesadelo ou um tesouro de memória inesgotável.