Jeitinho brasileiro de fazer política, bolsonarismo, crítica dos meios de comunicação social e marasmo da esquerda são fatores de risco para o novo governo.
de Alfredo J. Gonçalves
Parafraseando o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, entre outros problemas, Lula haverá de tropeçar em algumas pedras desconfortáveis. A primeira refere-se à aliança costurada, seja para o processo eleitoral, seja para a governabilidade. Diferentes partidos, diferentes vozes, diferentes tendências compõem o que hoje vem sendo chamado de “governo de transição”. Em princípio, esse leque de abertura e diálogo deve ser louvado. Trata-se de uma tentativa de fugir às narrativas da polarização e ao tempero do ódio na prática política. Com o tempo, porém, tantas e tão diversas visões devem criar fissuras. Uma coisa é a corrida eleitoral, outra bem distinta são os esforços para governar. O núcleo mais duro dessa pedra, sem dúvida, desenha-se no diálogo com o centrão, que facilmente resvala para o tradicional toma-lá-dá-cá, descambando depois para o histórico e estrutural balcão de negócios, o “jeitinho brasileiro de fazer política”.
A essa pedra, acrescenta-se uma segunda. O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, segue forte, mobilizado e, em não poucos casos, bem armado. Não podemos esquecer que quase metade da população votou em Bolsonaro. Tampouco podemos esquecer seu poder de fogo, de forma toda particular nos meios virtuais de comunicação. A isso é preciso associar um projeto mais amplo da extrema-direita populista, em nível globalizado, no qual o Brasil figura como laboratório das experiências obtusas e retardatárias. Mais do que conservadoras, tratam-se de forças refratárias a qualquer tipo de mudança, que pregam não só o autoritarismo intolerante, mas em especial uma supremacia de raça. Em termos darwinianos, em que a seleção natural é aplicada à sociedade, a raça branca, de sangue mais puro e original, tem o direito e o dever de dominar as demais raças. Por serem estas últimas inferiores, devem consequentemente ser submissas.
O supremacismo luta com unhas e dentes pelo que Adolf Hitler denominava “espaço vital”. Ou seja, a raça superior empenha todos os esforços no sentido de garantir espaços estratégicos onde extrair fontes de alimento, energia, recursos naturais, riqueza!... Um projeto dessa natureza, de forma consciente ou inconsciente, tende a um resultado duplamente nefasto: por uma parte, à conquista, dominação e devastação do planeta Terra/Água até suas últimas potencialidades, aliada à exploração da força humana de trabalho até suas últimas gotas de lágrimas, de suor e de sangue. Por outra parte, tende igualmente ao crescimento progressivo das assimetrias de ordem socioeconômica, tanto em nível de países quanto em níveis de regiões. Como vem alertando o economista francês Thomas Piketty, a desigualdade social no final do século XX e início do século XXI vem sofrendo uma curva ascendente e progressiva.
Junta com a extrema-direita nacionalista, o atual governo sofrerá também uma rigorosa crítica dos meios de comunicação social. Se quisermos usar a intuição de K. Marx, a mídia dominante é a mídia da classe dominante. Num mundo conectado 24 horas por dia, e com a maciça difusão das redes digitais, qualquer deslize por parte de um governo considerado de esquerda será logo espetacularizado.
Espetacular a notícia é uma maneira de distorcer os fatos, conferindo maior relevo à dimensão moral do que às decisões propriamente administrativas. A necessidade de refazer as políticas públicas, desmontadas no governo anterior, facilmente cobrirá o Palácio do Planalto com telhado de vidro, suscetível de todo tipo de crítica.
A última pedra vem do torpor, marasmo ou sonambulismo (os adjetivos se multiplicam) das forças ditas de esquerda: movimentos sociais, organizações não governamentais, setores da Igreja e da academia, artistas, sindicalistas, ativistas, estudantes, mulheres etc. Se no primeiro governo Lula essas forças representavam uma espécie de igarapés que formavam o rio PT, hoje não se pode dizer o mesmo. A magia de um idealismo político se quebrou, a situação se impõe como realpolitik em meio a contrastes e contradições. O desafio se torna muito mais complexo. Como navegar em águas turvas e bravias? Como orientar a nave Brasil em meio aos arrecifes de um oceano hostil, vigilante e disposto ao controle?