Águas que matam

Alfredo J. Gonçalves , CS*

Água é fonte da vida em toda sua diversidade. É o sangue vivo deste gigantesco organismo chamado Planeta Terra. Como nas veias de todo ser vivo, também nos rios e nascentes do globo esse sangue é a origem, garantia e equilíbrio de inúmeros biomas e ecossistemas. Não seria tão exagero chamá-lo de Planeta Terra/Água. A água, de fato, está na raiz de toda resistência, exuberância e reprodução da biodiversidade. Todas as formas de vida nela buscam os nutrientes mais indispensáveis. Água e vida são sinônimos, verdadeiras irmãs gêmeas. A Campanha da Fraternidade de 2011, da CNBB, com o tema Fraternidade e a Vida no Planeta e com o lema "A criação geme em dores de parto" (Rm 8,22) tem muito a ver com esse debate.

Mas a mesma água que é fonte de vida, se e quando descontrolada, pode trazer devastação, dor e morte. É o que temos visto nas últimas semanas de modo especial nos estados do sudeste brasileiro, com destaque para a região serrana do Rio de Janeiro, municípios de Teresópolis, Nova Friburgo e Teresópolis, entre outros. Aliás, é o que vemos praticamente todos os anos, na época do verão, não apenas em várias partes do território nacional, mas também em outros países. Tempestades, borrascas, furacões, deslizamentos de terra, destruição e montanhas de escombros. Parafraseando o livro de Gabriel García Márquez, Crônica de uma morte anunciada, no caso mais em evidência do Rio de Janeiro podemos falar de "crônica de uma tragédia anunciada".

À medida que cresce a impermeabilização do solo, particularmente nas capitais e grandes metrópoles, as chuvas torrenciais provocam inundações e alagamentos cada vez mais furiosos. Trazem sofrimento e perdas irreparáveis. Nem precisaria sublinhar que os mais atingidos costumam ser os pobres, a multidão dos sem teto, obrigados a construir precárias habitações por falta de políticas públicas mais duradouras e consistentes. A vida se vê mais ameaçada onde o investimento público é pouco ou nulo. Mas, depois de Angra dos Reis e de Santa Catarina, nos anos passados, nada se iguala aos mais de 600 mortos e milhares de atingidos dos municípios serranos do Rio.

E aí começam a desfilar as culpas e as desculpas. As autoridades costumam alegar o excesso de chuva, culpabilizando o céu e São Pedro. Sem contar aquelas que ainda ousam jogar a responsabilidade sobre as próprias vítimas, "que constroem suas casas em lugares inadequados e de alto risco". A mídia bate com força e fúria no descaso e abandono políticos em que se encontram determinados setores da população. Numerosos cientistas alertam para riscos iminentes e para a necessidade de medidas preventivas de defesa. Os bombeiros, voluntários e cães farejadores escavam as ruínas à procura de sobreviventes, empilhando os cadáveres a serem transportados para o IML Quanto aos atingidos... Bem, seguem limpando a lama, salvando o que podem, lamentando perdas de bens e de vidas humanas e, no limite, reconhecendo corpos para serem "devidamente" enterrados.

A alusão à obra de Gabriel G. Márquez - crônica de uma tragédia anunciada - é bem oportuna se levarmos em conta a herança maldita que os políticos vão deixando um para o outro. Prefeitos, governadores ou presidentes de plantão, na verdade, herdaram décadas e décadas de falta de planejamento e parcos investimentos em infra-estrutura. É fato notório que do orçamento destinado a grandes catástrofes, o governo Lula, por exemplo, utilizou apenas uma pequena porcentagem. Infelizmente, sua gestão de oito anos não é exceção, mas regra. Histórica e estruturalmente, há um esquecimento sistemático dessas populações que vivem à deriva das tormentas, chorando e apelando para a caridade pública ou a solidariedade alheia.

É certo que a solidariedade do povo brasileiro, nesses momentos cruciais, deve ser louvada. Mas ela também pode desfocar a atenção das gritantes da administração pública. Diante dos mais de 600 cadáveres do Rio de Janeiro e de seus parentes órfãos, sós e perdidos, nada justifica a euforia de governos que se gabam de promover o crescimento para tornar-se uma das maiores economia do mundo, que investem pesadamente em propaganda, em grandes obras, no agronegócio e agroindústria, na indústria automobilística, na salvação dos bancos... Mas deixam milhares de famílias penduradas nos morros ou amontoadas à beira dos riachos.

A necessidade de um planejamento de longo prazo nunca se fez sentir como agora. Nunca antes na história desse país tantos falaram sobre isso. Sabemos de outros países que se prepararam contra nevascas, bombardeios, tufões e outras catástrofes, reduzindo com isso o número de vítimas fatais. O Brasil, com suas riquezas naturais e com seu gigantismo continental, tem condições de preparar-se para semelhantes desgraças, as quais, de resto, tornam-se cada vez mais previsíveis. Tal planejamento exige obras de infra-estrutura em despoluição, em canalização e em controle das águas, bem como uma política habitacional voltada para os setores mais desprotegidos da sociedade. Exige uma defesa civil voltada menos para a correria pós-catástrofes e mais, muito mais, para a prevenção efetiva. A curto e médio prazo, o plano exige medidas de emergência, com abrigos prontos e à mão, assistência imediata às vítimas, programas de evacuação, entre outras coisas.

Trata-se de um planejamento que ultrapassa mais de uma gestão. Projetos e programas que independem deste ou daquele governante. Quantas décadas demoraram as autoridades da Inglaterra para despoluir o rio Tamisa, por exemplo, ou o Canadá para construir abrigos contra o frio abaixo de zero? Mas é justamente aí que reside o problema. Os políticos, em geral e salvo raras e belas exceções, trabalham para se reelegerem. Planos de largo alcance não lhes dá votos imediatos. A ânsia de fazer e inaugurar toma conta da prática administrativa. Tudo tem que ser rápido, pois o mandato se esgota em quatro anos. Por trás dessa prática, estão os interesses das grandes empreiteiras que, em boa medida, contribuem para as campanhas e esperam logo a recompensa. Não é raro encontrar obras em ruínas antes mesmo se inauguradas, ou inauguradas antes de finalizadas. Político esperto não trabalha para outro! Em síntese, o projeto de poder toma o lugar do projeto de nação.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

Fonte: www.provinciasaopaulo.com

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