Uma Assembleia na pandemia

58ª Assembleia da CNBB: “Casas da Palavra – Animação bíblica da vida e da pastoral nas comunidades eclesiais missionárias”.

Por Gianfranco Graziola *

Pela primeira vez na sua história, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realizou entre os dias 12 e 16 de abril de 2021 a sua 58ª Assembleia Nacional de forma virtual, um ano depois da de 2020 ter sido cancelada por causa da pandemia da Covid-19. A esperança era de poder realizar este evento importante para a Igreja no Brasil de forma presencial em Aparecida, SP, como tinha sido costume nos últimos anos, mas o prolongar-se da pandemia obrigou a presidência a optar pela forma virtual, reduzindo pela metade o tempo dos trabalhos.

Se é complicado realizar um evento deste porte com mais de 300 pessoas de forma presencial, é de imaginar que a forma virtual tenha sido um desafio e tanto particularmente pelo Secretário-Geral Dom Joel Portella e pela equipe de assessores, parte da organização chamados a se reinventar para possibilitar a realização dos trabalhos previstos pelo cronograma.

Novos tempos de um diferente caminhar

A situação criada pela pandemia obrigou todas as instituições, e para a CNBB não foi diferente, a rever sua programação e cronograma de compromissos e trabalhos apesar de termos em andamento a concretização das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil pelos anos 2019-2023, a 6ª Semana Social, à qual devemos juntar as iniciativas do papa Francisco com o Ano de São José e da Amoris Laetitia, e o Ano Vocacional previsto para 2023. Não faltaram também outros temas como a análise da conjuntura que o país está vivendo, além de tarefas ligadas a comissões e organismos da própria entidade, como a revisão do Missal Romano, a criação de um novo Regional, o Leste 3 abrangendo o estado de Espírito Santo, para chegar a questão do Fundo de Solidariedade Nacional ligado à Campanha da Fraternidade, nestes últimos anos bastante questionada por franjas fundamentalistas, seja dentro como fora da Igreja.

A Palavra como centro da ação evangelizadora

Tema central da Assembleia foi o Pilar da Palavra, um dos quatro temas das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE 2019-2023), para o qual foi elaborado um texto a ser debatido e estudado: “Casas da Palavra – Animação bíblica da vida e da pastoral nas comunidades eclesiais missionárias”. O tema não é novo no âmbito da Igreja, particularmente após o Concílio Vaticano II que dedicou ao tema da Palavra e sua importância na revelação divina, uma das quatro constituições dogmáticas, a “Dei Verbum”. Também o papa Bento XVI convocou para outubro de 2008 um sínodo sobre a “Palavra de Deus e sua importância na vida e na missão da Igreja”, que teve como conclusão a publicação da exortação apostólica Verbum Domini em setembro de 2010. No Brasil tivemos uma grande movimentação a respeito da Palavra com o movimento bíblico e o nascimento dos grupos bíblicos, e com a ação do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) que levou a uma grande experiência de trabalho bíblico na linha mística de estudo, pregação, oração e missionariedade. Os bispos brasileiros, particularmente nesta última década deram bastante atenção à Palavra, que na sua acepção bíblica é pessoa, é comunicação, é ternura de Deus que se torna letra, como uma carta de amor do namorado para sua amada, que é lida e relida, criando relação entre quem escreve e quem lê.

Um novo documento

O novo documento apresentado para o estudo não é novidade quanto ao tema, ele vem a partir da parábola de Mt 13,1-9 aprofundar a relação entre três realidades: o semeador, a semente, e a qualidade da mesma. Isso é um convite a partir dessa iluminação da ação bíblico catequética da pastoral, que não se limita só a fazer atividades [ex. semana bíblica, estudo bíblico etc.], mas se torna a essência de vida própria da pastoral e das comunidades eclesiais missionárias. Isso faz com que toda a vida seja animada pela força da Palavra, assim como a iniciação à vida cristã e os desafios a serem enfrentados. Entre os desafios apontados temos hoje um esfriamento do trabalho bíblico no Brasil, a questão das traduções nas línguas dos Povos Indígenas, a língua dos sinais, a ausência do querigma, o fundamentalismo [literalismo, historicismo, pietismo], a separação entre Bíblia e tradição eclesial, a teologia da prosperidade, esta última atropelada pela Sagrada Escritura. Falta de a Bíblia ser associada às dimensões pessoal, social e ecológica e unido a isso um crescente desconhecimento da Palavra de Deus, considerada com um livro estranho e difícil. E enfim ela enfrenta hoje três contextos complexíssimos com situações de extrema pobreza, violência institucionalizada e globalização da indiferença. Por isso, continuam os bispos, quem não está vinculado com a Palavra de Deus está com os olhos e ouvidos tapados e fechados para a realidade. A Palavra deve provocar ações que promovam mudanças estruturais para que o mundo seja mais parecido com o que Deus Palavra deseja de nós. A Palavra de Deus é desejada pelo povo, por isso afirmava São João Crisóstomo: “Não posso permitir que um dia passe sem ter nutrido vocês com os tesouros da Sagrada Escritura”.

Os diversos terrenos onde a Palavra é semeada

Seguindo a parábola do semeador, o documento aponta diversos terrenos onde a Palavra é semeada. O primeiro é o da liturgia, onde acompanha os sacramentos e sua escuta renove em nós amor e ardor. O Vaticano II quis devolver à Igreja o apoio da Palavra depois que por muitos séculos ficou sem receber destaque e atenção, o que favorece o clima em que estamos. Aparecida volta a afirmar e fundamentar nossa ação catequética pastoral. Uma atenção especial é dada também as homilias dos ministros ordenados, sua preparação, sua linguagem, tempo, e como distinguindo-se das palestras de formação possam ser valorização e encantamento com a Palavra. O segundo é a relação entre Palavra e ação missionária, onde se compreende cada vez mais que só evangelizadores apaixonados pelo Evangelho poderão transformar o ministério que os vai mover em ministério missionário. O terceiro é a ligação entre a Palavra, a iniciação cristã e a catequese em geral. A iniciação cristã é a articuladora da Igreja Católica destes últimos anos, e onde a Palavra de Deus é fundamental na iniciação à vida cristã. O quarto toca a relação da Palavra com a piedade popular, onde encontramos os limites da evangelização. O quinto relaciona a Palavra de Deus e a família sujeito fundante da ação evangelizadora da Igreja, lugar por excelência onde a Palavra de Deus deve ser escutada, acolhida, vivida, transmitida como alimento e esperança. O sexto é as Juventudes, terreno prioritário. Os jovens vivem cada vez mais conectados, vivem experiências fortes e fazem escolhas do momento, mas são capazes de amar a partir de Jesus Cristo. O sétimo terreno é o Ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Papa Francisco é mestre disso quando compara esta realidade a uma melodia onde os sons são diferentes, mas na sua unicidade e capacidade de se fundir formam uma harmonia, melodia. O oitavo é a Palavra de Deus e os meios de comunicação social como espaço de anúncio da Palavra. Neste contexto a necessidade de investir na formação para quem usa estes meios cuidando não apenas das técnicas e tecnologias, mas também do conteúdo. E um último terreno é o da formação dos ministros ordenados partindo dos seminários onde os seminaristas sejam formados à escola da Palavra de Jesus Cristo. Essa formação que nunca termina porque, quem está nos diferentes ministérios da Igreja deve se alimentar constantemente dessa Palavra que como afirma Francisco, porque Deus é sempre novidade que nos impele a sair sem cessar e nos move por além do conhecido rumo as periferias e confins do universo.

Outros temas em foco

Além do tema central, a Assembleia focou bastante sobre a situação atual brasileira ajudada pela análise de conjuntura que ajudou os bispos a tomar consciência das dificuldades que a população e, particularmente a mais pobre e vulnerável está sofrendo e como a pandemia veio a desmascarar uma realidade que já faz tempo está acontecendo, como é o caso da saúde e do desmonte do sistema único expressão do maior descaso dos poderes Executivo, Legislativo e do próprio Judiciário com a nação brasileira. Nesta onda se inseriu a 6ª Semana Social Brasileira e o grande mutirão pela Vida, por Terra, Teto e Trabalho, assim como a situação dos Povos Indígenas e o aumento da fome e da miséria.

Em sua mensagem final os bispos brasileiros, afirmaram como a realidade de sofrimento deve encontrar eco no coração dos discípulos de Cristo. Tudo o que promove ou ameaça a vida diz respeito à nossa missão de cristãos. Sempre que assumimos posicionamentos em questões sociais, econômicas e políticas, nós o fazemos por exigência do Evangelho. Não podemos nos calar quando a vida é ameaçada, os direitos desrespeitados, a justiça corrompida e a violência instaurada. E chamando a atenção dos poderes públicos continuam os bispos:

“São inaceitáveis discursos e atitudes que negam a realidade da pandemia, desprezam as medidas sanitárias e ameaçam o Estado Democrático de Direito. É necessária atenção à ciência, incentivar o uso de máscara, o distanciamento social e garantir a vacinação para todos, o mais breve possível. O auxílio emergencial, digno e pelo tempo que for necessário, é imprescindível para salvar vidas e dinamizar a economia, com especial atenção aos pobres e desempregados. Preocupa-nos também o grave problema das múltiplas formas de violência disseminada na sociedade, favorecida pelo fácil acesso às armas. A desinformação e o discurso de ódio, principalmente nas redes sociais, geram uma agressividade sem limites. Constatamos, com pesar, o uso da religião como instrumento de disputa política, justificando a violência e gerando confusão entres os fiéis e na sociedade”.

E a Conferência Episcopal chama a nossa atenção sobre algumas realidades que merecem nosso cuidado afirmando:

“Merece atenção constante o cuidado com a casa comum, submetida à lógica voraz da “exploração e degradação”. É cada vez mais necessário superar a desigualdade social no país. Para tanto, devemos promover a melhor política, que não se submete aos interesses econômicos, e seja pautada pela fraternidade e pela amizade social, que implica não só a aproximação entre grupos sociais distantes, mas também a busca de um renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis”.

E como conclusão eles relançam com todas as forças vivas da sociedade o Pacto pela Vida e pelo Brasil, renovando iniciativas que promovam fraternidade, partilha, diálogo, trilhando o caminho da fraternidade rumo à reconstrução da sociedade brasileira sobre os alicerces da justiça e da paz.

* Gianfranco Graziola, imc, é membro da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária.

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