O silêncio é povoado de distintos ruídos. Mas, através da arte e da mística, esses últimos podem converter-se em melodiosas notas musicais.
Por Alfredo J. Gonçalves
O silêncio é a condição “sinequa non” do encontro. Silêncio do repouso e da escuta para que, saindo da órbita do próprio ego, possamos olhar e refletir a partir de um ponto de vista mais aberto e plural. Trata-se, na verdade, de um encontro em tríplice dimensão: consigo mesmo, com o outro e com Deus. Sem passar pelo crivo e pelo filtro do silêncio, o qual é capaz de ouvir para além das turbulências que entorpecem o cotidiano, jamais chegaremos a conhecer o lado mais obscuro de nós mesmos, não deixaremos que a alteridade nos interpele e menos ainda poderemos ouvir a “voz” de Deus. O problema é que, nos dias de hoje, vivemos e nos movemos no interior de uma sociedade fortemente marcada pela urbanização: febril, agitada, rumorosa e estridente. São múltiplos e diversificados os ruídos que ela produz. E os produz a cada segundo, a cada minuto e a cada hora do dia e da noite, sete dias por semana, doze meses por ano. Nesta modernidade da ciência, da tecnologia e do progresso, o tempo, a distância e a noite foram abolidos. Produção e produtividade, em crescimento sem precedentes, adquirirem um rumor ininterrupto, como um gigantesco organismo vivo, que vibra, respira e atordoa. Sons e luzes, cores e sabores temperam o tecido social da existência urbana.
Externos ou internos, os ruídos ganham tonalidades cada vez mais ensurdecedoras. Basta ter presente o estardalhaço colossal provocado pela depredação progressiva e irreversível do meio ambiente e dos recursos naturais; os gemidos e gritos que, a partir dos “infernos humanos”, clamam aos céus devido às assimetrias e desigualdades sociais; o barulho subterrâneo de estatísticas, tabelas e percentuais que acumulam e concentram, ao mesmo tempo, riqueza e exclusão social; os atritos, polêmicas e conflitos que causam o exercício da prática política ou politicagem; o som de balas e metralhas, com suas respectivas feridas e cicatrizes, não raro silenciosas e silenciadas, da violência doméstica ou pública; os passos ansiosos e muitas vezes clandestinos de quem deixa a terra natal na luta por um futuro mais promissor.
Entre todos, nos perturbam os ruídos da casa/lar ou da comunidade. Podem ser causados pelas discórdias e desavenças familiares e/ou comunitárias, coisas que tendem a se agravar em tempos de pandemia e de quarentena. Telas, janelas e varandas nos proporcionam rotas de fuga, no sentido de escapar ao diálogo e ao encontro olho-no-olho, cara-a-cara. As drogas de maneira geral, incluindo o álcool, também costumam virar tudo de pernas para o ar, onde pranto, gritos, palavrões e sofrimento se fundem e confundem a todo tempo. E convém sublinhar, ainda, o mutismo ruidoso, desértico, infecundo e despovoado. Em lugar do silêncio sereno, prevalece a recusa de comunicar-se, o fechamento acintoso, o isolamento de tudo e de todos. A família ou a comunidade se divide em “guetos” de uma, duas ou três pessoas, um verdadeiro arquipélago de bolhas isoladas e incomunicáveis. Debaixo do mesmo teto e entre as quatro paredes, vemo-nos obrigados a respirar as gotículas do vírus extremamente contagioso do desamor. O ambiente torna-se tenso, pesado e venenoso. Um céu de chumbo domina a atmosfera.
Não podemos esquecer, enfim, os ruídos pessoais. Sentimentos, instintos, emoções, interesses, desejos e paixões, além de ódio e amor, raiva e rancor, inveja e ciúme, sensação de impotência e de fracasso, vontade de vingança – eis o desfile de fantasmas que se chocam contraditoriamente no interior de cada um de nós.
Emergem improvisamente do mais profundo de nossas vísceras, mergulham as raízes nas entranhas mais íntimas, sobem do fundo obscuro de terrenos e desertos desconhecidos para nós mesmos. “Coração de gente é terra selvagem”, lembra o poeta. Vícios, virtudes e valores se mesclam, se misturam e se entrelaçam. Coexistem e convivem de forma ruidosa, sem poupar-nos surpresas, tormentos e perturbações.
O silêncio é povoado de distintos ruídos. Mas, através da arte e da mística, esses últimos podem converter-se em melodiosas notas musicais. O processo de alquimia espiritual tem o potencial de transfigurar, sublimando-os, os diversos ruídos em uma grandiosa orquestra sinfônica.