Alfredo J. Gonçalves , CS*
O hóspede constitui um dos personagens centrais no cenário da experiência humana. Começando pelos escritos religiosos, ele ocupa aí um lugar privilegiado. Afinal, pode ser um enviado dos deuses, ou o próprio Deus disfarçado de anjo (ou demônio). Três exemplos da literatura judaico-cristã ou das sagradas Escrituras. Primeiramente, Abraão e Sara acolhem e agradecem a passagem dos três forasteiros em sua tenda e deles recebe igualmente a alegre notícia, vinda de Deus, de que viria a ser pai, apesar da idade avançada do casal (Gn 18, 1-15). Depois, Jesus, ele mesmo, se faz forasteiro e arma sua tenda entre nós, "percorrendo aldeias e cidades", caminhos e montanhas, anunciando a Boa Nova do Reino de Deus (Mt, 9, 35-38). Enfim, Paulo, em suas longas e custosas viagens é recebido como hóspede em numerosas casas e nas comunidades cristãs incipientes.
A literatura greco-romana não é diferente. Baste-nos tomar as grandiosas obras de Homero e Virgílio. Tanto um como o outro reservavam aos errantes Ulisses e Enéas, respectivamente, boa acolhida e mesa farta. Ambos os heróis chegam e partem como as marés, mas nunca lhes são negados um banquete suculento e um repouso tranqüilo.
Na era medieval, também os heróis da cavalaria costumam ser bem recebidos por onde quer que passem. Os castelos, por exemplo, são fortalezas para os inimigos, mas abrigos para os amigos. O maior exemplo disso é, sem dúvida, o célebre "cavaleiro da triste figura", Dom Quixote. Meio louco e meio sábio, tem lugar garantido nos intervalos de suas andanças e de suas empresas quixotescas.
Outro exemplo poderia ser tirado dos romeiros por todo território brasileiro. Os pólos de visitação se multiplicam: Basílica de Aparecida, em São Paulo; Santuário do Divino Pai Eterno, em Trindade, em Goiás; Juazeiro do Norte, terra de Pe. Cícero, no Ceará; Bom Jesus da Lapa e Senhor do Bonfim, Bahia, e assim por diante. As cidades, fazendas e casas que ficam no caminho dos peregrinos, por mais pobres que sejam, sempre lhes reservam boa acolhida e lhes reforça o ânimo (e o corpo) para seguir na peregrinação. É como se eles fossem porta-vozes inconscientes dos anseios e esperanças de toda a população que não encontra tempo para visitar os lugares santos. Há casos em que tais romarias, especialmente quando feitas a pé, duram semanas e até meses.
O que há por trás ou no interior dessa acolhida ao hóspede, ao forasteiro? Na verdade, eles figuram como uma espécie de protótipos da própria caminhada humana sobre a face da terra. Todos somos forasteiros pelas veredas da história, hóspedes de locais determinados, mas sempre impulsionados a seguir adiante. Por mais sólidas que sejam nossas casas, fortalezas ou castelos, sempre serão tendas de alguém a caminho. Construímos edifícios para durar séculos e raramente atingimos os cem anos!
Entretanto, teimamos em agarrar-nos, com unhas e dentes, às coisas, às pessoas e às relações que nos acompanham em vida. É com extrema dificuldade que deixamos os tesouros acumulados em bancos, terra e renda. E com que tristeza abandonamos as obras iniciadas, como se personificassem uma existência perene! Igual tristeza nos invade quando o sucesso ou o prestígio se convertem em ruínas, o fogo em cinzas e os aplausos em vaias. Não somos árvores fincadas no solo, mas como é doloroso cortar raízes!
Raramente nos damos conta que uma das condições para a eternidade é justamente a passagem pela morte. Só ela torna eterno o amor, a beleza e o bem que marcam nossa passagem pelo mundo. Só ela permite a memória do passado e a ressurreição futura. Aliás, para quem ama, a ressurreição ocorre de certa forma antes da própria morte. Amor é vida, e a morte não leva os vivos; só leva os que já estão mortos.
Em uma palavra, seremos tanto mais livres quanto mais despojados, tanto mais imortais quanto mais capazes de atravessar o vale escuro da morte. Para além dos desejos efêmeros, fugidios e fugazes que encontramos pelo mil caminhos da existência, oculta-se o grande Desejo da eternidade. Somente na condição de hóspedes é que podemos aprender essa lição e desfrutar antecipadamente de instantâneos momentos eternos.
* Alfredo J. Gonçalves, CS, superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.
Fonte: Alfredo J. Gonçalves