Falar de cotas raciais no Brasil é, sem dúvida, descrever a situação do racismo e da exclusão do negro na sociedade brasileira em prol da sua inclusão social.
Por Jacques Kwangla Mboma*
O quadro da discriminação racial no Brasil é gritante ao se comparar com o dos Estados Unidos e África do Sul. A experiência dos negros desses países, depois da segregação racial nos revela que a população negra avançou na inclusão social, mais do que no Brasil. Um dos elementos desse fator é que muitos negros americanos e sul-africanos conseguiram concluir o ensino superior, assumindo alguns cargos nas funções públicas. Mas no Brasil, os negros ainda permanecem numa camada do grupo social que mais sofre a exclusão social em vários setores.
As cotas raciais ou as políticas de cotas, ou ainda as ações afirmativas entendidas como abrangentes, foram iniciadas na Índia e não nos Estados Unidos, como apontam algumas fontes. De acordo com o pensador, Carlos Moore, “o conceito de ação afirmativa teve sua origem na Índia, logo após a Primeira Guerra Mundial, antes mesmo que esse país se tornasse independente do Império Britânico” (WEDDERBURN, C.M., 2005). O sistema da sociedade indiana era dividido em vários grupos diferentes, chamados de “castas” sendo que alguns desses grupos eram considerados superiores, outros inferiores.
No ano de 1919, Bhimrao Ramji Ambedkar (1891-1956), jurista, economista, historiador e membro de uma casta considerada “intocável” propôs a representação diferenciada dos segmentos populacionais designados e considerados como inferiores na sociedade indiana. A proposta foi contestada pelo líder da Independência da Índia, Mahatma Mohondas Gandhi que a rejeitou, argumentando que uma ação afirmativa traria guerra e divisão entre as castas. Consequentemente, isso mudou o status quo entre esses grupos.
Em 1950, na elaboração da Carta Magna indiana nos artigos 16 e 17, a ideia foi mudada: os artigos proíbem a discriminação com base na raça, casta e descendência, abolem a intocabilidade e instituem um sistema de ações afirmativas denominado reserva, ou representação seletiva, nas assembleias legislativas, na administração pública e nas redes de ensino (Ana Paula Comín de Carvalho, 2013, p. 164).
O sistema de cotas se instala nos Estados Unidos só em 1960 após as lutas das comunidades negras em favor dos direitos civis. Na década de 1990 a Europa teve que incluir o conceito de paridade representativa de mulheres nos cargos efetivos da sociedade por meio das cotas.
Brasil
A história de cotas no Brasil é o resultado de luta dos movimentos negros, intelectuais, ativistas e militantes em prol de uma maior integração do negro à sociedade. O movimento Frente Negra Brasileira (1930) e a Convenção Nacional do Negro Brasileiro liderado por Abdias Nascimento na década de 1940 marcaram voz ativa pelas reivindicações pela igualdade de direitos. Os novos tempos vividos pelos movimentos negros fortaleceram mais ainda uma consciência coletiva face aos desafios que enfrentam os negros nesta sociedade. Por este motivo, esses movimentos pressionaram o Congresso Nacional para implementar as políticas afirmativas como parte da Lei Federal. Para o Supremo Tribunal de Justiça, a ação afirmativa para os negros é um meio de resgate a determinadas dívidas históricas. A ação afirmativa foi aprovada pela pressão dos movimentos negros desde as iniciativas históricas lançadas pela convenção Nacional do Negro Brasileiro. Pela primeira vez, a proposta foi apresentada na Assembleia Legislativa, por meio de Lei No 1.332, no ano de 1983.
Vale a pena esclarecer que as cotas raciais são parte das políticas afirmativas e não se subordinam a elas. Carlos Medeiros diz, “o projeto não chegou sequer a ser apreciado, mas é interessante observar que algumas das medidas nele contidas acabaram sendo implementadas, embora muito mais tarde, como é o caso das bolsas de estudos para negros no Instituto Rio Branco, criadas no governo Fernando Henrique, e das modificações circulares recentemente instituídas pelo governo Lula, por meio da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que, alterando o artigo 1º da lei de Diretrizes e Bases (N 9.394, de 20 de dezembro de 1996), torna obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, o ensino de história e cultura afro-brasileira (MEDEIROS, 2005).
Por meio da Lei 12.711 de 2012, o ano de 2000 iniciou a implementação de cotas de reservas de vagas para alguns candidatos em seu processo seletivo na Universidade Nacional de Brasília (UNB), no mesmo ano, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro abraçou a proposta de maneira positiva, ampliando o número para 50% das vagas para estudantes negros que cursaram o ensino médio em escolas públicas, que são preenchidos por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
Em 2001, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) seguirá a mesma política. Existem algumas controvérsias, questionamentos e resistência face ao sistema de cotas raciais. Para Florestan Fernandes, o problema da sociedade brasileira não é tanto o problema racial, mas de classe. Para ele, afirmar que o Brasil é um país de maioria negra como afirma o IBGE 54%: preto e pardo que só perde para a Nigéria é uma questão a ser discutida. Embora Florestan afirme que a existência da maioria da população brasileira é mestiça, mas não negra. Esse argumento esconde o mito da democracia racial, teoria desenvolvida longamente na obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”.
Racismo
No Brasil, o racismo exerce o controle sobre o gênero cuja população negra é a maior vítima. Vivemos num país onde a maioria da população é negra, mas nas mídias nem chega a 1% nos programas de TVs e outros. Os negros estão ausentes nos cargos elevados da sociedade, na política, nas grandes empresas, nos bancos multinacionais, na educação, na saúde. Quando conseguem uma dessas responsabilidades, se espera que seja de posição subalterna. As cotas sociais não podem suprimir a existência de cotas raciais. Os que são contra as cotas raciais pensam que ao aderir o sistema de cotas, o racismo inverso vai se acentuar. Outros acham que os sistemas de cotas vêm provocar uma tensão, ao romper o sistema da educação unilateral de matriz europeia. Outros ainda diriam que as cotas causariam o impedimento na qualidade de ensino acadêmico. Do que se pensa o contrário, o sistema de cotas trouxe e vem trazendo uma bagagem muito importante para que o universo do conhecimento seja multidisciplinar e intercultural.
A pesquisa mostra que o número dos que se identificaram como negros no Brasil aumentaram. Quer dizer, a população começou a assumir sua identidade. Algumas universidades públicas do país resistem ainda em adotar as cotas raciais. Temos o caso de vários programas que ainda nem sequer falam disso. O sistema de cotas raciais ficou reduzido aos programas de Ciências Humanas e Sociais.
O sistema de cotas vem contribuindo para o novo horizonte de conhecimento, valorizando as diversidades étnicas e não somente uma monocultura europeia predominantemente marcada em nosso mundo acadêmico. Neste sentido, a aceitação de cotas raciais levará a uma exigência fundamental para que todos os docentes e discentes estejam dispostos para aprender com a cultura africana. Algumas críticas não têm nenhuma base científica, quando se afirma que as cotas raciais dividem as pessoas nos mesmos grupos, trazendo o ódio na sociedade. Outros dizem que existe branco e negro pobre, por este motivo deve-se acabar com esse discurso do “privilégio branco”.
As cotas não são migalhas, mas são um direito de reparação para corrigir as diferenças sociais e econômicas causadas pelo sistema escravocrata. Sabemos que os negros nunca foram indenizados após a abolição da escravidão. Lutaram e construíram esse país por meio da obra de mão escrava, mas depois foram abandonados. Numa sociedade capitalista onde há uma grande concorrência, a implementação do sistema de cotas pode ajudar os negros a se igualar aos brancos para poder ter os mesmos direitos. Talvez seja um sonho que pode acontecer. Tanto na Índia como nos Estados Unidos e no Brasil, as cotas raciais visam diminuir a incidência da desigualdade social, educacional e econômica.
Neste sentido, ao falarmos de cotas raciais, não podemos deixar de discutir sobre o racismo que está na base da recusa das mesmas. Os estudos de raça ajudam a entender a situação de outros grupos em relação à situação de negros, os quilombolas, a questão indígena, entre outros. Não podemos negar que o conceito de raça está na origem de todas as discussões sobre racismo muitas vezes velado, portanto a negação em conhecer o que é a raça está na base de manter a supremacia branca em detrimento de outros valores não ocidentais. O racismo é algo que infiltra em todos os mecanismos da estrutura social. Cabe a toda a sociedade ser antirracista e apoiar as iniciativas como essas políticas de cotas, para extinguir o preconceito e a exclusão social.
REFERÊNCIA
CARVALHO, Ana Paula Comín de et al. Desigualdades de gênero, raça e etnia. Curitiba: InterSaberes, 2013, p. 164.
AMBEDKAR, Bhimrao Ramji. Annihilation Of Caste. Freedom of India: Opensource, 1936.
MEDEIROS, C.A. “Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso”. In: SALGUEIRO, M. A. (org.). A República e a questão do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Museu da República, 2005.
WEDDERBURN, C.M. “Do marco histórico das políticas públicas de ações afirmativas: perspectivas e considerações”. In: SANTOS, S.A. dos. (org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC, 2005.