A inculturação do carisma

A inculturação do carisma Ad Gentes responde à dinamicidade de Deus que se relaciona e às exigências dos sinais-tarefa dos tempos. Consequentemente, essa inculturação imersa no universo dos povos tem por finalidade de que surja uma comunidade/Igreja de rosto próprio.

Por Isaack Mdindile

A primeira atitude do missionário ao pisar na terra do outro, é aquela de reverência, respeito, escuta responsiva e observação da semente do Verbo presente na cultura. Como dizia Santo Irineu de Lyon (século II) “o que não é assumido, não é redimido”. De fato, na América Latina se trata de assumir a causa afro-indígena nas suas singularidades e integridades.

É notável que para o nosso Fundador, o Bem-aventurado José Allamano, a santidade significa a integridade das coisas: uma evangelização integral e pessoal; sacerdotes íntegros que vivem a vida religiosa com alegria e coragem. Portanto, o carisma Ad Gentes concebido a partir da interculturalidade é mais amplo, holístico e kenótico.

Sinais dos tempos

Neste sentido, não podemos limitar o carisma apenas em termos numéricos e geográficos das missões, mas expandir a nossa compreensão a seu respeito, à luz do Evangelho e dos sinais dos tempos. Ou seja, provocar novas utopias/teologia imaginativa no que diz respeito à comunicação do nosso carisma numa nova linguagem e gestos concretos para o mundo moderno. E me parece que temos muita dificuldade de viver e comunicá-lo nas grandes cidades e nas periferias, que estão cada vez se urbanizando mais. Por que será? Como foi a experiência Ad Gentes na Europa? Que lição tiramos?

A nível de Coronavírus, os debates sobre racismo estrutural e ambiental e aumento das desigualdades sociais, por exemplo, deve nos questionar de como o nosso carisma pode responder a tais realidades que nos tocam diretamente. De maneira mais proativa, devemos investir e qualificar mais as nossas opções – entender melhor as realidades presentes no mundo dos afro-indígenas, eventos ecológicos, saúde-espiritualidade, psicologia social, o mundo do direito etc.

Sempre mais, hoje é necessário que a paixão e dedicação pela missão seja acompanhada pela competência que permite certa significância do trabalho e da presença missionária. Precisamos desde cedo incentivar e investir na preparação dos missionários quanto a causa afro-indígena e periferias urbanas. O estudo e especialização não pode ser uma premiação, mas sim uma necessidade pastoral.

A nova hermenêutica carismática precisa ir além de um dossiê bíblico-dogmático e administração dos sacramentos. Precisa no mínimo, se levar em conta as várias contribuições e parcelas, uma certa fusão de horizontes. Procuremos, portanto, um diálogo interdisciplinar e inter congregacional. De sermos docente e discente, enquanto Congregação no mundo. Qualquer Instituto para sua sobrevivência precisa ler, a todo momento, os sinais dos tempos, para que, assim, possa responder, de modo técnico e atraente a cada geração, às eternas perguntas dos homens e mulheres acerca do sentido da vida presente e futura, e da relação entre ambas.

Leigos missionários

Vejo que na nossa Congregação a questão de formar e trabalhar com os leigos missionários ainda é muito fragmentada. Mesmo com pesquisas que mostram que o hoje da Igreja depende dos leigos formados e conscientes, a nossa missão continua sendo muito clerical, e isso não é saudável para o futuro do Instituto. Há todo um caminho a ser feito ai, de formação, de animação missionária, de proximidade aos leigos desde a formação de base, e que poderia abrir outras portas e outras experiências.

Não é por acaso que nos atos do XIII Capítulo Geral, a palavra cultura ou inculturação como temas pertinentes aparece por 31 vezes e por sua vez, a palavra carisma no mesmo documento, aparece por 21 vezes, para mostrar a urgência da inculturação do carisma, mas também como resposta ao fôlego carismático do Papa Francisco e seu sonho eclesiológico. Mas mesmo assim, a nossa estrutura/cultura congregacional permanece a mesma com suas normas instituídas, com seus papéis estabelecidos e seus fluxos previstos. Ultimamente, há boas iniciativas renovadoras da Direção Geral do Instituto, sendo de cima para baixo, mas de baixo para cima ainda é muito pouco. Ou seja, a recepção e interação dos assuntos internos ainda não são suficientes para o funcionamento equilibrado do corpo-Instituto.

A inculturação do carisma é sempre um processo ad intra e ad extra, requer esse movimento de pericorese contínua. A razão mais profunda da “crise” da missão é interna, ligada à incerteza das motivações e consequente perda do ardor missionário (cfr. RM4). Além de requalificar o nosso modo de ser e agir como missionários da Consolata, precisamos apreciar, mas, sobretudo promover a nossa interculturalidade enquanto vivência que ainda continua pouco aproveitada.

Afirma Max Weber (1997) que diferentemente da força transformadora da razão que opera de fora, o carisma é uma renovação que opera por dentro da tradição, nascendo da indigência ou do entusiasmo “significa uma variação da direção da consciência e da ação, com reorientação completa da consciência  de  todas as  atitudes frente às  formas de vida anteriores ou  frente ao ‘mundo’ em geral”.

Ademais, dentro do espírito da revitalização da missão, mas sobretudo da pessoa do missionário, isso é nos pautar pela transparência, pela sinceridade e pela coragem em empreender reformas que toquem na estrutura burocrática do Instituto, não em nome de sua eficiência, mas de sua coerência evangélica. Sem uma profunda convicção sobre a natureza semper reformanda do Instituto em nome da fidelidade ao Evangelho, as reformas poderão nascer e morrer nas terras desertas da burocracia e nas armaduras blindadas dos velhos esquemas teológicos.

Hoje precisamos dar mais visibilidade ao nosso carisma, irradiá-lo com criatividade sem perder seu brilho não original, mas autêntico, através da animação missionária, media sociais, diálogo inter-religioso, pois ainda continuamos muito presos ao método dedutivo e aos documentos e normas estabelecidas. É o “tempo de acordar” (cf. Rm 13, 11) de deixar para trás truques, negligência, lei do menor esforço, e pastoral do medo.

No processo de libertação e evangelização integral, a identidade e a memória de um povo é de suma importância. Por isso, o missionário tem a tarefa de recuperar essa memória, escrever a história dos respectivos povos e promover a coleção dos seus sabores e saberes. O princípio do nosso carisma se encaixa perfeitamente com o paradigma do bem-viver dos povos indígenas que se articula tal como memória e horizonte – por um lado, memória pré-colonial e tradicional do mundo andino – e, por outro, protesto e luta contra o aumento dos hegemonias monótonas.

E ultimamente uma das coisas que me chamou atenção e interesse foi a iniciativa da Direção Geral de recuperar, preservar e valorizar o patrimônio cultural do Instituto. Tendo a tríplice finalidade de valorizar o patrimônio, qualificar a presença e animar a missão.  Ou seja a recuperação da memória de experiências de missão significativas, tanto passadas como presentes e promover a produção/exposição dos estudos e obras sobre as mesmas são fundamentais no percurso da nova evangelização. Ainda é uma ideia e sonho, claro, que precisa de pesquisas, consultas para se tornar algo concreto.

* Isaack Mdindile, imc, é missionário na Amazônia.
ATOS do XIII Capítulo Geral dos Missionários da Consolata, Roma, 22 de maio-20 de junho de 2017.
SUESS, Paulo. Crônicas de Pastoral e Política Indigenista. Petrópolis: Editora vozes, 1985.
ALMADA, Roberto. Cansaço dos Bons, a logoterapia como alternativa ao desgaste profissional. São Paulo: Cidade nova, 2013.

 

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