A verdadeira pandemia é a indiferença

Gianfranco Graziola, missionário da Consolata, é membro da Pastoral Carcerária e fala em entrevista ao Osservatore Romano sobre o trabalho nas prisões brasileiras.

Por Francesco Ricupero

"É um grave erro pensar que, ao prender um indivíduo na prisão, você pode resolver os problemas da sociedade. Nas prisões o ser humano não é mais dono de si mesmo; as penitenciárias esvaziam as pessoas reduzindo-as ao nada, tornando-se apenas lugares de punição e controle, especialmente dos mais pobres e dos jovens dos subúrbios": está firmemente convencido disso padre Gianfranco Graziola, missionário da Consolata há vinte anos no Brasil, Diretor-Presidente da Associação de Apoio e Acompanhamento (ASAAC), da Pastoral Carcerária Nacional brasileira que, para o «Osservatore Romano», relata as difíceis condições de reclusos e reclusas nesse momento particular de emergência sanitária caracterizada pela pandemia da Covid-19, que causou mais de 2.442.000 contágios e mais de 87.600 mortes. "Precisamos enfrentar juntos – explica – para evitar o descontentamento da população que, além de ter medo do Coronavírus, corre o risco de morrer de fome. A Igreja está fazendo todo o possível para ajudar, mas sozinha não é suficiente. Precisamos envolver as instituições".

Qual é o compromisso da Pastoral Carcerária por um cárcere com rosto humano?

A Pastoral Carcerária no Brasil é totalmente diferente de outras experiências no mundo, em particular comparadas à Europa, Estados Unidos, Ásia e Oceania e à própria América Latina onde opera o capelão penitenciário, uma figura que não existe aqui. Entre nós, a Pastoral Carcerária é realizada pelo Povo de Deus, homens e mulheres leigos, religiosos e religiosas, sacerdotes e bispos que semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente visitam as penitenciárias nos 27 estados do Brasil e no Distrito Federal onde está situada a capital, Brasília. Existe uma Coordenação Nacional que, por sua vez se ramifica nos níveis estadual, regional e diocesano. O grande desenvolvimento da Pastoral Carcerária em sua forma atual começou com a Campanha da Fraternidade de 1997 cujo tema era: “A Fraternidade e os Encarcerados” e o lema “Cristo Liberta de Todas as Prisões”. Mas há um outro evento, o “Massacre do Carandiru”, no qual, em 2 de outubro de 1992, 111 encarcerados na então penitenciária foram cruelmente assassinados pela Polícia Militar. Hoje, neste lugar, banhado pelo sangue da tantos irmãos, temos o parque da juventude Paulo Evaristo Arns. A Pastoral Carcerária no Brasil tem como princípio básico e seu objetivo a construção de um “Mundo sem cárceres” tendo como referência o discurso de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,18-19) e a carta de São Paulo aos Gálatas 5,1. A mesma Encíclica Laudato Si, reforça ainda mais a nossa convicção quando afirma a necessidade de uma conversão ecológica integral.

Qual é a relação da Pastoral Carcerária com as famílias dos encarcerados/as?

O cotidiano da Pastoral Carcerária é a visita aos nossos irmãos e às nossas irmãs na prisão colocando em prática o Evangelho: "Eu estava na prisão e você me veio visitar" (Mateus 25,36). Por esse motivo os agentes da pastoral quando entram no cárcere vão encontrar Jesus e se colocam na escuta para acolher a presença misericordiosa de Deus. O grande crescimento nestas últimas décadas de mulheres privadas de liberdade (700 per cento) deu origem na Pastoral ao departamento da “Mulher Presa” que hoje tem uma coordenadora nacional. A comemoração em 2017 dos 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora no Rio Paraíba, norte do estado de São Paulo, daí o nome de “Aparecida”, inspirou-nos a celebrar este Jubileu pensando em “Maria e as Marias no cárcere”, não apenas as privadas de liberdade, mas a todas a mães, esposas, filhas, irmãs que fazem fila semanalmente em frente às prisões, trazendo consigo o estigma de uma sociedade desigual e seletiva. Disso nasceu uma nova dimensão da Pastoral Carcerária que, é um relacionamento com as famílias dos privados e privadas de liberdade que, contribui para sua organização em associações envolvendo-as e tornando-as protagonistas do projeto do “Mundo sem cárceres”.

O que fazem de específico?

As pastorais que se inspiram na Doutrina Social da Igreja, e que no Brasil estão agrupadas na Comissão Episcopal Pastoral pela Ação Sócio-transformadora, devem contribuir a partir do Evangelho, para uma efetiva transformação da sociedade, construindo o que São Paulo VI chamou de “Civilização do amor”. Conscientes, como Montini dizia, de que o anúncio da Boa Nova anda de mãos dadas com a promoção humana, não podemos deixar de lidar com a política, o bem comum, a mais alta expressão da caridade, combatendo as causa que levam ao encarceramento em massa, como é o caso de traficantes e usuários de drogas. Por este motivo, desde 2013, juntamente com organizações da sociedade civil, identificamos alguns pontos, definidos como “os dez mandamentos da Pastoral Carcerária”, que incluímos na Agenda pelo Desencarceramento.

Quais são os pontos centrais?

O documento abrange as questões cruciais do sistema penitenciário e faz alguns pedidos, como a suspensão de fundos destinados à construção de novas unidades; a redução da população carcerária e da violência produzida nas instituições carcerárias; mudanças na lei para limitar a prisão preventiva; a mudança na política de drogas; racionalização do sistema penal; abertura a mecanismos de controle social; proibição de privatização do sistema; prevenção e luta contra a tortura; desmilitarização.

Como a atividade da Pastoral é percebida nas instituições prisionais?

Hoje a Pastoral Carcerária goza da confiança seja dos encarcerados/as como de suas famílias, e tem uma credibilidade que foi construída ao longo do tempo também no campo estritamente jurídico e técnico. Isso garante que seja respeitada pelas instituições e por numerosas organizações civis e não governamentais. Isso garante que seja respeitada pelas instituições e por numerosas organizações civis e não governamentais que acompanham as questões criminais. Denunciamos constantemente a superlotação, resultado de um processo de encarceramento em massa que viola a Constituição e aumenta a burocracia do setor. De fato nas prisões brasileiras temos 40% de detidos/as, e em alguns casos como o Amazonas até 60% que são “provisórios”, isto é ainda não foram ouvidos por um juiz ou aguardam a sentença final.

Milhares de detidos foram libertados recentemente por medo de que o Coronavírus se espalhe ainda mais. Você não acha que isso pode aumentar a violência no país?

A situação carcerária no Brasil é muito ruim: faltam serviços básicos, como atendimento médico, cumprimento das regras de higiene, nutrição saudável e manutenção predial. Por exemplo, ao visitar uma instituição com capacidade para 140, havia 1.400 internos, muitos dos quais deveriam ter sido meramente objeto de políticas sociais.

Na sua opinião, em tempos de pandemia, é necessário que a política determine regras ad hoc, de acordo com as atuais circunstâncias de emergência?

Para remediar essa realidade e responder a sérias questões sociais, os governos planejam resolver problemas confiando a gestão do sistema criminal à iniciativa privada. Não queremos testemunhar os massacres nas prisões, como aconteceu em Manaus em 2017 e 2019. A pastoral e outras organizações continuam denunciando a exploração e a comercialização de um sistema penitenciário cada vez mais cruel e desumano.

O Brasil é o segundo país mais afetado do mundo pela Covid-19: existe alguém que pensa em prisioneiros e famílias?

Na realidade, o sistema carcerário está constantemente experimentando várias formas de pandemia. O último exemplo é encontrado em Boa Vista, no estado de Roraima, onde existe uma epidemia de sarna na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo desde 2019. Somente uma denúncia dos familiares, apoiada pela Pastoral Carcerária, conseguiu evitar um número maior de mortes que, infelizmente também nesta ocasião não faltavam. Nos últimos meses, além da preocupação com a chegada da Covid-19 nas prisões brasileiras e do alto número de infecções e vítimas, o que preocupa a nós e às famílias dos presos é o ambiente insalubre, a alimentação e as condições de saúde. a impossibilidade de visitar detidos. Durante meses, milhares de famílias não tiveram notícias de seus entes queridos. Por esse motivo, a defensoria pública, algumas organizações da sociedade civil e a Pastoral Carcerária pediram a instalação de telefones públicos nas unidades prisionais.

O Papa Francisco, em várias ocasiões, reiterou que a superlotação é um problema que afeta várias partes do mundo. O Brasil é certamente um país em risco?

A libertação de várias centenas de encarcerados e encarceradas ocorrida recentemente foi considerada pela imprensa como um sério perigo. No entanto, a realidade é bem diferente. O vírus está causando milhares de vítimas. A violência na sociedade não é causada pela libertação de prisioneiros, mas por outros fatores. Isso nos leva a pensar que a verdadeira pandemia nada mais é do que a indiferença denunciada várias vezes pelo Papa.

Uma pesquisa on-line anônima sobre a situação das mulheres e, em particular, das mães detidas com seus filhos foi enviada recentemente a todos os trabalhadores prisionais. O que você acha disso?

Um capítulo importante da situação atual é a realidade do mundo feminino na prisão que sofre duplamente. Visito semanalmente em São Paulo a maior penitenciária de mulheres do Brasil, com mais de 2.000 detentas, e sempre nos diálogos e na escuta sinto uma grande preocupação por seus filhos. Muitas mães, trancadas na cela, são impedidas de abraçar seu bebê. No momento, as leis permitem prisão domiciliar apenas para mulheres grávidas e mães com filhos até 12 anos de idade. Acreditamos que a libertação é o caminho certo para criar uma nova sociedade porque, quem melhor que uma mãe pode educar seus filhos? Talvez, em vez de julgar e condenar, somos chamados a trabalhar para criar políticas públicas que deem às mulheres a oportunidade de reconstruir uma nova vida.

Falando em detenção, você se refere a Laudato Si '. Por que?

A questão da prisão é uma pandemia anterior à Covid-19, que a torna ainda mais atual e chama nossa atenção. São necessárias políticas públicas sérias para superar e curar a pandemia representada pela prisão. Nós devemos trabalhar por um "mundo sem cárceres". Como o Papa recorda em sua Encíclica, devemos nos comprometer com uma ecologia integral, salvaguardando a Casa Ccomum para o "bem viver" de todos.

Fonte: Osservatore Romano

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