Por Alfredo J. Gonçalves
A história humana, ao longo dos séculos, encontra-se pontilhada de epidemias e pandemias. A peste negra e a gripe espanhola figuram entre as mais conhecidas e letais. O livro A peste de Albert Camus representa um quadro aproximativo de uma cidade golpeada e isolada por esses inimigos invisíveis e, por isso mesmo, mais perigosos e difíceis de combater. Que ensinamentos espirituais podem nos trazer esses períodos dramáticos de isolamento, deserto e quarentena? O que podemos aprender de tais experiências-limite e trágicas? Como dar-se conta que, atrás das nuvens sombrias, o sol segue seu percurso? Três aspectos ganham grande relevância: a) somos todos frágeis e iguais; b) necessitamos uns dos outros e c) estamos todos nas mãos de Deus.
Somos todos frágeis e iguais. Entre os animais, o ser humano, ao nascer, é aquele que apresenta maior grau de fragilidade. De início, demora meses para caminhar com as próprias pernas, para comunicar-se com os demais e para alimentar-se por si só. Somente por ocasião da adolescência e da juventude, começará a adquirir uma certa autonomia em relação aos progenitores e à casa em que veio ao mundo. Para suprir semelhantes carências e lacunas, recebeu do Criador razão, inteligência e imaginação incomuns no conjunto do reino animal. Daí a criação de utensílios, ferramentas e instrumentos que, de certa forma, ampliam seus braços, pernas poder de visão e audição, conferindo-lhe uma superioridade inquestionável.
Paradoxalmente, a própria fragilidade humana conduziu sua trajetória a uma série de inventos, de descobertas e a um conhecimento sem igual. Nascem a ciência, a tecnologia e o progresso, juntamente com uma inédita capacidade de adaptação. Se os demais seres vivos nascem já “prontos, completos” e encontram um ambiente a eles adequado, o ser humano é chamado a superar-se a cada obstáculo, a ser sujeito de seu crescimento e construir um entorno propício ao próprio desenvolvimento. Certo, tal capacidade tem levado, não raro, e continua levando, a um poder e domínio absoluto, avassalador, sobre a natureza e a história, chegando muitas vezes à depredação, à devastação e à sujeição não apenas de outras espécies de animais, mas também de seus próprios semelhantes. É o lado negativo de um saber mal utilizado, ou utilizado para interesses escusos, desfigurado em seus fins.
De qualquer forma, fica a lição de que a fragilidade humana e as carências iniciais constituem um convite à humildade, ao aprendizado e a um desenvolvimento que só termina com a morte. A incompletude humana traz embutida sua criatividade, e esta emerge com força diante das adversidades. Estiagens, inundações, epidemias e outras catástrofes costumam ser terreno fértil para a inteligência, a imaginação e a solidariedade. As potencialidades no ato de unificar-se, superar-se e desenvolver-se permanecem latentes na condição humana. E podem decidir por alternativas inovadoras e insuspeitáveis no curso da história. Certo, novamente aqui, forças semelhantes têm desencadeado fatores perniciosos, tais como tensões e conflitos, opressão e exploração, violência e guerra – mas, como diz a canção, sempre resta a possibilidade de “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”.
Necessitamos uns dos outros. Além da humildade, da abertura ao aprendizado e da faculdade de união, a fragilidade tende a aproximar os seres humanos. Nos momentos difíceis, experiências-limite da existência – doença, separação, morte, desemprego, amor não correspondido – cada um de nós pode ajudar os demais a carregarem a sua cruz. Mas a própria cruz, ninguém a pode carregar sozinho. Até mesmo Jesus, como dizem os relatos evangélicos, teve a ajuda de Simão Cirineu para chegar com o lenho ao lugar da execução. Neste caso, cabe uma máxima: quando mais profundamente conhecermos a nós mesmos e às nossas debilidades e fraquezas, mais estaremos abertos à compreensão frente às debilidades e fraquezas dos outros.
Abertos, prontos e disponíveis à solidariedade. Surge então o outro lado das relações humanas: o conhecimento recíproco da fragilidade, na condição humana, leva por uma parte à sair de si mesmo e prontificar-se a ajudar quem tem a vida mais ameaçada; por outra parte, prepara-nos para receber com devida humildade a ajuda do próximo. Quebra-se assim a autossuficiência, a arrogância que habitam tão perto do saber, do poder e do domínio. O autoconhecimento abre o horizonte para um conhecimento mais amplo sobre o ser humano e a sociedade. De fato, quem de nós já não passou por uma experiência-limite? Momento difícil e extremo em que chegamos a dizer no íntimo de nós mesmo: “Senhor, até aqui eu vim, arrastei-me com todas as minhas forças, mas agora não posso mais, carrega-me com teus braços potentes”! Não, Deus não vai carregar ninguém! Mas sua graça é capaz de derreter os corações empedernidos, para que possam deixar de lado o orgulho e buscar ajuda. O Senhor, sem dizer uma palavra, indicará seus anjos que nos carregarão sobre suas asas. E semelhantes anjos, com muita frequência, estão do nosso lado: um familiar, um amigo, um companheiro, um conhecido ou desconhecido – como no caso do Bom Samaritano. O desafio é superar a tolerância pelo cuidado uns com os outros.
Importante nesse caso é falar, gritar, pedir socorro! Muita gente está sempre disposta a socorrer os outros, mas se isola e se cala quando a tempestade bate à própria porta. Um certo orgulho impede de abrir o coração e a alma, na tentativa de buscar socorro. Vale aqui outra máxima: quem fala, grita e pede socorro, tende a salvar-se. A psicologia ensina que o próprio ato de verbalizar o que se sente é já uma forma de afastar os fantasmas que nos perseguem e assustam. Falar sobre as nuvens sombrias que cobrem o céu individual, é uma forma de desvanecê-las e abrir espaço para um raio de sol, um raio por menor que seja. Depois, aqueles que não falam, não gritam e não pedem socorro, tendem a afogar-se no próprio veneno. A dor, seja ela qual for, quando atinge o pico do desespero, torna-se cega, não permite um raciocínio lógico. Daí a necessidade de buscar alguém como referência de compreensão e ajuda.
Estamos todos nas mãos de Deus. Iguais na carência e na fragilidade, aos poucos nos damos conta que necessitamos contar com os demais, estender as mãos e deixar que essas se estendam sobre nós mesmos. Mas tudo ganha um sentido mais profundo quando descobrimos que o Criador, origem do universo, de todos os seres vivos e de todos os seres humanos, ao tornar-se nosso Pai comum, tornou-nos igualmente irmãos e irmãs. É o que rezamos na oração do Pai-nosso, transmitida pelo próprio Jesus. Na primeira parte, o olhar vertical para Deus, seu nome, sua vontade, seu reino; na segunda parte, um olhar horizontal para o próximo, o pão de cada dia, as relações de perdão, os perigos da tentação. Conclui-se que quem reza “Pai-nosso”, não pode rezar “pão meu”. Se o Pai é nosso, o pão também deve sê-lo. E pão aqui, simbolicamente, indica tudo o que o ser humano necessita para manter-se de pé e com a devida dignidade. Ou seja, pão em sentido ampliado é sinônimo de terra, trabalho, teto, salário justo, segurança, educação, saúde direitos respeitados, relações de amizade e solidariedade.
Tudo isso ganha maior relevância quando uma catástrofe se abate sobre a pessoa, a família, um grupo, um povo, uma cidade, um país... E com maior razão quando se abate sobre o mundo inteiro, como é o caso da pandemia do Covid-19. Que significa colocar-se nas mãos de Deus? Significa muita coisa, menos transferir para Ele aquilo que devemos fazer com nossas próprias mãos, nossos meios e nossas forças. Convém deter-se numa terceira máxima: a oração não modifica nossos males e problemas, modifica nossa maneira de encará-los. Em outras palavras, Deus não vai resolver aquilo que compete às autoridades sanitárias, aos governos, às instâncias e organismos internacionais e a todos nós, cada qual na sua esfera.
No silêncio da oração, o Pai vai confortar os ouvidos cheios de vírus e ruídos com palavras silenciosas de luz e paz e serenidade; vai aquecer o coração com a chama invisível de seu amor sempre fiel e presente; vai inundar a alma ressequida com a água viva que vem da fonte de sua infinita misericórdia. Numa palavra, a oração vai fortalecer nosso íntimo com a força da fé e da esperança, armadura que nos torna capazes de seguir adiante na certeza de que o sol brilha apesar das nuvens. “Quando sou fraco é então que sou forte” diz Paulo. Noite e tempestade não duram para sempre e, o final, tornamo-nos mais próximos, fraternos e solidários.