Apocalipse do medo, não da esperança

A religião do ódio costuma criar deuses tiranos e despóticos; deuses sedentos de sacrifícios e de sangue; deuses que não admitem o pluralismo étnico-religioso ou multicultural.

Por Alfredo J. Gonçalves*

Sintomático o cenário montado por Roberto Alvim, então titular da Secretaria Especial da Cultura, para o anúncio do Prêmio Nacional das Artes. Como já foi amplamente comentado, a simbologia, a postura rígida e austera do protagonista e a mensagem parafraseada de Joseph Goebbels remetem estridentemente a uma “oficina” da gigantesca máquina de matar, elaborada pelo regime totalitário nazista na Alemanha dos anos 1930. Sórdida indústria de morte, com a finalidade de eliminar pessoas e grupos “indesejados”.

Roberto Alvim foi demitido, mas nada de ilusão. Exonerar o secretário não é extirpar pela raiz o problema. Toda aquela encenação não passa de fumaça que, ao mesmo tempo, revela e esconde o fogo. O fogo, neste caso, é a religião do ódio: latente ou explicita, por cima ou por baixo das cinzas – a brasa viva parece mover boa parte das peças que atuam no tabuleiro do atual governo. Ódio que destila veneno, revestindo-se de intolerância, moralismo barato, ofensas e ataques sistemáticos a todo tipo de oposição.

Deflagra uma guerra sem trégua à arte e aos artistas, à política democrática e suas instâncias constituídas, à imprensa e aos jornalistas, às entidades e organizações não governamentais (ONGs) e respectivos ativistas sociopolíticos, ao meio ambiente e aos ambientalistas, aos professores e aos alunos especialmente do ensino superior, enfim, à ciência e aos cientistas!... A intimidação é a arma dos que não dispõem da razão!

bolsonaro24Guerra a toda crítica, venha ela de onde vier, pouco importando se a fonte é fidedigna e a notícia fundamentada, ou justamente por sê-lo. Afinal, quem tem algo a ocultar, prefere as trevas à luz. Guerra não tanto aos boatos, e sim aos dados e fatos, análises e estatísticas cientificamente comprovados e historicamente consolidados. Um vil combate à realidade nua e crua, com a vã tentativa de envernizá-la através de meias verdades ou propaganda falsa, difundidas ambas sem escrúpulo pelas redes sociais. Apocalipse do medo, não da esperança!

A religião do ódio costuma criar deuses tiranos e despóticos; deuses sedentos de sacrifícios e de sangue; deuses que não admitem o pluralismo étnico-religioso ou multicultural; deuses que não hesitam em perseguir, prender e eliminar quem pensa de modo diferente. Tais divindades falsas temem mudanças, fecham as alternativas da história. A religião do ódio cria também líderes, agentes e multidões enfurecidas. São os “fanáticos do bem”, dispostos a semear por toda parte exatamente o contrário do que pregam – o mal. O que explica os “bodes expiatórios”, sobre os quais recai a fúria de uma moral hipócrita e esquizofrênica, quando se mistura de forma mágica e promíscua o campo da política e o campo da religião.

Certo, ambos os campos se entrelaçam naturalmente nos embates do cotidiano. Mas não para abençoar e legalizar, um ao outro, um pensamento único e fossilizado. Ambos se juntam, antes, para identificar as transformações urgentes e necessárias, conduzindo-as à abertura de novos horizontes na trajetória humana. Em lugar disso, quando o casamento entre poder temporal e poder espiritual se converte em promiscuidade, instala-se o ódio fundamentalista. Ao longo da história vimos proliferar não poucas perseguições movidas por essa força obscura e obtusa. Nelas, o fogo, a tortura e a morte fazem seu desfile macabro nos palcos iluminados de luzes e preces frenéticas, fanáticas, endiabradas. Na religião, anjos e demônios andam juntos: enquanto os últimos se curvam aos deuses do mal, os primeiros procuram servir ao Deus do bem.

Voltando à Secretaria Especial da Cultura, eis o grande paradoxo: apesar do nome, ela acabou por converter-se em quartel general da guerra à diversidade étnica e cultural. Diversidade que, no decorrer dos séculos, tem sido a maior riqueza das nações e das civilizações. Com efeito, como lembra a Doutrina Social da Igreja, no coração de cada pessoa e de cada cultura habitam as sementes do Verbo e da criação. Na medida em que os povos se encontram e se cruzam, na medida em que realizam o intercâmbio recíproco de seus valores, tais sementes fecundam e germinam, dando origem ao grande tesouro que é o patrimônio cultural da humanidade.

Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2020

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