Esta é a questão, ou seja, democracia de verdade é muito diferente de “democracia de fachada”, só para inglês ver, como se diz.
Por Juacy da Silva
Um dos temas mais recorrentes no debate político, econômico, social e ideológico há séculos e que com frequência volta à baila é a questão da desigualdade, em sua diversas formas e manifestações. Existe até uma frase já “famosa” e por todos/todas muito conhecida que diz que “os ricos estão ficando mais ricos e os pobres mais pobres”.
Esta frase é comprovada por sucessivos estudos, pesquisas e dados estatísticos em todos os países, inclusive sobre o Brasil e o debate sobre as origens e as consequências das desigualdades nas diferentes sociedades em alguns momentos “pega fogo” e em outros momentos é quase esquecido, até que alguns dados estatísticos surgem para acender novamente a chama das discussões e debates como está novamente acontecendo no Brasil nas últimas semanas, com a divulgação das informações da PNAD Continua pelo IBGE, em meio à tramitação e discussões sobre as reformas da Previdência, tributária e trabalhista, entre outras.
Muita gente, um tanto quanto de forma alienada, não se cansa de tecer loas ao regime democrático, ao estado democrático de direito, às excelências da democracia, como se tal Sistema funcionasse com perfeição cumprindo sua doutrina e princípios. Uma coisa são os princípios democráticos, outra coisa é se os mesmos estão sendo cumpridos fielmente. Esta é a questão, ou seja, democracia de verdade é muito diferente de “democracia de fachada”, só para inglês ver, como se diz.
Quem lê a Constituição Federal do Brasil, a chamada Constituição cidadã, tão aclamada pelos constituintes, pelo então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães e não focar na realidade do Brasil nesses pouco mais de 30 anos desta Carta Magna, a qual todos os governantes ao tomarem posse em suas funções, juram cumpri-la e a fazer cumprir, pode chegar a conclusões diferentes.
Com certeza, nesta leitura e reflexão, podemos perceber que existe um grande fosso, uma distância enorme entre o que consta dos diversos artigos da Constituição cidadã e a realidade brasileira. Primeiro, precisamos ter em mente que ao longo desses 30 anos de vigência de nossa Carta Magna, inúmeras conquistas inseridas na mesma já foram abandonadas e “derrogadas”, através de mais de uma centena de Emendas Constitucionais, estimuladas e apoiadas pelas forças conservadoras e retrógradas que tem assento no Congresso Nacional e teimam em legislar contra os interesses das camadas mais pobres e excluídas da sociedade, apesar de que esses parlamentares (Deputados Federais e Senadores) sejam sempre eleitos com o voto dessas camadas excluídas e no Congresso usam seus mandatos para defenderem seus próprios interesses ou os interesses de grupos econômicos, dos quais participam como empresários, latifundiários, usineiros, exportadores, corporativos ou patrocinam interesses dos mesmos.
As desigualdades não são fruto do destino, da vontade de forças divinas ou demoníacas, da preguiça, da falta de vontade dos pobres e excluídos ou de alguma deficiência mental ou física, mas sim, fruto da dinâmica das forças produtivas, das relações de trabalho, sociais, econômicas, culturais ou ideológicas e estão umbilicalmente relacionadas com a tomada do poder, vale dizer, da conquista e manutenção do poder (nacional, em suas diversas expressões) pelas camadas/classes dominantes e seus aliados.
Ao conquistarem e manterem o poder, vale dizer o Estado e as instituições públicas, os partidos políticos, podem e assim é que acontece, definir e implementar políticas públicas, suas estratégias e ações de governo, em todos os âmbitos (nacional, estadual e municipal) e em todas as dimensões: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Quem define, por exemplo, o valor do salário mínimo de fome que existe no Brasil é o poder executivo federal (Presidente da República), ora, quando a atualização do salário mínimo é abaixo dos índices de inflação, com certeza milhões de pobres ficarão mais pobres, irão perder anualmente parte do poder aquisitivo do salário, tanto os que recebem salário mínimo quanto os que recebem aposentadorias e pensões, atreladas ao salário mínimo. Mais de 70% da população brasileira vive ou sobrevive, só Deus sabe como, com apenas um salário mínimo ou até mesmo com metade ou um terço do salário mínimo. Afora mais de 12 milhões de desempregados que formalmente não tem remuneração ou dos 25 milhões de trabalhadores informais que não sabem quanto irão ganhar a cada dia ou se no dia seguinte terão dinheiro para comer e alimentar seus filhos/filhas.
Quando o Governo Federal, e isto tem acontecido por mais de duas ou quase três décadas, congela a tabela do Imposto de Renda, com certeza estará reduzindo o poder aquisitivo da classe média, que também tem encolhido e perdido renda nos últimos anos ou dos trabalhadores que ganham pouco mais do que o salário mínimo. Quando o governo estabelece as alíquotas do Imposto de Renda e coloca um trabalhador que ganha entre cinco e seis mil reais por mês, na mesma faixa de 27% ao lado de milionários e bilionários, não precisa ser economista e nem contador para entender quem está sendo prejudicado e quem esta sendo beneficiado social e economicamente.
Quando o Governo Federal insere no Orçamento Geral da União renúncia fiscal no valor anual de R$ 350 bilhões de reais e o mesmo acontecendo com Estados e municípios que praticam renúncia fiscal e praticamente nada para esgotamento sanitário, para habitação popular, proteção do meio ambiente ou migalhas para a educação e saúde (SUS) e ainda congela esses e outros gastos que iriam favorecer os pobres, percebe-se como as ações de governo ajudam grandes grupos econômicos a acumularem mais capital.
Quando o governo decide subsidiar latifundiários e empresários do agronegócio, usineiros, grandes corporações econômicas e financeiras, exportadores, grandes grupos de seguro privado, não taxar lucros financeiros, grandes fortunas e fechar os olhos para os grandes sonegadores, que devem trilhões de reais aos tesouros nacional, estaduais e municipais ou quando concede anistias fiscais para grandes e médios devedores e persegue implacavelmente pequenos sonegadores, percebe-se como as desigualdades surgem e se acentuam.
Enfim, as desigualdades são geradas estruturalmente e não serão corrigidas, sejam as desigualdades sociais, econômicas, setoriais ou regionais, com ações paternalistas ou com assistencialismo, distribuindo migalhas para enganar milhões de pobres e miseráveis que perambulam por este imenso Brasil, em busca de uma oportunidade de emprego, de subemprego, mesmo que continuem desprotegidos socialmente.
As desigualdades só serão combatidas e corrigidas através de medidas e ações públicas que estejam inseridas em um novo projeto nacional de desenvolvimento com equidade, justiça social, sustentabilidade e maior representatividade das camadas que atualmente estão excluídas da dinâmica política, social e econômica do Brasil.
Há pouco tempo tanto o Banco Mundial, quanto o FMI e também alguns organismos da ONU demonstraram que as desigualdades impactam negativamente o processo de crescimento econômico (PIB) e que o combate efetivo às desigualdades, com medidas concretas, tem um impacto muito mais profundo e de longo prazo do que reformas que visem apenas o equilíbrio das contas públicas.
A desigualdade afeta o mercado interno e internacional. Por exemplo, fala-se tanto em capacidade de poupança, investimento e consumo para fortalecer o mercado interno ou internacional. Pergunta-se qual a capacidade de poupança e consumo de 13,9 milhões de famílias que recebem bolsa família, uma migalha, cuja média mensal é de pouco mais de duzentos ou trezentos reais, quanto esta família vai poupar ou consumir?
Outro exemplo como o Governo, as instituições públicas, enfim, o Estado gera desigualdade. O Sistema tributário brasileiro é regressivo, como tantos estudos tem demonstrando, ou seja, tributa desigualmente, tributa mais os pobres do que os ricos. O Sistema tributário é mais pesado sobre o consumo e a baixa e média renda do que sobre a propriedades, as heranças, as grandes fortunas e os rendimentos financeiros e ganhos de capital. Isto também contribui para que os ricos fiquem mais ricos e os pobres e a classe média baixa se tornem mais pobres. Basta vermos a evolução do índice de Gini, que mede a desigualdade, onde o Brasil é o mais com maior desigualdade entre as 50 maiores economias do mundo.
Em recente matéria do Jornal Folha de São Paulo, a questão da desigualdade assim foi destacada: “Dados do FGV Social dão a dimensão da piora na concentração: do fim de 2014 a junho deste ano (2019), a renda per capita do trabalho dos 10% mais ricos subiu 2,5% acima da inflação; e a do 1% mais rico, 10,1%. Já o rendimento dos 50% mais pobres despencou 17,1%; e dos 40% "do meio" (a classe média entre os mais ricos e os mais pobres), caiu 4,2%. Isso levou o índice de Gini a 0,629, muito próximo ao recorde da série desde 2012”.
Sobre esta mesma disparidade de renda, riqueza e patrimônio em nosso país, o Jornal O Globo, no início de janeiro de 2018, referido-se a dados relativos a 2017, em estudo da Oxfam, a seguir transcrito: “Cinco bilionários brasileiros concentram patrimônio equivalente à renda da metade mais pobre da população do Brasil, mostra um estudo divulgado nesta segunda-feira (22) pela organização não-governamental britânica Oxfam”. Ou seja, cinco pessoas tem mais renda e patrimônio no Brasil do que mais de 100 milhões de pessoas, os 50% que integram a parte de baixo da pirâmide social, econômica e política em nosso pais.
Enquanto isto vemos diariamente os marajás da República viajando pelo Brasil afora com passagens e diárias, almoços, jantares, recepções de luxo regadas a bebidas caríssimas, lagostas, caviar e outras iguarias que jamais tocaram o paladar dessa massa de excluídos, tudo isso custeado pelos cofres públicos.
Uma pessoa que faça parte do grupo dos 1% dos mais pobres no Brasil (2,1 milhões de brasileiros/brasileiras), terão que trabalhar mais de 30 anos, 360 meses, para ganhar o equivalente ao que ganham os integrantes da camada dos 1% mais ricos do país. Será que isto tem algo a ver com justiça social? Com democracia? Com desenvolvimento nacional? Desenvolvimento para quem? A que custo social e humano?
Quando a gente ouve discursos de nossas autoridades e grandes empresários mencionando solidariedade aos mais de 50 milhões de brasileiros que vivem na pobreza ou outros milhões que vivem na extrema pobreza e miséria, podemos notar quantas lágrimas (de crocodilo) escorrem pelas suas faces. Com certeza nem mais se lembrarão desses miseráveis quanto estiveram festejando suas conquistas, muitas das quais quais jorram das tetas dos tesouros nacional, estaduais e municipais, da corrupção e favores oficiais.
Desigualdade não é apenas um conceito político, social, econômico ou sociológico, mas sim, uma realidade cruel que impõe um grande sofrimento a milhões de pessoas e rouba o futuro de milhões de crianças e jovens que vivem nas periferias urbana ou no isolamento rural, no abandono e que irão alimentar a violência, amontoar os corredores das unidades de saúde, superlotar as prisões, principalmente se forem afrodescendentes, com pouco ou quase nenhuma escolaridade!
Antes de finalizar este artigo/reflexão, gostaria de transcrever um artigo de nossa Constituição Cidadã, nossa Carta Magna e perguntar a você, caro leitor, eleitor e contribuinte, se este artigo esta sendo cumprido realmente? Se nossos governantes tem se empenhado de verdade, nos três poderes da República, em todos os Estados e Municípios para que este mandamento constitucional seja algo real e não mera ficção, ou ideal jamais alcançado?
“Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
E pensar que mais de três décadas já se passaram desde que, em meio a tanta euforia, a Constituição de 1988 foi promulgada. Leia, reflita, pense com calma sobre o que significa desigualdade e o que ela tem a ver com a dinâmica política, social e econômica nacional. Converse com seus amigos, suas amigas e, depois tire suas conclusões sobre tudo isso.