A tragédia de Canudos, porém, alerta para o risco de transformar a tarefa da administração pública em um messianismo contra os mais pobres e de baixa renda, ideologicamente guiados por supostos comunistas/marxistas infiltrados.
de Alfredo J. Gonçalves
No nome e no modo de se comportar, um novo Messias vem ocupando o posto mais elevado da Presidência da República desde janeiro de 2019. O caráter messiânico da política brasileira não é novo. Que o digam, por exemplo, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello, Luiz Inácio Lula da Silva, em parte, e... Jair Bolsonaro. Tidos e aclamados como salvadores da pátria, não raro erguem a voz e o tom como enviados de Deus, falando em nome do povo. Quando os ânimos se exacerbam, Messias e seguidores podem facilmente chegar ao fanatismo. Então, os representantes de qualquer forma de oposição são vistos como inimigos a serem combatidos. O confronto substitui o diálogo, o argumento racional cede lugar à agressão gratuita, a arrogância se impõe sobre o jogo de alianças.
O messianismo tem longas e profundas raízes no Brasil. Quase tanto quanto sua história desde os tempos coloniais. Entre outras fontes, herdou traços do “sebastianismo”. Este, por sua vez, nasce e ganha popularidade a partir da batalha de Alcácer-Quibir, na metade do século XVI. Nessa batalha, Portugal foi derrotado e o jovem rei D. Sebastião desaparece como que por encanto. Seu corpo jamais teria sido encontrado. O aparente mistério desse desaparecimento originou uma crença segundo a qual o rei estaria encantado. O monarca – sempre de acordo com a crença – deveria voltar, através de uma espécie de desencantamento, para restaurar o reino de Portugal e livrar o país de todos seus males.
De Portugal, a ideia do desencantamento de D. Sebastião se expandiu para o Brasil. A socióloga brasileira Maria Isaura Pereira de Queiroz estudou essa e outras manifestações religiosas em sua obra Messianismo no Brasil e no mundo, Editora USP, São Paulo, 1965. Determinada revoltas camponesas no território nacional, embora de fundo socioeconômico e político-cultural, ganham as roupagens religiosas do sebastianismo. A mais célebre foi a pregação de Antônio Conselheiro no interior do estado da Bahia. Milhares de pessoas e/ou famílias pobres do Nordeste juntaram-se ao Conselheiro, em Canudos, formando um povoado que mais parecia uma improvisada cidade. Várias expedições do exército brasileiro foram enviadas para combater e acabar com os revoltosos. Até que a chamada Guerra de Canudos, entre 1896 e 1897, destruiu completamente a comunidade, massacrando seus mais de 25 mil habitantes. Os eventos foram imortalizados pelo escritor e jornalista brasileiro Euclides da Cunha, em Os Sertões, e pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, em Guerra do fim do mundo.
Toda espécie de totalitarismo é perniciosa, seja elas de natureza política, étnica ou ideológica. Mas sê-lo-á muito mais quando se trata de fanatismo religioso fundamentalista e autoritário. Sendo praticado em nome de Deus e em prol do povo, o será de igual modo em nome da verdade absoluta. Não admite debate, rejeitando toda opinião divergente. Os seguidores do Conselheiro formavam uma multidão de gente sem terra, sem raiz, sem trabalho e sem pão. Quando, à sua condição social juntaram a crença mágica na restauração do Império contra a República, e acrescentaram a defesa armada, selaram o próprio destino. O exército brasileiro, míope ao caráter social da sublevação, entendeu que devia exterminar todos os sertanejos envolvidos. Dessa cegueira resultou o massacre de Canudos, perpetrado pelo Coronel Antônio Moreira César, o corta-cabeças de fama macabra. Não se tratava, com efeito, de inimigos da nação, e sim de retirantes famintos, atraídos por uma utopia cheia de ambiguidades.
A tragédia de Canudos, porém, alerta para o risco, consciente ou inconsciente, de transformar a tarefa da administração pública em um messianismo contra os mais pobres e de baixa renda, ideologicamente guiados por supostos comunistas/marxistas infiltrados. Pior ainda se essa “missão divina” for anunciada com uma arma apontada para tudo e todos, gesto infeliz e insensato, usado tanto pelo candidato Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral, quanto pelo novo presidente da República já com seis meses de mandato sobre a sua responsabilidade.