Por que decisão de estabelecer 'monitoramento' de ONGs pode parar no STF

Artigo de MP prevê como atribuição da Secretaria de Governo 'supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional'.

Por Mariana Schreiber

A reestruturação do governo federal adotada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de mandato criou uma nova atribuição para a Secretaria de Governo - o órgão passará a "supervisionar" e "monitorar" a atuação de organismos internacionais e organizações não governamentais (ONGs) no país.

A novidade foi recebida com preocupação por organizações do terceiro setor e juristas ouvidos pela BBC News Brasil, que destacaram a autonomia de atuação garantida pela Constituição Federal a essas entidades.

Como-Montar-Uma-ONGO general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz foi nomeado por Bolsonaro como ministro da Secretaria de Governo. O artigo quinto da Medida Provisória (MP) 870 estabelece como uma das atribuições do órgão "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".

Segundo o diretor da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) Mauri Cruz, a entidade deve interpelar o governo administrativamente para que edite nova MP alterando esse trecho.

Ele pondera que pode ter havido um erro na redação e que a intenção original seria estabelecer a função de monitorar as ações do governo junto aos organismos internacionais e ONGs, e não a atividade dessas entidades propriamente ditas.

A BBC News Brasil questionou as assessorias da Presidência da República e da Casa Civil sobre o que significaria esse monitoramento previsto e se haveria alguma mudança, mas não recebeu retorno ainda.

"Se não tivermos sucesso, vamos analisar uma ação de declaração de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para retirar a eficácia desse artigo. Para nós é um risco muito grande a hipótese de que o governo possa intervir (nas organizações). Nos causa profunda preocupação", afirmou Mauri Cruz.

O diretor da Abong ressalta ainda o fato de a medida provisória não fazer distinção entre organizações que recebem dinheiro público e as que não têm qualquer aporte de governos. Segundo ele, pesquisa realizada em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou que há cerca de 400 mil ONGs no Brasil, sendo que 70% operam sem qualquer verba pública.

"As que recebem já são obrigadas a prestar contas e estão submetidas a órgãos de controle, como tribunais de contas. E, mesmo nesses casos, não podem ter atividades financiadas com outros recursos controladas pelo governo", argumenta.

Em discurso em cerimônia de transmissão de posse nesta quarta, o ministro Santos Cruz afirmou que "a secretaria sempre (estará) de portas abertas a todos os prefeitos, governadores, a todas as instituições, a todos os movimentos sociais, a todos os organismos". Em sua fala, não fez comentários sobre a nova atribuição.

'Nosso escudo é a Constituição'

O artigo quinto da Constituição Federal estabelece que "é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar". Além disso, garante que a "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento".

"Numa democracia, é fundamental a liberdade de expressão e de manifestação. Me causa um certo grau de estranheza (a possibilidade de monitoramento de ONGs e organismos internacionais). Nesse caso, nosso escudo é a Constituição", disse à BBC News Brasil Flávia Piovesan, ex-secretária de direitos humanos do governo Michel Temer.

Na sua avaliação, o papel do Estado é realizar ações de articulação e cooperação com o terceiro setor, não interferir na sua atuação. Ela ressalta ainda que o marco jurídico internacional também garante independência e autonomia para atuação dos organismos internacionais no país, como ONU (Organização das Nações Unidas) e OEA (Organização dos Estados Americanos).

"O Brasil, no livre e pleno exercício da sua soberania, ratificou instrumentos internacionais, e portanto há de cumprir de boa fé. Tem que respeitar a legalidade dentro e fora (do país)", afirma Piovesan, que é também professora de direito da PUC-SP e representante do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Para Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional na UERJ, a pretensão de monitorar ONGs é "claramente incompatível com a liberdade de associação garantida na Constituição". Ele diz que a novidade causa preocupação por causa de declarações de Bolsonaro e integrantes do novo governo com ataques ao terceiro setor, principalmente na área ambiental e de direitos humanos.

Por meio do Twitter, o presidente acusou nesta quarta ONGs de explorar indígenas e quilombolas. A mesma MP transferiu a demarcação de terras desses grupos, previstas na Constituição, da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ) para o Ministério da Agricultura.

"Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros", postou Bolsonaro.

Sarmento ressalta que, legalmente, não é incumbência do Estado fiscalizar e monitorar ONGs. "O Bolsonaro criticou na campanha o ativismo. O que é o ativismo? É atuação de ONG? A gente precisa de sociedade civil e, em muitas áreas, a sociedade civil atual em bases globais", destacou.

"Há uma frase do Martin Luther King (líder civil negro americano) que diz 'a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar'. É importante que organizações de outros países possam criticar excessos que o governo da Síria cometa, que o governo de Cuba cometa, e que o governo brasileiro cometa", defendeu também o professor.

Representantes de ONGs planejam interpelar o governo administrativamente sobre MP que prevê monitoramento.

Ineditismo

A Secretaria de Governo foi criada em 2015, no governo de Dilma Rousseff, aglutinando outros órgãos. Sua estrutura passou por mudanças depois no governo Temer.

A BBC News Brasil comparou o texto da MP 870 com os marcos legais anteriores e não localizou a atribuição de fiscalizar e monitorar organizações internacionais e ONGs. Lei 10.683 de 2003 (início do governo Lula), que é citada no site da Secretaria de Governo como base jurídica para atuação do órgão, também não traz essa previsão.

Segundo a ONG Conectas Direitos Humanos, a atribuição criada na nova MP é inédita.

"A Secretaria de Governo da Presidência da República sempre teve papel de interlocução com a sociedade civil e de articulação da participação social, nunca de controle. Esta medida é abertamente ilegal, precisará ser revertida seja por meio de uma nova MP ou do Judiciário", afirmou Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas.

Já o diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão, destacou que "a Constituição Federal é cristalina na garantia da livre associação".

"A sociedade tem que estar sempre muito vigilante da preservação das garantias constitucionais. A livre associação, a imprensa livre e a cidadania ativa são fundamentais em qualquer país que queira enfrentar de maneira sustentável a corrupção (foco da Transparência Internacional)", afirmou.

O diretor de Campanhas do Greenpeace Brasil, Nilo D'Ávila, ironizou a mudança: "Acho ótimo, tem que monitorar e tomar providências para as inúmeras denúncias que as ONGs fazem. Vai mudar tudo que está aí destruindo o meio ambiente: exploração ilegal de madeira, falta de licenciamento".

Fonte: BBC News Brasil em Brasília

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