O legado de Lula: terra arrasada e uma esquerda mais arrasada ainda

Aos olhos dos ci­da­dãos com um mí­nimo de es­pí­rito crí­tico, o PT, ao evitar re­co­nhecer seus erros, igualou-se às agre­mi­a­ções con­ven­ci­o­nais, per­dendo o status de par­tido di­fe­ren­ciado e con­fiável.

Por Celso Lungaretti

A co­média dos erros ter­minou me­lan­co­li­ca­mente. O que todos es­tá­vamos ca­recas de saber acon­teceu: o ex-pre­si­dente Luiz Inácio Lula da Silva foi de­cla­rado ine­le­gível pela Jus­tiça Elei­toral, pois é isto que de­ter­mina a Lei da Ficha Limpa.

Se sua con­de­nação por cor­rupção e la­vagem de di­nheiro foi justa ou in­justa, é algo a ser re­sol­vido na es­fera da Jus­tiça Cri­minal, cujas de­ci­sões o Tri­bunal Su­pe­rior Elei­toral não tem poder para ques­ti­onar.

Se sua ex­clusão do pleito de­veria se dar após uma sen­tença de 2ª ou 3ª ins­tância, é algo a ser re­sol­vido pelo Su­premo Tri­bunal Fe­deral, cujas de­ci­sões o TSE não tem poder para ques­ti­onar. O certo é que, desde 2010, a con­de­nação em 2ª ins­tância vem sendo con­si­de­rada su­fi­ci­ente.

E todas as de­ci­sões do TRF-4, do STJ e do STF foram no sen­tido de que nem a sen­tença do Lula seria can­ce­lada, nem a ine­le­gi­bi­li­dade após a 2ª ins­tância re­vista neste mo­mento. O que vimos no úl­timo dia 31 foi apenas a con­fir­mação da der­rota anun­ciada – e pelo aca­cha­pante placar de 6x1!

lulajulgamento1Assim, por que o PT in­sistiu tanto em manter um can­di­dato a pre­si­dente fan­tasma até cinco se­manas antes do 1º turno? Cabe aqui uma re­ca­pi­tu­lação.

O par­tido foi ge­rado em plena di­ta­dura mi­litar, daí seu ma­ni­festo de fun­dação, apro­vado em fe­ve­reiro de 1980, ter ado­tado uma lin­guagem um tanto cau­te­losa (mas, ainda assim, per­fei­ta­mente com­pre­en­sível) para co­mu­nicar que o fim do ca­pi­ta­lismo e a cons­trução de uma so­ci­e­dade igua­li­tária e livre se­riam os ob­je­tivos úl­timos de sua atu­ação:

"...​As ri­quezas na­tu­rais, que até hoje só têm ser­vido aos in­te­resses do grande ca­pital na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal, de­verão ser postas a ser­viço do bem-estar da co­le­ti­vi­dade.

Para isso é pre­ciso que as de­ci­sões sobre a eco­nomia se sub­metam aos in­te­resses po­pu­lares. Mas esses in­te­resses não pre­va­le­cerão en­quanto o poder po­lí­tico não ex­pressar uma real re­pre­sen­tação po­pular, fun­dada nas or­ga­ni­za­ções de base, para que se efe­tive o poder de de­cisão dos tra­ba­lha­dores sobre a eco­nomia e os de­mais ní­veis da so­ci­e­dade...

...É pre­ciso que o Es­tado se torne a ex­pressão da so­ci­e­dade, o que só será pos­sível quando se cri­arem con­di­ções de livre in­ter­venção dos tra­ba­lha­dores nas de­ci­sões dos seus rumos...

...O PT bus­cará con­quistar a li­ber­dade para que o povo possa cons­truir uma so­ci­e­dade igua­li­tária, onde não haja ex­plo­rados nem ex­plo­ra­dores..."

Mas, logo na sua pri­meira dé­cada de exis­tência o par­tido já de­sistiu in­for­mal­mente da meta re­vo­lu­ci­o­nária, ex­purgou as ten­dên­cias in­ternas que a pri­o­ri­zavam e passou a ob­je­tivar apenas a con­quista de po­si­ções de poder dentro do ca­pi­ta­lismo, não mais para cons­truir uma so­ci­e­dade igua­li­tária, mas sim para pro­por­ci­onar pe­quenas me­lhoras aos tra­ba­lha­dores.

As elei­ções foram sig­ni­fi­cando cada vez mais para o PT, en­quanto a par­ti­ci­pação nas lutas so­ciais ia pas­sando para se­gundo e até ter­ceiro plano.

As con­sequên­cias de sua fur­tiva gui­nada ide­o­ló­gica não se evi­den­ci­aram no sé­culo pas­sado (porque es­tava na opo­sição), nem du­rante os dois man­datos pre­si­den­ciais de Lula (porque o bom de­sem­penho das com­mo­di­ties bra­si­leiras lhe per­mitia cum­prir a pro­messa de botar um pouco mais de pão na mesa dos tra­ba­lha­dores, em­bora sem re­tirá-lo da es­bórnia dos pri­vi­le­gi­ados, tanto que nossa es­can­da­losa de­si­gual­dade econô­mica em ne­nhum mo­mento di­mi­nuiu).

Quando a crise ca­pi­ta­lista se aguçou so­bre­ma­neira na pre­sente dé­cada, o co­bertor foi fi­cando cada vez mais curto para co­brir tanto a ca­beça de uns quanto os pés dos ou­tros. A pre­si­dente Dilma Rous­seff, con­tudo, apostou em que con­se­guiria manter a po­lí­tica de con­ci­li­ação de classe, desde que fi­zesse o Brasil crescer o su­fi­ci­ente para os bancos con­ti­nu­arem co­me­mo­rando re­cordes de fa­tu­ra­mento a cada mês e para os po­bres se­guirem des­lum­brados com o ma­ra­vi­lhoso mundo do con­sumo, ao qual ha­viam ob­tido li­mi­tado e en­di­vi­dado acesso.

Re­correu às fór­mulas de­sen­vol­vi­men­tistas de seis dé­cadas antes, ten­tando fazer o carro da eco­nomia pegar no tranco graças aos in­ves­ti­mentos es­ta­tais. Mas, como o re­lógio da His­tória não anda para trás, co­locou a eco­nomia bra­si­leira no rumo de uma for­mi­dável re­cessão.

A hora da ver­dade chegou em 2014, quando fa­tal­mente não con­se­guiria re­e­leger-se a partir dos mé­ritos de seu go­verno e de es­pe­ranças que ainda fosse capaz de des­pertar.

Como tábua de sal­vação, ocultou dos elei­tores (por meio das fa­mosas pe­da­ladas fis­cais) o es­tado ca­la­mi­toso das fi­nanças pú­blicas; sa­ta­nizou ad­ver­sá­rios exa­ge­rando ver­dades e es­pa­lhando as mais ca­be­ludas men­tiras; e pra­ticou um imoral es­te­li­o­nato elei­toral ao pro­meter salvar os bra­si­leiros das re­formas ne­o­li­be­rais que seus mal­vados ri­vais im­po­riam, ao passo que ela, a an­ge­lical, ja­mais o faria...

Desde então, o PT passou cada vez mais a so­bre­viver po­li­ti­ca­mente à custa de fan­ta­sias e em­bro­ma­ções.
De­pois de cum­prir uma por uma todas as etapas do ri­tual do im­pe­a­ch­ment e ser der­ro­tado em todas, passou a atri­buir sua perda de poder a um mo­nu­mental golpe... que nada mais foi do que a se­cular pre­va­lência dos in­te­resses e de­sejos da classe do­mi­nante na so­ci­e­dade bra­si­leira. Só in­gê­nuos es­pe­ravam que su­ce­desse o con­trário.

Com isto e mais o Fora Temer, o PT con­se­guiu tirar de foco os ter­rí­veis erros por ele co­me­tidos, que pos­si­bi­li­taram a der­ru­bada de Dilma me­di­ante um mero pi­pa­rote par­la­mentar; e a cons­ta­tação de que não adi­an­tava mais eleger pre­si­dentes se eles po­diam ser de­se­leitos pelo poder econô­mico quando este bem en­ten­desse.

Todas as pri­o­ri­dades do par­tido foram co­lo­cadas em xeque pela dura re­a­li­dade, mas os di­ri­gentes do PT con­se­guiram es­per­ta­mente dri­blar o pro­cesso de crí­tica e au­to­crí­tica no qual suas culpas se evi­den­ci­a­riam, ao mesmo tempo em que se­riam lan­çadas as bases para uma atu­ação po­lí­tica atu­a­li­zada. Sal­varam-se os ineptos à custa de sa­cri­ficar o fu­turo: que má­gica besta!

Que foram ado­tados dois pesos e duas me­didas é o óbvio ulu­lante, mas as ale­ga­ções de ino­cência, tanto no im­pe­a­ch­ment quanto nos pro­cessos por cor­rupção, nunca pas­saram de lo­rotas in­ve­ros­sí­meis; o mar de lama existiu mesmo e as prá­ticas que te­o­ri­ca­mente en­se­ja­riam cas­sação de man­datos, idem.

Aos olhos dos ci­da­dãos com um mí­nimo de es­pí­rito crí­tico, o PT, ao evitar re­co­nhecer seus erros, igualou-se às agre­mi­a­ções con­ven­ci­o­nais, per­dendo o status de par­tido di­fe­ren­ciado e con­fiável. Acre­ditar nele passou a ser um ato de fé; e não é com fa­ná­ticos que se cons­trói uma so­ci­e­dade eman­ci­pada.

Para manter a nar­ra­tiva do golpe e a nar­ra­tiva do preso po­lí­tico, criou-se o ro­teiro de um es­pe­tá­culo de mafuá: a farsa do can­di­dato fan­tasma, que só serviu para travar a cam­panha elei­toral e oxi­genar o can­di­dato do DOI-Codi, que ex­plora, da forma mais gro­tesca e ob­tusa, os fi­lões do an­ti­co­mu­nismo e do an­ti­pe­tismo .

Quem disse "de­pois de mim, o di­lúvio" foi o rei francês Luís XV, e a pro­fecia se cum­priria com seu neto Luís XVI sendo gui­lho­ti­nado na Grande Re­vo­lução Fran­cesa.

Que di­lúvio nos le­gará esse outro Luís? Uma coisa é certa: ele sai de cena dei­xando atrás de si uma terra ar­ra­sada e uma es­querda mais ar­ra­sada ainda.

Celso Lun­ga­retti é jor­na­lista e ex-preso po­lí­tico. Blog: Náu­frago da Utopia. Fonte: Correio da Cidadania

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