Uma prisão e uma inelegibilidade intoleráveis

É claro, para os setores de uma elite preconceituosa, um operário só poderia ter crimes à altura de sua insignificância.

Por Luiz Alberto Gomez de Souza*

Acabou, nas últimas horas do dia 31 de agosto, pouco antes de começar o horário gratuito obrigatório às 7 da manhã do dia 1º de setembro, a sessão do Superior Tribunal Eleitoral, com um desfecho previsto, que negou o registro da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil, por estar condenado em segunda instância, caindo assim na rede da Lei da Ficha Limpa. A novidade foi que o ministro Edson Fachin saiu da legalidade intranacional em circuito fechado e abriu uma janela global, sinalizando que havia que levar em conta a recomendação de uma Comissão de Direitos Humanos da ONU, que indicava o direito do ex-presidente de ser candidato. Assim este, apesar de inelegível, paralisaria a decisão que negava o registro de sua candidatura até o julgamento do último recurso da condenação ser examinada pelo Supremo Tribunal Federal. Indicou Fachin: “Em face da medida provisória obtida no Comitê dos Direitos Humanos da ONU, se impõe, em caráter provisório, reconhecer o direito [ de Lula] mesmo estando preso ser candidato”.

Meu mestre G. K. Chesterton disse que uma lógica afogada nela mesma, numa esfera circular fechada e irretorquível é sinal de insanidade. Neste nosso caso, o processo reiterativo e determinista foi rompido, com a introdução de uma variável externa. Isso trouxe inquietação aos analistas globais, que repisavam palavras do ministro Barroso, tentando abafar uma lufada de vento renovadora. A posição do juiz Fachin não foi apenas um voto discordante, mas colocou uma sinalização que saía da mesmice dominante. Aliás, o fato do ministro Barroso se deter longamente na decisão do Comitê da ONU mostrou, a contrário senso, a relevância da mesma. Não tivesse importância seria afastada com um simples parágrafo.

lulajulgamento1A impressão que fica, para um observador atento, é que a análise de todo o processo equivocadamente parte da metade do caminho sem ir à origem do mesmo. Ali pontifica a decisão em segunda instância da IV Região de Porto Alegre, que referendou a condenação de Sérgio Moro e inclusive aumentou a pena. Uma segunda instância tem por finalidade analisar a sentença da primeira instância e, só depois de ouvir cuidadosamente as partes, ditar sua sentença. Ora, os juízes gaúchos (uma vergonha para nós seus conterrâneos), já traziam escritos enormes catataus de lambiscada sabedoria jurídica, com conclusões pré-determinadas, sem estar atentos ao contencioso levantado pelos advogados de ambas as partes. Como a rainha de copas da Alice de Lewis Carol, primeiro declararam a sentença já escrita e depois fingiram analisar o mérito. Tudo dentro das firulas legais formais, manchadas assim de irregularidades e de preconceitos prévios. A formalidade legal tentaria ser preservada, mas não escondia uma ilegitimidade de base.

Um passo atrás e temos, no início, o julgamento de Sérgio Moro. A esta altura, em sã consciência, é impossível não ver seu papel como executor fiel de um programa previamente elaborado. E aí radica o vício de outra origem ilegítima.

Toda a argumentação do juiz de Curitiba se assenta nas obras de um triplex que nunca foi propriedade de Lula, visitado talvez ocasionalmente por Marisa Letícia e que não interessou a nenhum dos dois. Em stand by ficou o caso de um pequeno sítio de Atibaia, a ser lembrado se necessário.

Antes de mais nada, espanta a dimensão ridícula dos possíveis crimes atribuídos a um presidente da república. Compare-se essa materialidade chinfrim com o que Temer recebeu no porto de Santos, Alckmin no transporte urbano de São Paulo ou o pedido sôfrego por dinheiro de Aécio. Os três seguem impolutos e intocáveis. Mas, é claro, para os setores de uma elite preconceituosa, um operário só poderia ter crimes à altura de sua insignificância. A que outra coisa aspirariam Lula e Marisa Letícia a não ser migalhas? No caso, com o agravante do triplex estar encravado na zona nobre de Guarujá. Já essas elites têm dificuldade de conviver num mesmo condomínio de luxo, com familiares de Ronaldo Fenômeno ou de Neymar Jr. A diferença é que estes últimos têm dinheiro a rodo, que tudo compra. Lula teria apenas a ambição modesta de um morador do ABC paulista.

O próprio Moro falará de indícios esparsos e minúsculos, para chegar a uma condenação maiúscula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Indícios não são provas. Antes, o procurador Deltan Dalagnol, com uma teatralidade ridícula, trouxera para os meios de comunicação esquemas vazios de conteúdo, que colocavam Lula no centro de uma terrível armação criminosa.

A própria materialidade era assim rala e inconsistente. Meça-se sua dimensão real e tudo cai como um castelo de cartas em parco equilíbrio. Mas é neste terreno movediço que se assenta instável todo o processo condenatório. Há exatos dois anos, Dilma Rousseff foi afastada da presidência, vítima da vingança de um Eduardo Cunha então poderoso, hoje atrás das grades. Os argumentos eram também inconsistentes e desproporcionais para a gravidade de um impeachment, as chamadas pedaladas fiscais, atrasos no repasse da União - usadas à farta por seus antecessores -, e dois decretos de crédito suplementar, para fazer frente a gastos urgentes.

No caso de Lula, uma vez armado e azeitado o circo jurídico, toda a discussão daí em diante passaria a ser meramente formal: Lula, condenado em segunda instância, é inelegível, pela Lei da Ficha Limpa. Do ponto de vista processual, essa conclusão passaria a ser considerada formalmente correta. Novamente a lógica de uma argumentação encerrada nela mesma. Foi quando entrou o elemento exterior de um resolução internacional que, pelas mãos do ministro Fachin, rompeu esse círculo fechado e mostrou a fragilidade da argumentação e a má fé do ministro Barroso.

Mas vamos nos deter no papel da Lei da Ficha Limpa. Como diretor do CERIS, fui um dos que enviou, para os 5.500 mil municípios, listas para alcançar mais de um milhão de assinaturas. O movimento levou um certo tempo mas frutificou. Carrinhos cheios de calhamaços carregados de assinaturas, entraram parlamento a dentro, numa afirmação de democracia participativa que atropelava a tranquilidade dos lentos processos da democracia representativa. Pela magnitude do caso, não podia ser ignorada e, inclusive, poderia servir como boa publicidade para mostrar parlamentares atentos à moral e ao bem comum.

Aqui temos o caso de uma Lei virtuosa posta a serviço de processos viciosos. As leis, por melhores que sejam, não vivem no abstrato, mas podem ser utilizadas pelos mais diferentes motivos. É uma enorme ingenuidade pensar que valem por elas mesmas. Numa sociedade de classes não há real isonomia universal, mas ela está minada por conflitos sociais. Será utilizada para as mais diferentes motivações e interesses. Vejamos alguns exemplos. João Capiberibe perdeu seu mandato no Amapá, por presumivelmente ter dado sapatos em período eleitoral, na compra de votos. O caso do Maranhão é escandaloso. Jackson Lago foi afastado do governo do estado por possíveis favores a familiares e, incrível, a perdedora, nada menos que Roseana Sarney, foi rapidamente empossada, sem chamar a nova eleição. E agora que Flávio Dino, pelas pesquisas, poderá ganhar ali no primeiro turno, uma juíza do interior o declarou inelegível por favorecimento municipal contra um cunhado de Roseana, novamente candidata a perder eleição.

Assim, a lei da Ficha Limpa pensada, talvez um pouco ingenuamente, como um fator automático de aprimoramento democrático, vai sendo usada e abusada para as piores finalidades.

Aqui quero introduzir uma distinção entre ética e moral. A ética tem a ver com grandes princípios norteadores de um processo civilizatório. Ela não é estática, mas se explicita no seio de uma consciência histórica determinada. Assim, o princípio de democracia, na sociedade escravocrata de Atenas, é diferente daquele do mundo da gentry (os proprietários do capitalismo inglês), depois da Glorious Revolution de 1688. E também daquelas sociedades com sufrágio universal, ainda que atravessadas por desigualdades estruturais. Carlos Nelson Coutinho falou de democracia como valor universal. Porém esse valor não é um absoluto categórico abstrato, mas se concretiza numa determinada sociedade. E a consciência histórica vai evoluindo para explicitar novos valores, nem sempre pacíficos num começo: a igualdade de gênero, os direitos da multiplicidade dos mais diversos gêneros, etc.

Mas a moral, normas de convivência social, é ainda mais colada a uma situação concreta. Coincidem num mesmo tempo as mais diversas e inclusive contraditórias morais. Vejam a moral corrente da Arábia Saudita diante de uma moral ocidental. Os setores dominantes usam, numa sociedade determinada, sua interpretação da moral para fortalecer sua hegemonia ("direção intelectual e moral da sociedade”, na definição de Gramsci). A moral pode inclusive descambar num moralismo caricato próprio de alguns setores de classe média, sensíveis ontem a um chamado da então UDN (“a eterna vigilância”), do Clube da Lanterna na origem do golpe de 1964, ou de um lacerdismo raivoso. Bolsonaro, hoje, é mais ambíguo, pois seu moralismo é ofuscado por forte intolerância e preconceitos.

Porque digo tudo isso? O processo de impugnação da candidatura Lula, enrolado num processo legal bem azeitado, está claramente a serviço de interesses muito concretos. Usa-se a moral da Ficha Limpa, para justificar a desqualificação de um candidato insuportável para setores do poder. Mas o que assusta a esses ainda mais, é a amplitude do apoio popular crescente. Como armar barreiras jurídicas para detê-lo? O arcabouço jurídico não é estático, mas sujeito a pressões do interior da sociedade ou de seu exterior, como indicou o ministro Fachin, sobre a decisão do comitê dos direitos humanos das Nações Unidas. Ou o impacto de um manifesto dos mais importantes intelectuais do mundo inteiro em favor de Lula. O apartheid foi lancetado por uma pressão interna na África do Sul, mas principalmente por um movimento internacional.

Como uma formalidade jurídica é posta à prova pela materialidade de um grande movimento histórico? Isso aconteceu no movimento abolicionista, em que a legalidade escravocrata foi derrotada por um anseio crescente de setores urbanos da população e pelos melhores intelectuais de seu tempo, de Joaquim Nabuco a Ruy Barbosa, passando pelos poemas de Castro Alves. Um movimento semelhante está em marcha, para além das próximas eleições, com Boaventura de Sousa Santos ou Leonardo Boff e as canções de Chico Buarque.

Hoje, uma ampla aliança de setores populares, em comum com um pensamento progressista – desde que este rompa com pequenos dogmatismos – podem levar o Brasil a uma retomada de sua construção como nação. E a uma revisão em profundidade de uma juridicidade claudicante que vai sendo, aos poucos, superada por caduca e inconsistente, diante da grande ética contemporânea e de uma legitimidade democrática cidadã.

*Luiz Alberto Gomez de Souza é formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pós-graduado em Ciência Política, doutor em Sociologia, professor da Universidade Cândido Mendes.

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