Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e da opressão, e sim de algo novo: a exclusão social.
Por Alfredo J. Gonçalves*
Na sexta-feira, 23 de julho de 2018, outras duas embarcações partem das costas da Líbia em direção ao sonho do Eldorado no velho continente europeu. A bordo de ambas, 450 imigrantes de diferentes países africanos. Entre eles, 130 são menores, boa parte dos quais viaja desacompanhada. A travessia torna-se perigosa devido às ondas agitadas do Mediterrâneo central. Em meio à possibilidade de um novo naufrágio e nova tragédia, dois navios militares – Monte Sperone, da Guardia de Finanza, e Protector, da agência de controle das fronteiras europeias Frontex – se aproximam e recolhem os forasteiros nas proximidades da ilha de Lampedusa. Depois, navegam até as vizinhanças do porto de Pozzallo, na ilha de Sicilia, onde lançam âncora à espera de ordens superiores.
De imediato, abre-se mais um capítulo da “novela” referente às migrações que tentam cruzar o Mediterrâneo entre África e Europa. Retoma-se a mesma polêmica das embarcações anteriores, como Aquarius e Lifeline, que escancara a divisão da União Europeia (UE). O Ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, uma vez mais, manda fechar todos os portos do país aos estrangeiros. O Primeiro Ministro, Giuseppe Conte, por seu turno, começa as negociações com os demais parceiros da União Europeia, no sentido de redistribuir os imigrantes entre os países vizinhos, como recomenda o regime de quotas do acordo de Bruxelas.
Transcorrem três dias de telefonemas, tratativas e solicitações de asilo. Três longos dias para quem permanece à deriva, com a terra firme diante de si. Mais ainda, para quem já vem de longa travessias pelas areias do deserto. Enquanto isso, duas dezenas de imigrantes passam mal. Devem ser atendidos a bordo por uma equipe de pronto socorro. Alguns precisam de maiores cuidados, tendo de desembarcar e logo serem hospitalizados. Por fim, após as longas e difíceis negociações, Giuseppe Conte consegue a disponibilidade de cinco países, além da Itália, para acolher cada um deles a quantidade de 50 imigrantes. Os países são França, Alemanha, Malta, Portugal e Espanha.
Do ponto de vista dos que são forçados a escapar da violência, da guerra ou da pobreza, está em jogo uma alternativa de sobrevivência num solo que os possa hospedar. Do ponto de vista da União Europeia, porém, estamos diante de um jogo de empurra-empurra. Todos procuram liberar-se da “batata quente”, limitando-se a acolher a quota mínima possível. Em terras do velho continente, o fenômeno migratório converteu-se numa espécie de leilão, não no sentido de quem oferece mais, e sim no sentido de quem recebe menos. Certamente é um exagero comparar tal situação com a condição dos escravos africanos vendidos como mercadoria nos portos das Américas, menos de dois séculos atrás.
Mas, de outra parte, a situação é igualmente grave e desumana. Não pior nem melhor, apenas diferente e mais complexa. No caso dos escravos, os senhores do açúcar, do algodão, do café e do ouro os queriam para o trabalho do leito e da mina. Duro trabalho, pelo direito de comer e sobreviver! E é notório como a escravidão deixou feridas abertas na população afro-americana. Estigmas que perduram e sangram até os dias de hoje. No caso dos migrantes atuais, ninguém os quer! Quem sabe podemos aceitar alguns para os serviços braçais – trabalhadores, nada de cidadãos! Vem à memória o Documento de Aparecida. Vale citar o texto literalmente, de resto sempre lembrado pelo Papa Francisco: “Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e da opressão, e sim de algo novo: a exclusão social. Com ela fica afetada na própria raiz a pertença à sociedade em que se vive, pois, nesta, já não se está abaixo, na periferia, ou sem poder, mas se está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘sobrantes’, ‘descartáveis’” (DA, nº 65).
Escravos e migrantes, migrantes e escravos. Os conceitos se cruzam, se fundem e se entrelaçam, seja na famigerada história da escravidão afro-americana, seja na tentativa atual de buscar um futuro menos penoso nos países desenvolvidos. Em ambos os casos, é o povo africano que mexe e remexe as pedras do xadrez. Na medida em que se põe em marcha, faz marchar a própria história. A partir da periferia, irrompem no velho mundo com sangue vivo e quente de quem anseia pela vida, com oxigênio renovado de quem anuncia uma primavera de flores, folhas e frutos.