Migrações e política econômica. Entrevista especial com padre Alfredo Gonçalves

A maior preocupação da Pastoral dos Migrantes hoje se resume ao seguinte desafio: como passar da assistência imediata (social, jurídica, espiritual) a uma verdadeira inserção no lugar de destino.

Por IHU On-Line

Entre os vários fatores que explicam o crescente fenômeno migratório na Europa, um deles é a “estridente assimetria entre os países e regiões centrais e os países e regiões periféricos”, isto é, “a mobilidade humana encontra-se umbilicalmente ligada à política econômica de cada país e de todo o globo”, pontua Alfredo Gonçalves,Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos - CS, assessor das Pastorais Sociais, que tem acompanhado esse processo em Roma, de onde concedeu, por e-mail, a entrevista a seguir à IHU On-Line.

Segundo ele, a população que desembarca na Europa vem em “grande maioria” de países africanos, do Oriente Médio e em menor escala da Ásia. “No corredor entre Europa e África, em vez, o que está em jogo são os países pobres deste último continente. Em vários deles impera a ‘limpeza’ étnica, religiosa ou ideológica, como no Sudão do Sul. Em outros, é a disputa pelo poder que gera lutas fratricidas, como na Nigéria e Chade. Semelhantes conflitos provocam a morte dos que são obrigados a combater, ou a fuga em direção ao norte, às margens do Mediterrâneo. (...) Além disso, grande parte desses países vê-se repetidamente assolada pela seca ou pela inundação, seguida da fome, como a Etiópia, Somália e a Eritreia, por exemplo, no chamado corno da África, e ainda Burkina Faso, Chade, Mali, Senegal. (...) Todos fogem a um destino trágico, seja a perseguição política, a prisão ou execução pura e simples, seja a morte a conta-gotas e aos olhos da própria família, devido às condições precárias em que vivem”, resume.

Na avaliação de Gonçalves, os diversos países que formam o continente europeu assumem uma “posição diversificada” e “contraditória” em relação às possibilidades de oferecer respostas ao fenômeno migratório. “A última cúpula da União Europeia - UE, formada por 18 países, foi realizada nos dias 28 e 29 de junho passado. O que se vê é um jogo de empurra-empurra, como se os migrantes representassem uma ‘batata quente’. As autoridades sentem-se duplamente pressionadas: de um lado, por boa parte de sua população que não aceita a vizinhança dos migrantes; de outro lado, pelo acordo de Berlim, de 2017, segundo o qual havia a promessa de estabelecer um regime de quotas para cada nação. Entretanto, Hungria, Áustria, Polônia e Holanda, entre outros países, não querem saber de um único imigrante. Outros dizem sim, seguido porém de um ‘mas’ ou ‘se’, de um ‘poderia’ ou ‘vamos ver’, de um ‘seria’ ou ‘depende’ e assim por diante”, informa.

alfredogoncalvesSegundo Gonçalves, que acompanha de perto o trabalho desenvolvido pela Pastoral dos Migrantes, “a maior preocupação da Pastoral dos Migrantes hoje se resume ao seguinte desafio: como passar da assistência imediata (social, jurídica, espiritual) a uma verdadeira inserção no lugar de destino”, conclui.

Alfredo Gonçalves foi ordenado sacerdote scalabriniano em 1984. Entre 1994 a 1997, trabalhou na Paraíba com os cortadores de cana-de-açúcar ligados à Pastoral dos Migrantes. De 1998 a 2003, trabalhou como assessor do Setor Pastoral Social da Conferência Episcopal (CNBB), no qual se incluía a Pastoral dos Migrantes. Em 2003 atuou nas fronteiras da Argentina, Brasil e Paraguai, como pároco pessoal dos imigrantes na Diocese de Ciudad del Este. Em 2007 foi superior Provincial da Província São Paulo e atualmente é Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos desde 2012.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor compreende o fenômeno da imigração e dos refugiados nos dias de hoje, a partir do que tem observado em Roma?

Alfredo Gonçalves - Permitam-me iniciar com uma espécie de “minuto de silêncio” pelos 1.405 imigrantes que, de janeiro até o início de julho de 2018, perderam sua vida nas águas do Mediterrâneo. Sem nome e sem rosto, para sempre sepultados no anonimato do fundo do mar e para sempre separados da família. Sonhos se transformam em pesadelos, esperança viram tragédia. De acordo com o jornal Corriere della Sera (04/07/18), nos últimos meses cerca de 9% dos que embarcam no norte da África morrem afogados na travessia. Seria evidentemente um exagero chamá-los de mártires da migração. Talvez o sejam, porém, de uma economia globalizada que “exclui, descarta e mata”, para ater-se às palavras do papa Francisco.

Quanto à imigração atual dos refugiados, o fenômeno se deve, entre outros fatores, à estridente assimetria entre os países e regiões centrais e os países e regiões periféricos. A Doutrina Social da Igreja - DSI, de modo particular na Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (1965), e na Carta Encíclica Populorum Progressio (1967), ambas publicadas pelas mãos do então papa Paulo VI, repito, a DSI sempre bateu nessa tecla. O progresso técnico e o crescimento econômico, por si sós, não levam ao desenvolvimento integral e à paz. Desenvolvimento e paz somente são possíveis onde o crescimento vem acompanhado de uma verdadeira e profunda distribuição da renda e da riqueza. “O desenvolvimento é o novo nome da paz”, diz a esse respeito um dos subtítulos da Populorum Progressio.

Mas tal assimetria é ainda mais gritante quando comparamos as nações do velho continente europeu com aquelas do novo continente africano. Com a revolução dos transportes e das comunicações, coisas e pessoas correm e voam a uma aceleração sem precedentes. Impressiona hoje a velocidade de deslocamento de mercadorias, dinheiro, tecnologia, notícias, conhecimento, informações, armas, drogas e violência – em alguns casos, basta um simples toque na tecla do computador. Com isso, os jovens em especial possuem diante dos olhos, do outro lado do deserto e do Mediterrâneo, um possível Eldorado de oportunidades. Acrescentam-se a isso os fatores que os levam à fuga em massa da própria terra natal, incluindo um certo senso de libertação em relação a sociedades tradicionais de rígido controle social.

IHU On-Line - O fenômeno da imigração se modificou ao longo dos últimos sete, oito anos? Em quais aspectos?

Alfredo Gonçalves - Desnecessário lembrar que a mobilidade humana encontra-se umbilicalmente ligada à política econômica de cada país e de todo o globo. Além de um fenômeno epocal e estrutural, os deslocamentos humanos de massa tornaram-se igualmente planetários. Daí sua relação com a geopolítica mundial. Nos últimos anos, assiste-se por todo lado uma guinada à direita (para não dizer à extrema direita) em boa parte dos processos eleitorais mais recentes. Seria fácil citar, entre outros, Estados Unidos, França e Alemanha em parte, Inglaterra do Brexit, Áustria, Hungria, Polônia, Itália, Países escandinavos, República Checa, Eslovênia.

Esses governos, já durante a campanha eleitoral e mais ainda depois de eleitos, assumem uma política antimigratória declarada e ostensiva. O mais grave é que tal atitude costuma ser uma caixa de ressonância das respectivas populações, nas quais reina o medo, a ameaça e o rechaço ao outro, ao estrangeiro. Isso explica o crescimento bastante generalizado do preconceito e da discriminação, do racismo e da xenofobia. Exemplos mais evidentes disso são Donald Trump (EUA), Matteo Salvini (Itália) e Sebastian Kurz (Áustria), para limitarmo-nos a esses três casos.

Enquanto S. Kurz, no dia 5 de julho passado, acabou de reforçar o controle na fronteira entre Áustria e Itália, em Brennero, Matteo Salvini, por sua vez, um dia depois, em 06/07/18, enviou uma circular a todos os prefeitos, no sentido de restringir o direito de asilo aos imigrantes. E ontem, 9 de julho, levou à Suprema Corte Europeia a ideia de fechar os portos italianos a todos os navios internacionais. No que diz respeito ao Brasil (e não só), alguns países do velho continente já estudam a forma de dificultar a entrada de nossos concidadãos. Em termos globais, ao fecharem a porta da frente à imigração, isto é, a via legal e devidamente documentada, desencadeiam a corrida à porta dos fundos, ou seja, a via “ilegal” e sem os documentos em ordem. Disso resulta que os complexos fronteiriços acabam tornando o fenômeno migratório mais intenso e mais vivo, conferindo-lhes ao mesmo tempo maior visibilidade. Fronteiras como aquelas que simultaneamente unem e dividem a Turquia e a Grécia, o norte da África e o sul da Europa, o México e os EUA, Myanmar e Bangladesh, a ilha de Batan (Malásia) e Cingapura, Chile, Peru e Bolívia, Venezuela, Colômbia e Brasil, Paraguai, Argentina e Brasil, entre outras – convertem-se em panelas de pressão prestes a explodir. Vulcões em estado de erupção.

IHU On-Line - Quais são as origens dos imigrantes que mudam para a Europa e quais são as causas dessas migrações?

Alfredo Gonçalves - A grande maioria se origina dos países da África, especialmente da região subsaariana; do Oriente Médio; e em menor escala da Ásia. Países como Síria, Afeganistão, Iraque (Oriente Médio); Líbia, Etiópia, Eritreia, Somália, Sudão, Senegal, Burkina Faso, Chade, Mali (África) figuram em primeiro plano. Mas se alargarmos a visão da mobilidade humana em geral, de outras nações como Índia, Sri Lanka, Filipinas, Myanmar e Indonésia (Ásia) saem milhares de pessoas, algumas das quais também chegam ao continente europeu.

As motivações repetem-se com uma frequência assustadora: primeiro, pobreza, miséria, fome, falta de emprego e de oportunidade; depois, violência, guerra, conflitos que podem ser étnicos, religiosos ou político-ideológicos; por fim, desastres naturais, não raro amplificados devido às progressivas mudanças ambientais. Escapam os jovens sobretudo, mas também as mulheres e, de forma crescente, as crianças desacompanhadas. E como já vimos, alguns escapam também em busca de maior autonomia e liberdade. Tais causas se misturam, se entrelaçam e se fundem. Por isso é que a tentativa de separar refugiados e prófugos, de um lado, e migrantes socioeconômicos, de outro, esteja condenada ao fracasso. Todos fogem a um destino trágico, seja a perseguição política, a prisão ou execução pura e simples, seja a morte a conta-gotas e aos olhos da própria família, devido às condições precárias em que vivem.

IHU On-Line - Que informações o senhor tem sobre os imigrantes que vêm da África do Sul? Qual é a situação deles e por que migram para a Europa?

Alfredo Gonçalves - Não exatamente da África do Sul, país que também é considerado um lugar de destino para muitos imigrantes das nações vizinhas (Botsuana, Zimbabwe, Namíbia ou Moçambique). No corredor entre Europa e África, em vez, o que está em jogo são os países pobres deste último continente. Em vários deles impera a “limpeza” étnica, religiosa ou ideológica, como no Sudão do Sul. Em outros, é a disputa pelo poder que gera lutas fratricidas, como na Nigéria e Chade. Semelhantes conflitos provocam a morte dos que são obrigados a combater, ou a fuga em direção ao norte, às margens do Mediterrâneo. Ali resta esperar pela travessia, sempre custosa, agitada e controlada pelos traficantes de seres humanos. Além disso, grande parte desses países vê-se repetidamente assolada pela seca ou pela inundação, seguida da fome, como a Etiópia, Somália e a Eritreia, por exemplo, no chamado corno da África, e ainda Burkina Faso, Chade, Mali, Senegal. Diante de tais catástrofes, não é difícil entender a fuga em massa, mesmo com o risco de afogamento na travessia.

IHU On-Line - Como, na sua percepção, os países europeus se posicionam acerca dessas imigrações? Por quais razões alguns se posicionam contrários às imigrações e quais são os argumentos dos que são favoráveis a elas? Quais são as principais tensões entre os que são favoráveis e contrários às migrações?

Alfredo Gonçalves - Seria melhor dividir a pergunta em duas. Comecemos com a primeira parte: a posição diversificada, e por vezes contraditória, dos países europeus. A última cúpula da União Europeia - UE, formada por 18 países, foi realizada nos dias 28 e 29 de junho passado. O que se vê é um jogo de empurra-empurra, como se os migrantes representassem uma “batata quente”. As autoridades sentem-se duplamente pressionadas: de um lado, por boa parte de sua população que não aceita a vizinhança dos migrantes; de outro lado, pelo acordo de Berlim, de 2017, segundo o qual havia a promessa de estabelecer um regime de quotas para cada nação. Entretanto, Hungria, Áustria, Polônia e Holanda, entre outros países, não querem saber de um único imigrante. Outros dizem sim, seguido porém de um “mas” ou “se”, de um “poderia” ou “vamos ver”, de um “seria” ou “depende” e assim por diante.

A verdade é que, ao final da cúpula, não se verificou avanço algum. As coisas permanecem estacionadas no ponto em que estavam antes do encontro. Cada país se apresenta com uma série de condições que mais parecem muros invisíveis. Ou seja, as autoridades responsáveis, pressionadas entre o muro e a espada, recusam-se a um posicionamento taxativo e solidário. Reconhecem que nenhum país poderá resolver sozinho o que chamam de “crise migratória”, mas, ao mesmo tempo, apegam-se às vantagens e desvantagens da política interna e externa. No fundo a migração acaba sendo fortemente politizada, o que significa em geral criminalizar os imigrantes. As manchetes dos jornais italianos, diante do fracasso da cúpula, estamparam expressões como “caos, indiferença e insensibilidade”, “declínio e cegueira” ou “massacre silencioso” para definir o resultado das tratativas frustradas da Europa. Retornam e prevalecem seja o nacionalismo de outros tempos, seja uma espécie renovada da famigerada ideologia de segurança nacional.

O caso recente ligado à saga de três naves de organizações não governamentais – Aquarius e Lifeline, e Open Arms SOS Mediterranée – ilustra bem o desinteresse e o fechamento dos países europeus. O primeiro navio, com 629 imigrantes a bordo, e o segundo, com 234 imigrantes, foram ambos obrigados a permanecer à deriva por vários dias nas águas do Mediterrâneo, enquanto as autoridades se debatiam em enviá-los de um país para outro. O ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, mandou fechar os portos do país, jogando o “problema” para Malta. Malta apelou para a França, a França recriminou a Itália, e o círculo do rechaço tendia a repetir-se. Por fim, a Espanha resolveu receber a Aquarius no porto de Valência, e Malta permitiu que a Lifeline atracasse num de seus portos. Depois, apareceu a terceira nave, Open Arms, com 59 imigrantes a bordo. Após alguns dias de nova indecisão, acabou atracando no porto de Barcelona. Seus ocupantes, porém, têm apenas 45 dias para regular a própria situação ou retornar ao país de origem. Mas nem tudo são espinhos: a ministra da Economia da Espanha, Nadia Calviño, anunciou, no último dia 6 de julho, uma redução de 15% nos impostos a quem se dispuser a empregar determinada porcentagem de imigrantes africanos.

Em todos esses exemplos, entretanto, não faltaram exigências cada vez mais rígidas. Malta só aceitou os imigrantes com a condição que eles fossem divididos por mais oito países: Itália, França, Portugal, Espanha, Noruega, Suécia, entre outros. A Espanha, em sua ambiguidade, decidiu proceder a uma rigorosa seleção, no sentido de aceitar aqueles cuja situação estivesse regular e de expatriar os demais. O que é uma forma dissimulada de negar acolhida e asilo, uma vez que a grande maioria não dispõe dos documentos em ordem. Em casos extremos, como na Hungria, as pessoas, famílias e entidades que se dispõem a acolher e ajudar os imigrantes podem ser consideradas criminosas e, portanto, passíveis de penalidade.

IHU On-Line – E quanto aos argumentos daqueles que, de uma forma ou de outra, se posicionam favoravelmente às migrações?

Alfredo Gonçalves - Exato, isso nos leva à segunda parte da pergunta. Segundo alguns estudiosos e jornalistas, dever-se-ia levar em conta o argumento da demografia. Vários países do continente estão em declínio de população, com crescimento abaixo de zero. Os migrantes, em grande parte jovens, poderiam preencher o vácuo de uma geração em sentido duplo: primeiro, em termos de substituir a mão de obra que cedo ou tarde começará a escassear, depois garantindo o nível de vida europeu, através do trabalho e do pagamento normal de impostos.

De acordo com outros, a Europa está colhendo o que semeou nos séculos passados. Nos tempos sombrios do colonialismo, ocupou regiões da África, tomando-lhes o que tinham de melhor, incluindo os trabalhadores que foram transformados em escravos e enviados às Américas. Onde a riqueza era maior, os saques foram mais intensos e brutais, e o povo tornou-se mais pobre ou empobrecido, abandonado à própria miséria. Agora vem o troco. Da mesma forma que “as sementes e as aves migram nas asas do vento” – dizia Dom Scalabrini, (Nota de IHU On-Line: João Batista Scalabrini, (1839-1905), bispo italiano, fundador da Congregação dos Missionários de São Carlos, scalabrinianos, foi beatificado em 1997 por João Paulo II.) denominado o “pai e apóstolo dos migrantes” – os que provêm da África o fazem nas pegadas do capital, buscando as migalhas que caem da mesa dos ricos, como na parábola do pobre Lázaro.

Nenhum destes argumentos, porém, consegue derreter o bloco de gelo do populismo nacionalista, particularmente forte no partido da Lega (antiga Liga do Norte), de Matteo Salvini. Servindo-se do clima de medo e ameaça próprio dos tempos de crise, e até mesmo do espectro dos ataques terroristas, a coalizão formada pela Lega conquistou o maior número de votos nas últimas eleições italianas. Nota-se que o discurso da direita – expatriar os indocumentados e restringir a entrada de novos imigrantes (copiado quase literalmente da política de “tolerância zero” de Trump) – detém grande apoio popular. As últimas pesquisas revelaram que a postura de Matteo Salvini, simbolizada no fechamento dos portos às embarcações das ONGs que atuam no Mediterrâneo, consegue hoje 31% de aprovação. Entende-se assim o “muro invisível” que a Itália levanta diante da Líbia e da África como um todo.

IHU On-Line - Que informações o senhor tem sobre os campos de refugiados na Europa? Como e por que eles estão sendo formados e quais instituições estão atuando junto a esses campos?

Alfredo Gonçalves - Por aqui tais campos são denominados como Centros de Acolhida. Existem sobretudo nos países do Mediterrâneo, ao sul do continente: Grécia, Malta, Itália, Espanha. Os demais, incluindo a França, insistem em afirmar que tais países sejam responsáveis pelos recém-chegados, bem como pelo controle e a seleção dos mesmos. Assim, os centros exercem sobretudo o papel de abrigar os imigrantes apenas resgatados, mas também de repatriá-los, caso haja qualquer suspeita de ligação com os traficantes ou com as redes terroristas. Mas também podem ser repatriados os que se encontram em estado “irregular”.

Vale lembrar que a chamada “primeira acolhida” é em geral reservada ao governo, por motivos de segurança nacional. Mas os centros, além de funcionários estatais, às vezes contam com voluntários ou estagiários. A Congregação à qual faço parte – padres scalabrinianos – tem uma casa para refugiados e migrantes em Roma. Mas ali chegam somente os de “segunda acolhida”, quando os papéis já estão em ordem e os migrantes encontram-se em fase de inserir-se no mercado de trabalho, à procura de emprego.

IHU On-Line - Quais são os problemas de violência contra as mulheres nos campos de refugiados? Que outros direitos são violados nesses campos?

Alfredo Gonçalves - Agora limito-me apenas à Itália. Mulheres e crianças são separadas em centros próprios. Circulam notícias de maus-tratos e de abusos sexuais. De outro lado, fala-se de acolhida adequada e educação especial para os menores. Mas tais informações, para o bem ou para o mal, são difíceis de comprovar. O acesso a tais centros é restrito e controlado. O que é certo é que, em alguns deles, especialmente ocupados por homens, explodiram revoltas momentâneas. Também correm notícias sobre a exploração trabalhista dessa mão de obra, de maneira particular na colheitas da zona rural ou em alguns serviços braçais e mal remunerados da cidade. Verifica-se, além disso, a tendência em interiorizar e descentralizar os centros e os migrantes.

IHU On-Line - Pode nos dar um panorama de como nos processos eleitorais de países como Itália, Áustria, Hungria, Polônia, França e Alemanha se deu a politização e o tratamento do fenômeno migratório? Politicamente, como partidos e políticos à direita e à esquerda têm se posicionado sobre as migrações na Europa?

Alfredo Gonçalves - O assunto já foi ligeiramente abordado. Basta um voo de pássaro sobre as campanhas eleitorais dos últimos pleitos. Em todos esses países, como nos Estados Unidos, o fenômeno migratório figurou quase sempre como ponto número um na lista de temas a serem debatidos. E como já vimos anteriormente, a politização das migrações representa, em geral, a criminalização dos migrantes. São fortemente indesejados, rechaçados. Para os governos de direita, constituem um “problema” que exige soluções; para determinados meios de comunicação, aparecem como uma “ameaça” disfarçada; para boa parte da população, provocam “medo e risco” à ordem pública. Pelas ruas, são comuns expressões como “invasão africana”, “onda negra”, “avalanche humana”, entre outras às vezes impronunciáveis.

Os governos de esquerda, por sua vez, tentaram (e alguns ainda tentam, como a Espanha) manter as fronteiras abertas. Emblemáticos são os casos dos ex-governos de Matteo Renzi e Paolo Gentiloni, na Itália. Ambos mantinham a política de socorro, resgate, acolhida e tentativa de inserção. Em seus mandatos, dezenas de milhares de imigrantes foram salvos das águas do Mediterrâneo recolhidos em território italiano. Renzi e Gentiloni com frequência referiam-se aos imigrantes como fonte de “recursos humanos” ou “oportunidade”. Mesmo aqui, porém, os termos recursos e oportunidade às vezes cheiravam mal, como se denunciassem uma possibilidade de exploração dessa mão de obra abundante e barata.

Por outro lado, foi justamente durante esses governos que a União Europeia (incluindo a Itália) firmou um acordo, primeiro com a Turquia, mais tarde, com a Líbia. Segundo os termos do acordo, em troca de uma ajuda financeira regular da UE, esses países deveriam manter os imigrantes no interior de seus territórios. Uma maneira de transferir a fronteira para o outro lado da linha. Pior que isso, uma maneira de truncar a meio caminho a Rota Balcânica (no caso da Turquia) e a Rota Mediterrânea (no caso da Líbia).

Os resultados não se fizeram esperar: primeiro, foi o surgimento imediato de campos de refugiados, prófugos e migrantes tanto na Líbia quanto na Turquia. Este último país, diga-se de passagem, abriga hoje o maior número de refugiados, especialmente sírios e curdos, estimado em mais de 6 milhões pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR. Tais campos apresentam condições extremamente críticas em termos de precariedade de alojamento, alimentação, higiene, saúde. Chegou-se a falar de compra e venda de “escravos”. O outro resultado vem sendo a acentuada diminuição do número de imigrantes que desembarcam atualmente nas costas da Itália. De janeiro deste ano até agora, a queda chegou a 80% em relação ao mesmo período do ano precedente. O que levou o presidente da França, Emmanuel Macron, a subestimar recentemente a “crise migratória” ou “crise humanitária”.

IHU On-Line - Por que, na Itália, Matteo Salvini, líder da Lega, é contrário às migrações e propõe a deportação de imigrantes, o fechamento das fronteiras para a imigração ilegal e a diminuição do orçamento para a operação de socorro aos prófugos no mar Mediterrâneo?

Alfredo Gonçalves - Precisamente, essas foram suas principais bandeiras durante a campanha eleitoral. O mais grave é que elas continuam desde o início do governo. O que o leva a isso? Em primeiro lugar, sua postura marcadamente nacionalista e populista, como líder da Lega e da coalizão de direita. Difícil encontrar alguém que seja uma cópia tão idêntica de Donald Trump. Depois, estava em jogo o pleito eleitoral. Queiramos ou não, Salvini se fez porta-voz de uma boa parte da população italiana. Um setor expressivo e em geral silencioso, formado de eleitores que recusam categoricamente a presença dos imigrantes. Não é difícil encontrá-los pela praças e ruas da cidade. Sua voz se levanta cada vez mais e não raro se torna estridente, raivosa. Por fim, imperou um certo oportunismo, o qual, jogando com o medo e a ameaça do povo frente à chegada contínua de imigrantes, representou uma boa quantidade de votos.

IHU On-Line - Como avalia a postura do governo norte-americano, de separar crianças de seus pais, em casos de imigrações ilegais, que faz parte da política de tolerância zero para imigrações?

Alfredo Gonçalves - Também neste caso já tocamos de leve no assunto. Talvez estejamos assistindo a uma das maiores violações dos direitos humanos, isto é, a privação de uma família para esses menores. Crianças são como flores: sem o terreno bem cuidado de um jardim, as flores murcham, secam e morrem. A família é o jardim onde a criança se desenvolve. Privada dele, torna-se vulnerável a todo tipo de risco, incluindo o de ser recrutada pelos narcotraficantes ou manipulada pelo tráfico de seres humanos. O calor da família costuma ser o melhor antídoto contra os becos sem saída que o destino reserva aos pobres, inocentes e indefesos. Trágico destino! Vendo tais crianças engaioladas e separadas dos pais, não pode deixar de vir à tona a barbárie dos regimes totalitários, perpetradas nos campos de Auschwitz e Gulag.

IHU On-Line - Em sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, no início deste ano, o Papa disse que o fenômeno migratório tem que ser articulado em torno de quatro verbos fundamentados nos princípios da Doutrina Social da Igreja: acolher, proteger, promover e integrar. Como essa proposta pode ser reconciliada com os argumentos daqueles que se manifestam contrários às migrações?

Alfredo Gonçalves - Definitivamente, o papa Francisco navega na contramão da onda populista, direitista, nacionalista. Popular sem ser populista, o pontífice emerge hoje como uma caixa de ressonância não somente da Boa Nova de Jesus Cristo, mas também dos Direitos Humanos. Isso incomoda não poucos representantes de interesses privados, grupais, empresariais ou corporativistas, tanto ad intra quando ad extra da Igreja. Não há reconciliação possível entre a proposta do Santo Padre com seus quatro verbos, de um lado e, de outro, os donos do poder, da riqueza e da renda, que habitam o andar superior da pirâmide socioeconômica. Os interesses se contrapõem desde a raiz. Portanto somente uma alternativa igualmente radical ao modelo de produção capitalista, de filosofia liberal ou neoliberal, poderá trazer alguma luz.

Qual alternativa? Não podemos fabricá-la em laboratório. Não é obra dos sábios, intelectuais ou cientistas. Todos eles podem contribuir, é claro, mas o elemento novo nasce do chão. A exemplo das espigas, primeiro mergulha as raízes no solo úmido e escuro da história, para depois, e só então, buscar o ar livre, o céu azul e a luz do sol. Numa palavra, profetas e protagonistas de qualquer alternativa são os que vivem nos porões, nas periferias e nas fronteiras da sociedade, entre eles os imigrantes. O ato mesmo de colocar-se a caminho faz marchar a história. Neste assunto, nada mais justo que dar a palavra ao papa Francisco: o maior desafio de nossos tempos consiste em substituir a “globalização da indiferença” pela “cultura da acolhida, do diálogo e da solidariedade”.

IHU On-Line - Qual tem sido a atuação do ACNUR em relação à situação dos refugiados e imigrantes?

Alfredo Gonçalves - Enquanto membros de uma Congregação que tem como carisma o trabalho junto aos migrantes, temos várias obras em parceria com o ACNUR, a Organização Internacional de Migração - OIM, a Cáritas Internacional, o Jesuit Refugee Service, entre outras entidades. ACNUR e OIM ajudam, sem dúvida, mas voltam-se de maneira prioritária para os imigrantes que dispõem do status de refugiado. O problema é que a maioria daqueles que hoje residem fora do país em que nasceram – cifra que, segundo a ONU, em 2015 bateu o recorde de 244 milhões de pessoas, 41% superior ao ano 2000 – é constituída de migrantes socioeconômicos, se podemos designá-los deste modo. Essa divisão, muitas vezes arbitrária, não leva em conta as condições sociais e econômicas de extrema vulnerabilidade destes últimos, como já salientamos mais acima.

IHU On-Line - De outro lado, como os padres carlistas estão atuando junto aos refugiados e imigrantes?

Alfredo Gonçalves - A Congregação dos padres carlistas ou scalabrinianos possui em todo mundo ao redor de 40 Casas ou Centros para migrantes, prófugos e refugiados, indistintamente. Posso afirmar que a maior preocupação da Pastoral dos Migrantes hoje se resume ao seguinte desafio: como passar da assistência imediata (social, jurídica, espiritual) a uma verdadeira inserção no lugar de destino. Esse passo é gigantesco: exige documentação e condições de trabalho, o que, como bem sabemos, abre as portas a outros direitos, tais como moradia, saúde, escola, segurança sanitária... Enfim uma cidadania justa que seja o alicerce para a conquista e a defesa da dignidade humana. De outro lado, como manter um contato mais ou menos permanente entre lugares de origem e lugares de destino? Entre os dois polos, os migrantes costumam fazer uma ponte de sobrevivência. Em nome do Evangelho e dos direitos à vida, como podemos construir uma ponte pastoral?

IHU On-Line - O que seria uma solução imediata e outra de longo prazo, para resolver o problema da imigração na Europa?

Alfredo Gonçalves - De imediato, creio que os quatro verbos do papa Francisco – acolher, proteger, promover e integrar – constituem um bom programa. Certo, o termo integrar não raro tem conotações ambíguas, podendo ser sinônimo de abdicar da própria cultura, costumes e valores, para integrar-se na sociedade de chegada. Seguramente não é essa a ideia do pontífice, se levarmos em consideração suas palavras, seus escritos e seus gestos. Cada um desses verbos, por sua vez, desdobra-se em uma série de atividades que devem ser assumidas não apenas pelas entidades da sociedade civil, mas de maneira toda especial pelos governos e autoridades internacionais.

Seja como for, a solução de longo prazo requer mais que isso. Neste caso, o encontro entre culturas deve ser realizado através de um confronto dialógico, e não através de uma mera coexistência. Eis outro desafio: num mundo cada mais mais plural e diversificado, como passar da multiculturalidade à interculturalidade? Não basta a simples convivência pacífica, é preciso avançar para a troca viva e ativa dos saberes, o que exige abertura ao novo e diferente, além do reconhecimento da alteridade. Esse é o único caminho que pode conduzir a um enriquecimento recíproco.

Reside aqui a diferença entre gueto e comunidade. O primeiro tende a fechar-se sobre si mesmo, isola-se do ambiente em que vive, cria uma fronteira entre os “nossos” e os “outros”. Com o tempo, gera tensões, conflitos e hostilidades de ambos os lados. A comunidade, ao contrário, tende por natureza a manter-se sempre aberta aos recém-chegados. Cria e cultiva um espaço pluricultural, multiétnico, onde todos podem se sentir em casa. Formar “casas”, aliás, é a proposta do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Alfredo Gonçalves - Há anos, num cartaz da própria Semana do Migrante, lia-se a expressão “migrar ou lutar?” Hoje em dia nos damos conta que, em lugar de se contraporem, os dois termos convergem. Se é verdade que quem permanece na terra em que nasceu e na qual sepultou seus ancestrais oferece uma resistência à migração, quem parte resiste e luta de outra forma. Nega-se ao fatalismo e tenta fazer da fuga uma nova busca. Abre horizontes alternativos para um recomeço, não obstante os riscos do caminho, da fronteira de tantas travessias. Em outras palavras, ambos mantêm viva a utopia do Reino, ou de uma cidadania onde a certidão de nascimento, e não o passaporte, seja o documento mais importante para a conquista e defesa da dignidade da pessoa humana!

Fonte: IHU On-Line

Deixe uma resposta

seis + cinco =