Segundo especialistas, se greve continuar até sábado, será grande o desabastecimento no país.
Por Lígia Mesquita
O Brasil é o país que tem a maior concentração rodoviária de transporte de cargas e passageiros entre as principais economias mundiais. Segundo dados do Banco Mundial, 58% do transporte no país é feito por rodovias - contra 53% da Austrália, 50% da China, 43% da Rússia e 8% do Canadá. Os números são relativos a 2013.
A malha rodoviária é utilizada para o escoamento de 75% da produção no país, seguida da marítima (9,2%), da aérea (5,8%), da ferroviária (5,4%), da cabotagem (3%) e da hidroviária (0,7%), de acordo com a pesquisa Custos Logísticos no Brasil, da Fundação Dom Cabral.
É por isso que a greve de caminhoneiros em curso pode realmente parar o país e provocar uma enorme crise de abastecimento, segundo especialistas em transporte ouvidos pela BBC.
Quem são e o que querem os caminhoneiros que estão parando o país?
Há quatro dias, os caminhoneiros do país estão paralisados e fazendo bloqueios em rodovias em 25 Estados e no Distrito Federal. O movimento foi iniciado após sucessivos aumentos no preço do óleo diesel, que agora custa R$ 3,59 por litro.
Rodovias primeiro
Mas por que, afinal, o Brasil depende tanto do transporte rodoviário de carga e de passageiros?
Para Paulo Resende, coordenador do núcleo de Logística e Infraestrutura da Fundação Dom Cabral, os governantes brasileiros nunca priorizaram adotar outros tipos de sistema de transporte porque isso não tem impacto eleitoral.
Essa seria uma das razões, por exemplo, para que o projeto da ferrovia Norte-Sul, que cruzaria o país, nunca tenha saído do papel.
"Já viu alguém inaugurar ferrovia rapidamente pra ganhar eleição?", disse à BBC Brasil. "No Brasil, acontece o chamado fator subjetivo, que tem a ver com modelo de gestão de negócios. Os políticos e os burocratas pensam 'Eu tenho que deixar a marca do meu governo, tenho que fazer alguma coisa nova'. Aí todo mundo que entra (num governo), abandona projetos anteriores e cria um novo, que acha que é melhor. O Brasil é um país cuja estratégia é substituir o velho pelo novo, com completo abandono do velho. Você cria uma descontinuidade de projetos. Há uma questão cultural de trabalhar com curto prazo porque é compatível com a agenda eleitoral."
O consultor de trânsito Sergio Ejzenberg, mestre em transportes pela Universidade de São Paulo, diz que o Brasil chegou a esse modelo de dependência quase total de rodovias em função de décadas de decisões "desastrosas" e não tem como mudar esse quadro no curto prazo.
"Precisamos de menos ingerência política nas decisões técnicas que envolvem a logística de transportes. O Brasil tem dimensão continental e produz quantidades de commodities, tanto agrícolas quanto minerais, que precisam ser transportadas por meios razoáveis e racionais, não por apenas caminhões. É inacreditável que para levarmos soja até o porto de Santos, essa mercadoria precise ser escoada antes por rodovias", diz.
Para Mauricio Lima, sócio-executivo da consultoria em logística Ilos, o fato de basicamente dois terços das cargas serem transportadas por meio rodoviário deixa o país mais vulnerável a greves que afetem o abastecimento, como a dos caminhoneiros.
"Temos uma infraestrutura aquém das nossas necessidades, tanto de dutos - por isso falta combustível - quanto ferroviária e hidroviária", diz.
Falta estratégia
Em dez anos, o transporte toneladas úteis (TU) de carga no Brasil aumentou em 29,5%, passando de 389 milhões em 2006 para 503,8 milhões em 2016, informa o anuário de 2017 da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
O mesmo levantamento mostra que, entre 2001 e 2016, a frota de caminhões cresceu 84,3% (de 1,5 milhão para 2,6 milhões).
Da frota total que circula no Brasil, 1,09 milhão de caminhões são de empresas, 554 mil são conduzidos por caminhoneiros autônomos e 23 mil, são de cooperativas.
Descompasso
O professor Resende, da Fundação Dom Cabral, afirma que o governo federal não entende a matriz de transportes no Brasil. "A participação do sistema modal rodoviário é de mais de 75% no país, mas o governo trabalha com uma matriz de 58%, cuja logística não representa a realidade. E aí ele perde a noção da rede brasileira de abastecimento por caminhões. O governo não tem noção", fala.
Segundo o especialista, as autoridades cometem um erro ao atribuírem a greve apenas ao elemento caminhoneiro.
"A indústria passou por uma transformação e as políticas brasileiras não acompanharam a transformação. A cadeia de suprimentos não trabalha mais com grandes estoques, é quase que na hora em todos os setores. Quando você tem uma logística desse tipo, o papel do estoque é substituído pelo do transporte. Não tem estoque mais pra amortecer a demanda", diz.
Na prática, isso significa, segundo ele, que em três dias não há mais estoque para a linha de produção. E que em cinco dias já começa o desabastecimento no ponto de consumo, o varejo.
"É o que acontece com essa greve. O setor automobilístico, por exemplo, já está parando. Até o próximo sábado, pode haver um grande desabastecimento."
Para o consultor Ejzenberg, o aumento do preço do diesel também não pode ser visto, isoladamente, como o único fator responsável pela insatisfação que levou à greve. Segundo ele, a recessão que o país atravessou recentemente desencadeou uma série de problemas em relação aos fretes - sendo o principal deles a redução do número de transporte de cargas.
"Um dos principais fatores para essa greve é a falta de trabalho dos motoristas", diz. "Porque muitos caminhoneiros dependem dos fretes para continuar pagando as prestações de seus caminhões."