O resultado final é imprevisível e, ao mesmo tempo, passível de varias hipóteses.
Por Alfredo J. Gonçalves*
Na data de 4 de março de 2018, os italianos foram chamados às eleições. Tratava-se de eleger os deputados e senadores para compor, respectivamente, a Câmara e o Senado. Depois, em base aos resultados, o Presidente da República tem o encargo de dar início ao processo de escolha do primeiro ministro. A frequência às urnas demonstrou-se elevada, ao redor de 73% dos eleitores. Não será exagero afirmar que as eleições na Itália representam uma espécie de duplo termômetro diante da conjuntura mundial. Do ponto de vista político, como veremos, reflete uma tendência direitista já consolidada em outros países; em termos econômicos, implícita ou explicitamente, submete o processo eleitoral às regras férreas do mercado globalizado. Devo alertar, desde logo, que as observações dos parágrafos seguintes são preliminares, uma vez que, devido ao relativo empate das forças em jogo, prossegue o processo eleitoral em sentido amplo. O resultado final é imprevisível e, ao mesmo tempo, passível de várias hipóteses. Vejamos por etapas.
Campanha eleitoral
Três principais forças políticas disputaram o pleito. Coalisão de centro-esquerda, liderada por Matteo Renzi, secretário do Partido Democrático (PD). É o partido que manteve o poder nos últimos mandatos, tentando uma via de saída para a crise do país, com alguns resultados positivos nas áreas política e econômica. Depois, a coalisão de centro-direita, que reúne as lideranças de Matteo Salvini, partido da Lega (antiga Liga Norte), Silvio Berlusconi, partido Forza Italia, e Giorgia Meloni, partido Fratelli d’Italia (Imãos da Itália). Enfim, Movimento 5 estrelas (M5S), fundado pelo comediante Beppe Grillo, hoje liderado por Luigi de Maio, e que, embora se autodefina como um “não partido”, age como os demais.
Além dos dados econômicos, da relação com a União Europeia e dos problemas internos, podemos dizer que a “crise migratória” – como vem sendo chamada – constituiu o fiel da balança desta campanha eleitoral. O governo do PD, tendo Paolo Gentiloni como Primeiro Ministro, no último ano conseguiu reduzir em cerca de 60% o número de imigrantes que desembarcam nas costas italianas. Mas o fez a um preço no mínimo discutível, do ponto de vista dos direitos humanos e, em particular, do direito de ir e vir. Em parceria com outras nações da Europa, conseguiu estabelecer primeiro uma aliança com a Turquia, depois outra com a Líbia, no sentido de frear o fluxo de migrantes nesses dois países. O objetivo era barrar as duas linhas de chegada: a rota balcânica e a rota Mediterrânea. Em troca, a União Europeia se comprometia a disponibilizar uma determinada ajuda financeira para um suposto desenvolvimento nos lugares de origem do movimento migratório. O resultado, em ambos os casos, foi o surgimento de campos de refugiados em condições precárias e extremamente desumanas, tanto na Turquia quanto na Líbia. Sem falar do tráfico e até da venda de trabalhadores, especialmente no norte da África.
A Lega, por outro lado, com Matteo Salvini à frente, fez-se porta-voz de boa parte da população que se sentia ameaçada pelo crescimento exponencial dos migrantes. Especialmente ao Norte, vários setores viam nos recém-chegados um perigo ao emprego dos trabalhadores nacionais e à ordem pública. Aqui a linguagem não é neutra. O fenômeno da multidão que desembarcava no sul da Itália vinha classificado como “onda de invasores”, “maré negra”, “crise migratória”, “crise humanitária”, e assim por diante. Grupos radicais se levantaram contra os estrangeiros, com algumas escaramuças localizadas. Em certos casos, a população e a própria mídia associava migração a crime organizado, de modo particular no clima de terrorismo reinante em todo o velho continente. O medo representou, sem dúvida, um dos fermentos ocultos do processo eleitoral.
Quanto ao M5S, concentrou a campanha em dois focos: uma alternativa à política econômica do país, juntamente com uma nova relação com Bruxelas, vale dizer, com os dirigentes da União Europeia. Este último foco, aliás, partilhada também pela Lega. Nos discursos do Movimento, prevaleceu um populismo hoje largamente difuso, segundo o qual o povo deve participar e tomar decisões importantes. Na prática, porém, quem acaba decidindo é um grupo de iluminados, à maneira de quadros autoritários de vanguarda. Além disso, a pretendido modelo alternativo não passava de uma série de boas ideias e boas intenções, sem raízes na realidade concreta. Onde o M5S tinha sido eleito e vinha governando – Roma e Torino, para citar dois exemplos – as decisões tomadas deixavam muito a desejar em termos de eficácia. A respeito de uma maior independência diante da União Europeia, igualmente partilhada pela Lega, as palavras cheiravam muito mais a uma atitude eleitoreira, do que a uma proposta concreta.
A voz das urnas
Lendo retrospectivamente as análises prévias, os resultados das eleições em parte surpreenderam, em parte já eram esperados. A coalisão de centro-direita foi a grande vencedora, com cerca de 37% dos votos, enquanto no interior da coalisão, a Lega de Matteo Salvini obteve quase 18%. O maior vencedor como partido isolado – se queremos chamá-lo de partido – foi o M5S de Luigi di Maio, ao redor de 32% dos votos. Forte derrota sofreu a coalisão de centro-esquerda, conquistando apenas 23% dos votos, sendo que o PD não passou dos 18%, o que levou à demissão de secretário Matteo Renzi, na tarde de 5 de março. Com esses números, as cadeiras na Câmara e no Senado, deverão ficar assim distribuídas, respectivamente: coalisão centro-direita, 267 e 136; M5S, 228 e 113; coalisão centro-esquerda,118 e 59.
Cabe a pergunta: por que a queda do goveno PD? Talvez a coalisão centro-esquerda tenha insistido demais nos resultados obtidos no último mandato, mas sem o trabalho de preparar um projeto de governo em vista do futuro. Se é verdade que a economia dava sinais de recuperação, também é certo que boa parte dos italianos restavam à margem. Basta ter em conta o percentual de jovens desempregados, acima de 35%, os quais, após os estudos superiores, em grande parte buscam novas oportunidades em outros países. Depois os números positivos da economia, somente com raras exceções, chegaram ao bolso dos mais pobres. Além disso, a ligação com a União Europeia, de uma parte, e a gestão do fenômeno migratório, de outra, ao longo do tempo vinham sofrendo de não poucas ambiguidades, para não falar de contradições.
Por outro lado, os discursos do governo não traduziam o mal-estar da população. Sobrevoavam acima do cotidiano das pessoas, pela via das estatísticas, tabelas e indicadores econômicos. Como afirma um jornalista italiano, “o governo dirige-se à cabeça, mas o povo vota com o coração e a barriga”. A retórica governamental confiava nos resultados alcançados, sem dar-se conta de um crescimento cronicamente desigual, marcado por flagrantes injustiças e desequilíbrios sociais. Faltou uma análise mais cuidadosa e crítica, não apenas dos números relativos ao progresso e ao crescimento, mas sobretudo de uma frustrada distribuição de renda. Os indicadores sociais foram praticamente ignorados. A esta altura, com a luz retrospectiva das urnas, é relativamente fácil concluir que faltou um ouvido mais atento à voz das ruas.
Voz que, por outro lado, bem ou mal foi captada pela coalisão de centro-direita e pelo Movimento 5 Estrelas. Entra aqui boa dose de oportunismo temperado com o populismo em voga. O fato é que essas duas forças reproduziam nos discursos o descontentamento generalizado, seja em relação à presença crescente de imigrantes, seja em relação às carências de grande parte da população. Ambas as atitudes – oportunismo e populismo – jogaram ainda com uma dissimulada (ou verdadeira?) rebeldia em relação aos líderes da União Europeia e à manutenção da moeda única. Vale dizer que tal oposição a Bruxelas, no interior mesmo da coalizão de centro-direita, por exemplo, divide as opioniões de Matteo Salvini e Silvio Berlusconi. Tampouco é unânime nos candidatos do M5S. Em muitos casos, a polarização é notória e estridente. O certo é que, novamente bem ou mal, e com discórdias intestinas, as duas forças propunham um projeto alternativo à política econômica em curso, tanto interna quanto externa.
Projeto que, convém insistir, sofria e sofre de contornos imprecisos e mal desenhados de um ponto de vista concreto. Repetindo Donald Trump, fala-se de expatriar centenas de milhares de imigrantes irregulares, o que é juridicamente inviável, devido a acordos prévios com os países de origem e destino. Mas a instrumentalização do medo e da suposta ameaça leva a semelhante falácia. Vale o mesmo para a ideia de sair da União Europeia e da zona do euro: os exemplos do Brexit, na Grã Bretanha, e do movimento pela independência da Catalunha, na Espanha, parecem seduzir, nutrindo determinado fascínio sobre alguns setores da população. Não se levam em conta os efeitos reais de decisões que merecem maior estudo e aprofundamento. Com poucas exceções, os discursos beiram a irresponsabilidade.
E agora Mattarella?
Sergio Mattarella é o nome do atual Presidente da Itália. Num regime parlamentarista, diante do resultado das urnas, ele tem a função de viabilizar o processo de formação do governo. A tarefa seria relativamente simples se uma das forças em jogo tivesse adquirido a maioria absoluta, isto é, mais de 40% dos votos. Mas as coisas são bem diversas. Embora a coalisão de centro-direita tenha obtido a maior soma de votos e o M5S, isoladamente, tenha sido o partido mais votado, nenhuma das forças alcançou a maioria requerida para formar o governo.
Semelhante situação complica a tarefa do Presidente. Cabe-lhe, de qualquer maneira, indicar um nome que, através de acordos e alianças, consiga uma base sólida para governar com boa margem de manobra. Fala-se evidentemente do líder mais votado da coalisão vencedora, Matteo Salvini, mas o líder do Movimento 5 Estrelas, Luigi Di Maio, mais votado enquanto partido isolado, tampouco pode ser esquecido. Como combinar as duas correntes? Observadores afirmam que uma aliança entre centro-direita e M5S seja impossível, dadas as diferenças de princípios políticos e os duros embates durante a campanha. O líder da coalisão de centro-esquerda e secretário do PD, Mateo Renzi, por sua vez, ao admitir a derrota e anunciar sua demissão do cargo, sinaliza que seu partido não se presta a remendo para qualquer tipo de acordo para uma eventual governabilidade. Segundo ele, a partir de agora o PD torna-se oposição.
Caso o Presidente não leve a termo a formação do novo governo, resta a segunda opção: voltar às urnas. É justamente o que diziam as três forças no decorrer dos confrontos de campanha, cada uma alimentando a expectativa de conquistar a maioria absoluta para governar. A volta às urnas, porém, além de danosa aos cofres públicos, de certa forma banaliza o processo eleitoral como um todo. O momento atual consiste em um certo impasse e incerteza, o que tem muito a ver com a nova lei eleitoral, aprovada recentemente, com uma complexa proporcionalidade. Espanha e Alemanha passaram pelo mesmo tipo de impasse. Nos dois casos, o relativo empate nas eleições protelou por meses a formação de um governo que tivesse suficiente autoridade para assumir as rédeas do poder. Sem contar que enfraquece o tecido social e político de qualquer país.
Matteo Salvini, de sua parte, na primeira entrevista à imprensa, afirmou categoricamente: “nós estamos dispostas ao diálogo e à contribuição de todos os partidos, mas a esquadra de governo será formada pela coalisão vencedora”. Entra em cena, neste momento, um aspecto preocupante de todo o processo eleitoral: uma guinada à política de direita. E aqui amplia-se o leque destes comentários. Países como a Áustria, a Alemanha, a Polônia e em parte a França – para não falar dos Estados Unidos – trilham o mesmo itinerário. Não é à toa que a primeira líder europeia a congratular-se com Salvini foi Marine Le Pen.
O mais grave é que não se trata somente das lideranças. A população como um todo sente-se ameaçada, esquecida e desconectada em relação à complexidade da rex publica. O descrédito, a apatia e o desencanto em relação à prática política estão por toda parte. De outro lado, multiplicam-se os grupos radicais, xenofóbicos e discriminatórios, juntamente com uma onda nacionalista e protecionista que, para usar as palavras do Papa Francisco “em lugar de pontes, constrói muros”. Ainda de acordo com o Pontífice, como passar da “globalização da indiferença” à “cultura da solidariedade e da acolhida”? Em tempos de crise, de convulsão e de turbulência, emergem e costumam predominar os saltos mágicos e prestidigitadores dos oportunistas, normalmente com tonalidade populista, o que significa contra a real participação do próprio povo. Resta o desafio de navegar contra a corrente, em busca do fortalecimento da democracia real e ativa, com verdadeiros meios e canais, instrumentos e mecanismos de participação popular.