Os nossos mártires da Caminhada

CNLB Regional Sul 1

"Em Roma, no começo da Igreja, quando tombasse algum cristão, vítima dos imperadores que se tinham na conta de deuses, os irmãos na fé imediatamente resgatavam o corpo do mártir, em geral à noite, o sepultavam com todas as honras nas catacumbas, invocando-o imediatamente como santo protetor", recordam Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin, no artigo que publicamos abaixo.

Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.

Eis o artigo.

Neste ano de 2009, celebramos o 20º aniversário do martirio de uma leva de militantes cristãos da Universidade Centro Americana (UCA). São os padres Jesuítas Ignácio Ellacuria, Segundo Montes, Ignácio Martín-Baró, Amando Lopez, Juan Ramón Moreno e Joaquín López y López, e a cozinheira da residência Elza Julia Ramos, juntamente com sua filha Celina, de 15 anos. A Comunidade inteira foi chacinada pelo governo salvadorenho de maneira brutal, no dia 16 de novembro de 1989. Fazia parte ainda dessa comunidade de Jesuítas o teólogo Jon Sobrino que, por se encontrar em viagem na Tailândia, sobreviveu ao massacre.

Quando iniciamos de maneira concreta a opção pelos pobres, propugnada no Brasil e depois em toda a América Latina por Dom Hélder Câmara, recuperamos a palavra Caminhada. Embora eminentemente bíblica, perdera-se na poeira dos tempos. O Homem Jesus de Nazaré se apresentara como o Caminho, a Verdade e a Vida. Na Igreja dos primórdios, descrita nos Atos dos Apóstolos, os cristãos, especialmente durante as perseguições implacáveis que lhes infligiam os imperadores romanos, se declaravam Seguidores do Caminho, em vez de "Seguidores de Jesus Cristo" a fim de não correrem riscos desnecessários de serem presos e condenados à morte.

Nada melhor que a palavra Caminhada para expressar o que é a inserção: ir para o meio dos pobres, nas periferias dos campos e das cidades e tomar como ponto de partida para qualquer trabalho, a situação bem concreta em que se encontram os excluídos, e junto com eles, desencadear um processo de mudança, passo a passo, rumo a uma fé adulta e a uma autêntica cidadania, criando assim Comunidades Eclesiais de Base. É o novo jeito de ser Igreja, outra expressão nova, inventada pelo Cardeal Aloísio Lorscheider, para designar a base da nova Igreja e ao mesmo tempo a base da nova sociedade com que sonhamos.

Dom Pedro Casaldáliga, devotíssimo de nossos mártires, erigiu em sua diocese, o santuário dos Mártires da Caminhada. na cidade de Ribeirão Bonito, no lugar exato em que sofreu o martírio outro jesuíta, o padre Burnier, De então a esta parte, todos os que sofrem o martírio pela justiça, são os mártires da CAMINHADA ou também mártires das Comunidades Eclesiais de Base, ou da Teologia da Libertação, ou mesmo dos Movimentos Populares.

O mesmo arcebispo Dom Hélder Câmara, por ocasião do Concílio Ecumênico Vaticano II, lutou bravamente para que a Igreja, como um todo, passasse a ser, mais do que Igreja dos pobres, uma Igreja pobre. Enquanto o Concílio encerrava suas atividades na Praça São Pedro no Vaticano, em solenidade transmitida pela mídia do mundo inteiro, Dom Hélder, acompanhado de várias dezenas de bispos, foi para debaixo da terra, nas catacumbas romanas. Com os Irmãos bispos que o acompanharam, celebrou o chamado Pacto das Catacumbas. Esse gesto tinha também o significado de uma reconciliação da Igreja de hoje com a Igreja das Catacumbas, que foi também a da CAMINHADA inicial, com seus milhares de mártires. Estava Dom Hélder profetizando também que o pós-concílio para nossa Igreja Latino-americana seria igualzinha àquela, com nova leva de mártires. Ontem eram os mártires por ódio explícito à fé cristã e hoje mártires pela justiça, em prol da libertação dos irmãos..

Em seus sermões e homilias, Dom Hélder costumava se referir ao martírio como "coisa fina, mas que é para poucos, pois Deus reserva esse privilégio só para pessoas muito especiais." Dom Pedro Casaldáliga costuma dizer: "uma Comunidade que esquece seus mártires, não merece continuar existindo!" O Mestre Jesus mostrou que o ponto mais alto a que pode chegar um discípulo seu "é testemunhar o maior amor possível, dando a própria vida em favor dos outros".

Em Roma, no começo da Igreja, quando tombasse algum cristão, vítima dos imperadores que se tinham na conta de deuses, os irmãos na fé imediatamente resgatavam o corpo do mártir, em geral à noite, o sepultavam com todas as honras nas catacumbas, invocando-o imediatamente como santo protetor. A fé lhes dizia que todo mártir era santo, sem necessidade de canonização oficial por parte da Igreja, convictos que estavam, de que Jesus ainda em vida, já canonizara todos os que o imitassem dando a própria vida em favor do próximo. Não tinham nenhum escrúpulo em transformar a pedra que cobria o tumulo em pedra de altar sobre a qual celebravam a missa. Até o Vaticano II, portanto durante 20 séculos, não se podia rezar missa sem ter a chamada pedra "ara" (de altar) dentro da qual tinha que haver uma relíquia de mártir.

O que é de todo estranho em nossa Igreja Católica de hoje, é que não tenhamos nenhum mártir da teologia da libertação reconhecido oficialmente como santo, pela cúpula da Igreja. O direito canônico continua dizendo que só há martírio, com direito a canonização imediata, quando a morte foi infligida por explícito ódio à fé. Ora, não raro, quem mata nossos irmãos mártires da caminhada, são governos, militares, ou pessoas que até fazem questão de se afirmar como cristãos. Nada estranho que isso aconteça, porque o próprio Senhor Jesus Cristo nos preveniu quando disse: "Haverá pessoas que vos hão de matar pensando fazer um bem."

Acontece que o martírio pela Justiça está exaltado em todas as páginas da Bíblia. Por isso, nosso bispo Casaldáliga, sem escrúpulo nenhum, costuma chamar o bispo Romero, mártir centro-americano, de San Romero de América. E como Roma se nega até hoje em canonizar os mártires da Caminhada, nosso bispo-profeta, na Agenda Latino-Americana com edição anual, no calendário de cada dia, não faz preceder a nenhum nome o designativo são ou santo.

Já que estamos falando em mártires da Caminhada, ou mártires da Libertação, ou mártires pela Justiça, nossa Igreja que está no Rio Grande do Sul, nesse ano quatrocentão do início das Missões Jesuíticas, está com uma dívida para com o povo guarani e para com os pobres do Rio Grande do Sul. A consciência popular, tanto dos índios quanto do povão, canonizou Sepé Tiaraju, logo que foi abatido pelas armas assassinas dos exércitos de Espanha e Portugal no ano de 1756. Assim como Santo Estevão foi o protomártir cristão, São Sepé é o nosso protomártir pela Justiça, lutando bravamente em prol de Justiça e Paz para seus irmãos guarani. Nossos movimentos populares que lutam por Terra, Saúde, Habitação, Educação, de há muito viram em São Sepé, o mártir por excelência a indicar o caminho das transformações sociais de que todos estamos necessitados. Ele é "nosso Facho de Luz" como bem significa a palavra Sepé.

Na falta de beatificação ou canonização oficial de nossos mártires da Caminhada, por parte do Vaticano, corretíssimo está nosso bispo-profeta Dom Pedro Casaldáliga quando, todos os anos nos fornece sua "Agenda Latino-Americana" aonde no calendário de todos os dias nos fornece o nome dos santos, tanto dos antigos quanto dos da Caminhada. Na frente de todos nenhum adjetivo. Nem são, nem santo, a fim de marcar absoluta igualdade em santidade. Por exemplo, no dia 15 de dezembro, lá está: Valeriano e em 1975, Daniel Bombara, membro da JUC, mártir dos universitários comprometidos com os pobres da Argentina. Hoje, dia 16 de dezembro: Adelaide e em 1984, Eloy Ferreira da Silva, líder sindical, São Francisco, Minas Gerais. Em 1991, indígenas mártires do Cauca, Colômbia.

 

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