Trabalho escravo: a violação dos direitos e da dignidade humana

Dirceu Benincá * e Antônio Alves de Almeida **

Trabalho escravo é atentado contra o que o ser humano tem de mais precioso: a dignidade.

"Os homens, pervertendo a igualdade da natureza, a distinguiram com dois nomes tão opostos, como são os de senhor e de escravo" (Padre Antônio Vieira).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, em seu artigo 4º afirma: "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas". No Brasil, esta chaga social perdurou oficialmente por mais de três séculos, sendo abolida pela Lei Áurea (13/05/1888) que, no parágrafo 1º, determinava: "É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil". Na prática, ela persiste ainda hoje em diferentes atividades urbanas e rurais.

Em nível mundial, a quantidade de pessoas que seguem vivendo nessa situação é elevada. Kevin Bales, no livro Gente descartável: a nova escravatura na economia global (2001:18), diz que a escravidão é um negócio sombrio e ilegal. Por isso, é difícil obter estatísticas exatas. Ele estima que o número de escravos no mundo esteja em torno de 27 milhões, com maior concentração na Índia, Paquistão, Bangladesh e Nepal. Além dos países subdesenvolvidos e "emergentes", o trabalho escravo está presente nos desenvolvidos como França, Inglaterra, Estados Unidos, entre outros.

A outra face do progresso
Em vários países da América Latina, a exemplo da Colômbia, Bolívia e Brasil, o trabalho escravo mantém traços antigos e agrega elementos novos, muitas vezes convivendo ao lado de tecnologias de ponta. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em nosso país há no mínimo 25 mil pessoas nessas condições. Porém, é provável que esse número seja superior, dado que a cada dia surgem novas denúncias e nem todas chegam a ser averiguadas pelos órgãos responsáveis.

A super exploração e o trabalho escravo são recursos perversos utilizados para ampliar os lucros dos capitalistas. Falando sobre o problema, frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma: "Nesse último ano tivemos a surpresa de encontrar situações de trabalho escravo no Sul e Sudeste do país, que chegam a cerca de 10% dos libertados. Praticamente não existe nenhum estado brasileiro que tenha escapado disso" (entrevista em 31/12/2008).

Na cidade de São Paulo, há trabalho escravo na confecção de roupas. Em sua grande maioria, são bolivianos aliciados pelo "coiote" ou "gato", que imigraram ilegalmente para fugir da miséria. Aqui, são explorados e escravizados por empresários ou muitas vezes pelos próprios bolivianos que se encontram em situação legal. Em outras regiões do Brasil, essa realidade se verifica no desmatamento, na limpeza de pasto e plantio de capim, na pecuária, nas carvoarias, no reflorestamento, nas culturas da cana-de-açúcar, tomate, café, algodão, banana, soja etc.

O setor sucroalcooleiro - sobretudo no estado paulista - é o responsável pelo maior número de pessoas nessa condição (Cf. Caderno Conflitos no Campo, 2007:125). As vítimas são homens, mulheres e crianças, sendo a maioria, homens adultos. Geralmente são migrantes pobres e analfabetos ou com pouca escolaridade, iludidos por promessas de uma vida melhor através do trabalho na cana. Sequer imaginam que são presas fáceis dos usineiros, e tornam-se "peças" do sistema, à semelhança do que ocorria no tempo colonial.

Vigiados pelo feitor (fiscal da usina), os cortadores de cana não podem parar de produzir. Esta é a ordem! Em consequência do trabalho extenuante, são acometidos de câimbras, vômitos, tonturas, dores de cabeça, na coluna etc. Com frequência, aparecem feridas no corpo, provocadas pelo suor mesclado à fuligem. De acordo com o Procurador do Trabalho em Campinas, SP, Dimas da Silva, "todo o trabalho na cana é degradante. Nós entendemos que não é nem trabalho para ser humano de tão ruim que ele é" (entrevista em 09/02/2009).

Para as mulheres, a situação é ainda pior. Elas sofrem também com a ausência ou a precariedade de instalações sanitárias, a exigência de alta produção e os baixíssimos salários. Algumas, inclusive, mesmo grávidas são obrigadas a trabalhar. Devido à intensidade de esforço físico, ocorrem mortes por exaustão, "a morte cansada", durante o trabalho. No período de abril de 2004 a julho de 2008, a Pastoral do Migrante de Guariba, SP, contabilizou a morte de 21 trabalhadores/as empregados nas usinas do interior paulista.

Novos abolicionistas
Entendemos por novos abolicionistas as organizações, entidades, organismos e sujeitos da sociedade civil e do Estado que lutam pela erradicação do trabalho escravo e da violação da dignidade humana. Entre esses abolicionistas, estão agentes da CPT e do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Para tanto, se guiam e se apóiam nas orientações da Bíblia, da Doutrina Social da Igreja, das Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Constituição Federal, entre outros.

Para frei Xavier Plassat, "trabalho escravo é atentado contra o que cada ser humano tem de mais precioso e inviolável: a sua dignidade. Ao degradar este bem universal em qualquer pessoa, reduzida ao estado de coisa usável e abusável e finalmente descartável, o trabalho escravo atinge e corrói o cerne do direito essencial que faz de nós humanos". Segundo ele, a dignidade tem que ser o primeiro e principal princípio, acima da produtividade, do lucro e do direito à propriedade (entrevista em 10/07/2007). No combate a esta chaga social, a atuação do SPM dá-se, sobremaneira, na cultura canavieira em vários estados do Brasil. Seus membros agem de diversas formas, orientando e conscientizando os trabalhadores sobre os sérios problemas que poderão enfrentar ao migrarem em busca de trabalho. Fazem denúncias aos organismos governamentais para que contenham a ação dos escravagistas. Ao mesmo tempo, orientam as vítimas a resistirem, se organizarem e lutarem pelos seus direitos. De forma articulada, CPT e SPM buscam combater a precarização do trabalho onde quer que ela aconteça.

De acordo com Bertolt Brecht, "o que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está". E não pode ficar porque fere a dignidade e os direitos humanos. O trabalho e o trabalhador só deixarão de ser tratados como mercadorias quando o ser humano não for mais visto como uma peça na engrenagem do sistema capitalista; quando o trabalho garantir condições para satisfazer as necessidades básicas de "pão" e "poesia". Tratado como mercadoria, o trabalho se descaracteriza em sua essência, subtraindo a dignidade de quem o realiza.

Na complexidade do mundo do trabalho, importa fortalecer as formas solidárias, éticas e justas de trabalhar. Não basta buscar uma alternativa dentro da economia de mercado; é necessária uma alternativa ao mercado capitalista. Nesse sentido, é significativo o conceito de trabalho decente, formalizado pela OIT em 1999. Ele aponta a necessidade da melhoria da qualidade do emprego, com remuneração justa, amparada pelas leis trabalhistas, que permita uma vida digna. Significa que o trabalho não pode ser uma mercadoria que se compra e vende, nem uma alienação, mas um ato criativo, de prazer e realização humana.

* Dirceu Benincá é doutorando em Ciências Sociais.
** Antônio Alves de Almeida é doutorando em História, ambos pela PUC/SP.

Publicado na edição Nº10 - dezembro 2009 - Revista Missões.

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