2017, o ano que não deveria ter existido

O Brasil ter­mina o ano com a cara no chão. De­so­lado, fra­tu­rado, re­pleto de res­sen­ti­mentos e sem ne­nhuma pers­pec­tiva para o pró­ximo pe­ríodo.

Por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania

O Brasil ter­mina o ano com a cara no chão. De­so­lado, fra­tu­rado, re­pleto de res­sen­ti­mentos e sem ne­nhuma pers­pec­tiva para o pró­ximo pe­ríodo. Na en­tre­vista que en­cerra o ano, o Cor­reio da Ci­da­dania con­versou com o so­ció­logo do tra­balho Ri­cardo An­tunes, pro­fessor e pes­qui­sador da Uni­camp. Para de­finir o mo­mento, ele atu­a­liza o con­ceito da “con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva”, alusão ao golpe mi­litar de 1964 e que ocorre em es­cala global, ainda que não vi­vamos uma era re­vo­lu­ci­o­nária.

“Uma der­rota pro­funda dos mo­vi­mentos po­pu­lares, so­ciais, dos par­tidos de es­querda, dos tra­ba­lha­dores e até da luta de­mo­crá­tica. Vi­vemos no Brasil de hoje um ‘Es­tado de Di­reito de Ex­ceção’. E isso sig­ni­fica que a jus­tiça bur­guesa é co­ni­vente com tal es­tado e o apa­rato re­pres­sivo usado vi­o­len­ta­mente”, re­sumiu.

Ainda que não haja mal que dure pra sempre, não será fácil criar as ar­ti­cu­la­ções ne­ces­sá­rias contra o re­fe­rido “es­tado de ex­ceção per­ma­nente” que se de­senha, onde se re­forçam, no caso bra­si­leiro, a “po­li­ti­zação do ju­di­ciário e a ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica”.

Mesmo porque, nas fi­leiras que po­de­riam li­derar as pautas fa­vo­rá­veis à po­pu­lação que vive do tra­balho, o pe­le­guismo das cen­trais sin­di­cais atinge pa­ta­mares ina­cre­di­tá­veis, como no­va­mente se viu na greve que não houve neste co­meço de de­zembro.

“Lula in­siste que para go­vernar o Brasil deve-se aliar a deus e ao diabo na terra do sal. Ob­vi­a­mente, isso des­le­gi­timou o PT. Per­guntam: ‘mas por que o Lula tem tanta in­tenção de voto?’ Porque a po­pu­lação sabe que entre os equí­vocos co­me­tidos pelo PT e a de­vas­tação so­cial do Temer há al­guma di­fe­rença. Há uma di­fe­rença na des­mon­tagem mais ‘suave’ e a bru­ta­li­dade da de­vas­tação de Temer”, ex­plicou.

O quadro é du­rís­simo e as mar­cadas di­vi­sões so­ciais vol­taram com força total, como de­mons­traram os con­ser­va­dores e sua con­si­de­rável má fé em re­lação à ideia de cor­rupção.

“Ca­mi­nhamos ce­le­re­mente para uma ‘in­di­a­ni­zação’ do país. Vamos nos tornar um país com a mi­séria do ta­manho da Índia, que é brutal e com­bina um sis­tema per­verso de castas e classes, ex­plo­ração, su­pe­rex­plo­ração, es­po­li­ação, na­tu­ra­li­zando a mi­séria de cen­tenas de mi­lhões de pes­soas, tra­tadas de forma in­fe­rior... Vemos coisas assim e o que dizem as classes mé­dias con­ser­va­doras? ‘Tirem os po­bres do meu portão’”, afirmou.

ricardoantunessociologoA en­tre­vista com­pleta com Ri­cardo An­tunes pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como re­sumir o Brasil de 2017 em suas prin­ci­pais es­feras?

Ri­cardo An­tunes: Foi o ano que talvez não de­veria ter exis­tido. Vi­vemos uma re­gressão de tal in­ten­si­dade que não é ab­surdo fazer pa­ra­lelo com a di­ta­dura e o golpe de 1964. Claro que o con­texto e o ca­pi­ta­lismo são di­fe­rentes, assim como as lutas so­ciais, a his­tória e con­jun­tura, mas é pos­sível lem­brar, como dizia Flo­restan Fer­nandes, e tenho usado muito tal ideia, da “con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva” no Brasil, mesmo sem haver risco de re­vo­lução.

2017 con­so­lidou a con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva dada pelos con­juntos dos ca­pi­tais, suas ra­mi­fi­ca­ções fi­nan­ceira, ban­cária, co­mer­cial, de ser­viços, agroin­dús­tria, pelas cor­po­ra­ções em geral. En­con­traram na con­trar­re­vo­lução com Temer a pos­si­bi­li­dade de ex­tin­guir o ciclo de con­ci­li­ação de classes, po­si­tivo aos ca­pi­tais por longo pe­ríodo, em es­pe­cial nos dois pri­meiros go­vernos Lula e parte do pri­meiro go­verno Dilma.

Mas a partir de 2013-14 e o avanço da crise econô­mica nos países da pe­ri­feria, mesmo que os in­ter­me­diá­rios como Rússia, Índia, África do Sul, Mé­xico, Brasil, so­fremos as con­sequên­cias mais pro­fundas da crise econô­mica que havia avas­sa­lado o centro do sis­tema ca­pi­ta­lista. O re­sul­tado foi de­ci­sivo para tais fra­ções das classes do­mi­nantes, pri­meiro, de­fi­nirem que, como sempre, o ônus seria jo­gado em cima dos om­bros da classe tra­ba­lha­dora. De modo que agora li­damos com a con­tenção de gastos em saúde, edu­cação, pre­vi­dência, fle­xi­bi­li­zação e cor­rosão da le­gis­lação do tra­balho, com a ter­cei­ri­zação total e a nova le­gis­lação tra­ba­lhista que não fez outra coisa senão le­ga­lizar todas as burlas que o em­pre­sa­riado ten­tava em­placar sobre a CLT. Basta ler nos textos da nova lei como se tenta, pa­rá­grafo por pa­rá­grafo, des­man­telar o que está es­crito na CLT. Assim, num con­texto de crise pro­funda, in­te­res­sava pri­meiro impor o ne­go­ciado sobre o le­gis­lado, per­dendo o pa­tamar mí­nimo de di­reito tra­ba­lhista. Com isso, a por­teira ficou aberta e ani­mais de todo tipo vão passar, como disse um juiz do tra­balho.

Em se­gundo lugar, o de­creto que des­ver­tebra a CLT in­troduz o ele­mento mais ne­fasto do ca­pi­ta­lismo de hoje, o in­cen­tivo ao tra­balho in­ter­mi­tente. Pas­sa­remos a ter uma classe tra­ba­lha­dora dis­po­nível para o tra­balho o tempo todo, a re­ceber quando tra­ba­lhar e pe­recer quando não o fizer. A ex­pe­ri­ência do zero hour con­tract na In­gla­terra já de­monstra isso. O em­pre­gador não é obri­gado a chamar o em­pre­gado, e este não é obri­gado a atender a even­tual cha­mada. Uma vez que atendeu, re­cebe apenas por aquele tra­balho es­pe­cí­fico. O exemplo do Uber, em ex­pansão, é a ten­dência em am­pli­ação.

Como estou tra­ba­lhando no meu pró­ximo livro, que tem como tí­tulo “O Pri­vi­légio da Ser­vidão”, isso é o que está se cri­ando em es­cala global: se os tra­ba­lha­dores jo­vens ti­verem sorte, no fu­turo ime­diato, serão servos. In­ter­mi­tentes, in­for­mais, pre­ca­ri­zados, numa mi­ríade de tra­ba­lhos que as­sumem a forma de “autô­nomos” e “in­de­pen­dentes” para, na ver­dade, mas­carar os tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados que de fato são.

E o de­creto do Temer ainda tem em­bu­tida a de­ses­tru­tu­ração e, no li­mite, a eli­mi­nação da Jus­tiça do Tra­balho no Brasil. É de as­sustar, porque a Jus­tiça do Tra­balho foi criada por Vargas no Brasil para in­cen­tivar a con­ci­li­ação de classes, e a con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva do go­verno Temer está em sin­tonia com a agenda de im­po­sição dos grandes ca­pi­tais (afinal, é um go­verno ter­cei­ri­zado, um gen­darme, fan­toche obe­di­ente aos grandes ca­pi­tais que movem seus fios) para acabar com a po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que o go­verno Temer e o Con­gresso que o acom­panha em ideias e prá­ticas re­pre­sentam, de fato, em termos es­tru­tu­rais?

Ri­cardo An­tunes: É pre­ciso re­co­nhecer a qua­li­dade po­lí­tica que Temer de­monstra. Ele con­se­guiu con­so­lidar uma mai­oria par­la­mentar, na ex­pressão mais pan­ta­nosa da his­tória deste par­la­mento, de onde o pró­prio é cria e, por­tanto, nada muito bem nas águas deste pân­tano. Mais que isso: con­se­guiu al­terar a seu favor peças im­por­tantes no Su­premo, fun­da­mental para dar-lhe margem de ma­nobra ju­rí­dica no plano má­ximo pos­sível. E con­se­guiu in­clu­sive al­terar o co­mando da Po­lícia Fe­deral, o que mostra ca­pa­ci­dade po­lí­tica. “faço o que vocês (os ca­pi­tais) mandam, mas pre­ciso de apoio do le­gis­la­tivo e do ju­di­ciário, além do apa­rato re­pres­sivo”. E con­se­guiu, como vimos ao se li­vrar de dois pro­cessos de im­pe­a­ch­ment, a ponto de seu atual mi­nistro tentar de­nun­ciar cri­mi­nal­mente o Janot. Vejam a que ponto se chegou.

Por­tanto, 2017 é o ano que não de­veria ter exis­tido. Uma der­rota pro­funda dos mo­vi­mentos po­pu­lares, so­ciais, dos par­tidos de es­querda, dos tra­ba­lha­dores e até da luta de­mo­crá­tica. Vi­vemos no Brasil de hoje um “Es­tado de Di­reito de Ex­ceção”. E isso sig­ni­fica que a jus­tiça bur­guesa é co­ni­vente com tal es­tado e o apa­rato re­pres­sivo usado vi­o­len­ta­mente.

Nesses dias vimos na Ar­gen­tina uma vi­o­lenta re­pressão do apa­rato re­pres­sivo ar­gen­tino, contra mo­vi­mentos sin­di­cais, ope­rá­rios etc. que lutam contra as “re­formas” si­mi­lares às do go­verno Temer.

Cor­reio da Ci­da­dania: Por que o dis­curso e os pro­testos contra a cor­rupção de­sa­pa­re­ceram, a seu ver?

Ri­cardo An­tunes: Aquilo foi fun­da­men­tal­mente um álibi para, di­gamos, des­ti­tuir o go­verno do PT. As classes mé­dias con­ser­va­doras, as do­mi­nantes e em par­ti­cular os apa­ratos mi­diá­ticos que jo­garam todo seu peso no golpe que levou à de­po­sição da Dilma sa­biam que o PT tinha co­me­tido um erro que, ao nascer, dizia que iria com­bater. Com todas as suas li­mi­ta­ções que sa­bemos, sua pro­posta vi­sava a com­bater a cor­rupção e esse era um dos traços dis­tin­tivos que o PT dizia ter em re­lação aos cha­mados par­tidos da ordem.

Com o men­salão e a con­so­li­dação de afi­ni­dades ele­tivas e pe­ri­gosas com o grande em­pre­sa­riado, em es­pe­cial da cons­trução civil, se evi­den­ciou que o PT caíra na vala comum, onde o PMDB do­mina e o PSDB, DEM e ou­tros deste ter­reno pan­ta­noso sempre do­mi­naram. De 2003 a 2015-16, em li­nhas ge­rais, ao longo dos go­vernos Lula e Dilma, era o PT quem tinha o con­trole do butim. Era quem fazia a dis­tri­buição aos par­tidos da base aliada, ima­gi­nando que po­deria co­mandar e ter he­ge­monia no pro­cesso de dis­tri­buição das verbas pú­blicas para ga­rantir seu pro­jeto po­lí­tico. O PT foi fa­go­ci­tado porque, pri­meiro, não tem ou tinha ideia da força dos par­tidos de di­reita que há dé­cadas pra­ticam a cor­rupção. O PMDB mos­trou: em meio à Lava Jato sim­ples­mente tur­binou e au­mentou o ritmo da cor­rupção, como vimos no pro­cesso da JBS e da apa­rição do Ro­drigo Rocha Loures e suas malas de di­nheiro.

O se­gundo ponto: as classes mé­dias con­ser­va­doras foram im­pul­si­o­nadas pela mídia. Não tem como não lem­brar da Globo elo­gi­ando as ma­ni­fes­ta­ções e con­vi­dando as pes­soas a irem em massa. A grande im­prensa jogou pe­sado nas ma­ni­fes­ta­ções. E as classes mé­dias têm uma du­pli­ci­dade: de um lado, a ig­no­rância dos que acham que a cor­rupção co­meçou outro dia com o PT e que ao acabar com o go­verno deste par­tido es­taria tudo bem. De outro lado, a má fé de quem tem a per­cepção da cor­rupção ser mar­cante na his­tória bra­si­leira e, mais que isso, deve ser ex­clu­si­vi­dade e ter­ri­tório das di­reitas e “cen­trões”.

Assim, era o mo­mento de dizer “a cor­rupção é nossa, das di­reitas, o PT é es­tranho no ninho e deve pagar por isso”. Quem in­ge­nu­a­mente acre­ditou que o fim do PT era o fim da cor­rupção, está bo­qui­a­berto. As classes mé­dias con­ser­va­doras e ide­o­lo­gi­ca­mente agres­sivas falam numa boa: “me­lhor o Temer fazer a de­vas­tação dos di­reitos co­le­tivos e so­ciais do que o PT”. Porque pelo menos a cor­rupção se mantém entre os de sempre, mas os di­reitos so­ciais estão sendo de­vas­tados e é isso que para estes se­tores con­ser­va­dores efe­ti­va­mente im­porta.

E che­gamos ao ter­ceiro ponto: falta agora o des­monte e cor­rosão da pre­vi­dência pú­blica. Pasmem, o Brasil faz o ca­minho do Chile, que já pri­va­tizou sua pre­vi­dência e de fato ex­tin­guiu uma pre­vi­dência so­cial se­gura e pú­blica. E agora pre­cisa re­pu­bli­cizá-la. Porque pre­vi­dência pri­vada é sinal de ca­lote. A po­pu­lação pobre, diga-se, porque os ricos são muito “pre­vi­dentes”, têm in­ves­ti­mentos, casas, grandes ações, re­cursos pa­tri­mo­niais e fora do país in­cal­cu­lá­veis, enfim, não têm nem mais onde guardar di­nheiro, não pre­cisam de pre­vi­dência.

O que acon­teceu no Chile? Os po­bres pou­param por 30 ou 40 anos na pre­vi­dência pri­vada e quando foram re­correr a ela es­tava fa­lida, dei­xando-os sem nada. Sem falar no roubo da Pe­tro­bras, da Ele­tro­bras, a pri­va­ti­zação de tudo da Res-pu­blica, tanto ao ca­pi­ta­lismo oci­dental como ori­ental. A China compra tudo que pode, daqui a pouco isso aqui vai ser uma colônia chi­nesa, de tanto que este ca­pital entra aqui e dis­puta todo o butim com os de­mais grandes ca­pi­tais es­tran­geiros.

Cor­reio da Ci­da­dania: Do lado da­queles que foram ape­ados do poder e se dizem de es­querda, o que você co­menta?

Ri­cardo An­tunes: Vou tentar res­ponder por meio de dois pontos. Pri­meiro, a cú­pula do PT e de­pois as ações de re­sis­tência.

No pri­meiro caso, não dei­xando de re­co­nhecer que há uma dis­sensão grande no in­te­rior do PT, como li­de­ranças im­por­tantes no RS, a exemplo de Tarso Genro e Olívio Dutra, dentre muitos ou­tros, ainda que com di­fe­renças. Eles já ma­ni­fes­taram cla­ra­mente a ne­ces­si­dade de a di­reção do par­tido pagar pelos erros co­me­tidos. Dis­seram até na TV que não era para aquilo que tantos mi­lhares de mi­li­tantes cri­aram o PT. Tarso chegou a su­gerir que fal­tava le­gi­ti­mi­dade à di­reção do PT.

De todo modo, o mais as­sus­tador é Lula não fazer uma au­to­crí­tica. Em mo­mento algum re­co­nhece que se tentou con­ci­liar o in­con­ci­liável, que de­veria ser muito mais duro com os ca­pi­tais... Pelo con­trário, faz o mesmo! Até vimos re­cen­te­mente a ideia de se con­vidar o filho do José de Alencar para re­e­ditar a ali­ança po­li­clas­sista que, de mais a mais, pode levar o pró­prio Lula ao cár­cere. A ideia não deu certo apa­ren­te­mente, mas de­pois apa­receu como pos­si­bi­li­dade o nome do Luís Carlos Tra­buco, cujo nome já seria su­fi­ci­ente pra ex­plicar o que viria. E só não tenta o Mei­relles porque este agora está no outro bloco. Se pu­desse, Lula rein­ven­taria o “tra­buco do Mei­relles”.

Qual o mí­nimo, só o mí­nimo, de au­to­crí­tica? Nada. Lula in­siste que para go­vernar o Brasil deve-se aliar a deus e ao diabo na terra do sal. Ob­vi­a­mente, isso des­le­gi­timou o PT. Per­guntam: “mas por que o Lula tem tanta in­tenção de voto?” Porque a po­pu­lação sabe que entre os equí­vocos co­me­tidos pelo PT e a de­vas­tação so­cial do Temer há al­guma di­fe­rença. Só um tosco diria que não há di­fe­rença al­guma. Aliás, foi por isso que a Dilma caiu. Tomou uma série de me­didas duras de ajuste, mas seria im­pos­sível ela levar adi­ante a ter­cei­ri­zação total, ar­re­bentar a CLT, matar a pre­vi­dência e con­gelar a cor­reção mí­nima de in­ves­ti­mentos pú­blicos por 20 anos. A edu­cação e a saúde já es­tavam na UTI, mas agora estão a ca­minho do in­ferno. As bases pe­tistas e sin­di­cais não per­mi­ti­riam essa de­vas­tação co­man­dada por um go­verno do PT. Há uma di­fe­rença na des­mon­tagem mais “suave” e a bru­ta­li­dade da de­vas­tação de Temer.

Uma des­truição é lenta, outra tem a má­xima in­ten­si­dade. Mas é im­por­tante re­cordar que a pri­meira ten­ta­tiva de im­plantar o ne­go­ciado pelo le­gis­lado foi pro­posta pelo Sin­di­cato dos Me­ta­lúr­gicos no go­verno Lula. Muitos cri­ti­caram, a ponto de se abortar a me­dida. Ima­gi­nava-se uma ilha sin­dical avan­çada num país so­ci­al­mente des­tro­çado.

É com­pli­cado en­tender por que não há re­ação agora. Há uma taxa al­tís­sima de de­sem­prego. Se pe­garmos a massa real de de­sem­prego (in­cluindo o su­bem­prego e o de­sem­prego por de­sa­lento) temos pra­ti­ca­mente 30 mi­lhões de pes­soas que vi­ven­ciam tais con­di­ções. Os as­sa­la­ri­ados per­cebem o risco que correm se fi­zerem greves, tornam-se can­di­dato nú­mero 1 ao de­sem­prego.

Há toda uma ma­ni­pu­lação da mídia co­mer­cial de que o país cresce 1%, o que na ver­dade é pífio e pro­va­vel­mente tem muito mais co­ne­xões com o re­ce­bi­mento do FGTS meses atrás, per­mi­tindo a uma parte da po­pu­lação pagar dí­vidas, con­sumir um pouco mais, voltar a com­prar um frango por se­mana, do que com a re­to­mada da eco­nomia. Não se re­toma eco­nomia com juros altos, re­tração do Es­tado e de­vas­tação ge­ne­ra­li­zada. Não passa de mito per­ver­tido dizer que acabar com a le­gis­lação do tra­balho gera em­pregos. O que cria em­prego não é a fle­xi­bi­li­dade do tra­balho, senão nem ha­veria de­sem­prego nos EUA e In­gla­terra, já que lá a fle­xi­bi­li­dade é ampla. O que cria em­prego é o mo­vi­mento da eco­nomia, e isso tem a ver com ce­nário in­ter­na­ci­onal, com a im­pulsão maior ou menor do Es­tado nos se­tores que puxam a pro­dução.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como grande es­tu­dioso do mundo do tra­balho e sin­dical, o que você co­menta das cen­trais sin­di­cais bra­si­leiras e suas de­ci­sões, in­clu­sive de can­celar a greve re­cente?

Ri­cardo An­tunes: Para os tra­ba­lha­dores, o mo­vi­mento de greve tem de ter uma ação forte dos sin­di­catos, dos mo­vi­mentos so­ciais (como o MTST, que é nosso mo­vi­mento mais or­ga­ni­zado e im­por­tante, como vemos no im­por­tante acam­pa­mento com cerca de 8000 fa­mí­lias em São Ber­nardo e cuja vi­tória é im­por­tan­tís­sima para a am­pli­ação deste mo­vi­mento e das lutas so­ciais e po­lí­ticas no Brasil hoje). Em re­lação à greve, se não há en­ga­ja­mento das cen­trais sin­di­cais fica di­fícil fazer uma pa­ra­li­sação forte.

A pa­ra­li­sação de­veria ter sido con­fir­mada, como uma ação ini­cial para ir pre­pa­rando uma pa­ra­li­sação mais forte ainda. Com as áreas mais or­ga­ni­zadas sin­di­cal­mente fa­zendo uma ação de pa­ra­li­sação, criam-se es­paços de de­bate para mos­trar porque mesmo uma pa­ra­li­sação par­cial é im­por­tante para der­rubar me­didas de­vas­ta­doras. Po­deria se ex­plicar que sob a capa da di­mi­nuição de pri­vi­lé­gios estão na ver­dade per­pe­tu­ando-os, na me­dida em que um alto nível de ca­lote do em­pre­sa­riado não é co­brado. Que a dí­vida pú­blica real de­corre dos juros pagos aos bancos. Que, uma vez apro­vada a re­forma de pre­vi­dência pri­va­tista e pró-bancos e fundos pri­vados de pensão, com a re­forma tra­ba­lhista in­cen­ti­vando tra­ba­lhos in­ter­mi­tentes, onde a ar­re­ca­dação do tra­balho as­sa­la­riado vai di­mi­nuir muito e, tudo isso tor­nará a pre­vi­dência menos vo­lu­mosa em termo de re­cursos, e sobre a sua pri­va­ti­zação, que é pro­fun­da­mente ne­fasta em todos os sen­tidos.

Hoje, a ar­re­ca­dação sobre os as­sa­la­ri­ados é grande, o que falta é ar­re­cadar dos altos e mais ricos es­tratos so­ciais, além de tri­butar os grandes ca­pi­tais e lu­cros, a he­rança, os ga­nhos dos bancos etc. Algo se­quer tra­tado nos go­vernos do PT. Não houve tri­bu­tação do ca­pital fi­nan­ceiro, das he­ranças, longe disso, em muitas oca­siões foram di­mi­nuídos os im­postos do grande em­pre­sa­riado pra gerar mais em­prego. Mas fazer isso, por exemplo, em re­lação à in­dús­tria au­to­mo­bi­lís­tica existe con­tra­par­tida: ao mesmo tempo em que (po­si­ti­va­mente) se gera em­prego, polui-se mais, in­cen­tiva-se a in­dús­tria de trans­porte e re­duzem-se re­cursos ex­traídos da tri­bu­tação para saúde, pre­vi­dência e edu­cação pú­blicas.

A po­pu­lação olha e diz: se eu lutar, sem apoio efe­tivo dos sin­di­catos e cen­trais que têm pre­sença co­loco minha ca­beça a prêmio e ela será cor­tada. A per­gunta é: por que as grandes cen­trais não querem fazer isso? Al­gumas cen­trais são di­re­ta­mente ape­le­gadas, ne­go­ciam com Temer desde o co­meço. Ou­tras são he­si­tantes. Veem suas bases di­mi­nuir, perdem es­paço... E ou­tras têm as di­fi­cul­dades na­tu­rais por serem mi­no­ri­tá­rias.

É pre­ciso dizer ainda que a Re­forma Tra­ba­lhista con­templa o fim do im­posto sin­dical. Em tese, eu sempre fui a favor disso. Mas não se pode acabar com tal im­posto no mo­mento em que os sin­di­catos vivem um des­mo­ro­na­mento, dado que suas bases as­sa­la­ri­adas di­mi­nuem há tempos. Por­tanto, para ga­rantir o im­posto sin­dical, ou um novo me­ca­nismo de ar­re­ca­dação, tais cen­trais que con­vivem his­to­ri­ca­mente com o pe­le­guismo usam a greve como pre­texto. Aí apa­rece o Temer com suas mãos pu­lu­lantes, acena com esse agrado e as greves sobem no te­lhado...

Há sin­di­catos e mo­vi­mentos sin­di­cais im­por­tantes, cen­trais que não en­tram na con­ci­li­ação, há até sin­di­catos li­gados à CUT in­sa­tis­feitos com a de­vas­tação e con­vivem com muito des­con­ten­ta­mento das bases (quanto mais a CUT perde base, mais a Força Sin­dical e ou­tras avançam neste es­paço). Tudo isso cria uma dis­puta e a po­pu­lação sabe dis­cernir qual cen­tral luta de fato e quais usam a luta para ga­rantir o pe­le­guismo. A CON­LUTAS e a In­ter­sin­dical têm di­fi­cul­dades, pois ainda atuam par­ci­al­mente em se­tores da classe tra­ba­lha­dora e sem força para ações de maior en­ver­ga­dura. A sua apro­xi­mação com os mo­vi­mentos so­ciais po­li­ti­ca­mente mais or­ga­ni­zados torna-se vital.

Mas o ce­nário é di­fícil, ainda que não seja eterno. Es­tive na Ar­gen­tina um mês atrás, a po­pu­lação dis­cutia a re­forma do Macri e seus riscos – esse pa­la­dino da de­vas­tação no país vi­zinho. E ha­ve­remos de ter si­tu­a­ções como a desses úl­timos dias na Ar­gen­tina em mais lu­gares.

Aqui no Brasil a classe tra­ba­lha­dora e as classes po­pu­lares vivem risco imi­nente, muitos estão de­sem­pre­gados, fa­mí­lias in­teiras estão de­sem­pre­gadas. No­tamos o nú­mero de fa­mí­lias e cri­anças que mo­rando nas ruas da ci­dade... Cri­anças!

Ca­mi­nhamos ce­le­re­mente para uma “in­di­a­ni­zação” do país. Vamos nos tornar um país com a mi­séria do ta­manho da Índia, que é brutal e com­bina um sis­tema per­verso de castas e classes, ex­plo­ração, su­pe­rex­plo­ração, es­po­li­ação, na­tu­ra­li­zando a mi­séria de cen­tenas de mi­lhões de pes­soas, tra­tadas de forma in­fe­rior... Vemos coisas assim e o que dizem as classes mé­dias con­ser­va­doras? “Tirem os po­bres do meu portão”.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa do lu­lismo a essa al­tura dos acon­te­ci­mentos, con­si­de­rando que Lula tenha pos­si­bi­li­dades de par­ti­cipar da eleição de 2018?

Ri­cardo An­tunes: Talvez seja um ponto que a con­trar­re­vo­lução do Temer não tenha como evitar. Quanto mais ela avança, mais aquela po­pu­lação, mesmo aquela en­fu­re­cida com o fim dos go­vernos Lula e Dilma, vai olhar pra trás e dizer: “olha, aquilo era ruim, mas o de hoje é muito pior”. É o cal­ca­nhar de Aquiles do go­verno Temer: quanto mais se aprovam suas con­trar­re­formas, maior será o des­con­ten­ta­mento, o que por certo fa­vo­rece em al­guma me­dida a Lula.

A re­forma tra­ba­lhista, assim como as ou­tras, foi apro­vada sem de­bate. Pra des­montar a le­gis­lação pro­te­tora do tra­balho o Temer fez dis­curso de que es­tava mo­der­ni­zando, me­lho­rando, assim como na Pre­vi­dência agora, com toda a des­fa­çatez pos­sível. As pes­soas não vão con­se­guir tra­ba­lhar por 25, 30, 40 anos, pois muitos terão tra­ba­lhos in­ter­mi­tentes, e vão ter de chegar aos 120 anos pra con­se­guir se apo­sentar pela fór­mula do Temer. Isso é muito brutal, cri­mi­noso mesmo e por certo for­ta­lece o Lula.

Outra coisa: a po­pu­lação se dá conta do tra­ta­mento di­fe­ren­ciado que a Lava Jato con­cede a Lula e aos de­mais. Por exemplo: não há ne­nhuma dú­vida de que o Aécio Neves pra­ticou lobby com o em­pre­sa­riado, cor­rupto es­co­lado e pós-gra­duado e que re­cebia di­nheiro de forma di­reta. Se fossem as mesmas evi­dên­cias com o Lula, ele já es­taria na ca­deia há muito tempo. Aécio está sol­tinho da silva, como dizia minha mãe. Agora co­meçam a andar pro­cessos contra Alckmin e ou­tros, o PMDB também, mas ainda de modo muito, muito lento em com­pa­ração ao PT. Qual­quer tra­ba­lhador, que nem pre­cisa de TV em casa, sabe que o tal Rocha Loures não era chefe de qua­drilha, apenas exe­cutor.

Como diria Vi­cente Matheus, a ope­ração Lava Jato é uma “faca de dois le­gumes”. Com o PSDB, é lenta e gra­dual. Com o PT, é ágil, lé­pida e es­ba­fo­rida, como se vê na an­te­ci­pação iné­dita do jul­ga­mento do Lula, em ato cla­ra­mente po­lí­tico. Vemos, por­tanto, um pro­cesso es­drú­xulo e ne­fasto: a ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica e uma clara e in­con­tes­tável po­li­ti­zação do ju­di­ciário, como deixa inequí­voco “aquele” mi­nistro que re­cebe di­nheiro pú­blico pra sua fa­cul­dade pri­vada e toma as de­ci­sões que seus amigos re­querem na hora que bem en­tende.

Es­tamos num nível de de­gra­dação... O que acon­teceu no jogo da final da Copa Sul-Ame­ri­cana entre Fla­mengo x In­de­pen­di­ente é a fo­to­grafia do Brasil. Vi­vemos a de­vas­tação e cor­rosão total. Outra no­tícia im­pres­si­o­nante é aquela que mostra que o PCC pre­tende au­mentar em 40 mil o nú­mero de adeptos da sua or­ga­ni­zação.

Tudo isso torna o país muito, mas muito im­pre­vi­sível.

Cor­reio da Ci­da­dania: E, dentro dessa im­pre­vi­si­bi­li­dade, o que é pos­sível vis­lum­brar para 2018 e, a se­guir nesta toada, nos pró­ximos tempos?

Ri­cardo An­tunes: É o se­guinte: a eleição de fato ainda não co­meçou. Raras elei­ções ti­veram nomes que apa­re­ciam no topo das in­ten­ções de voto muito antes e ter­mi­naram eleitos. Tem muita coisa, muita pedra no meio do ca­minho. Já in­di­camos que Lula se be­ne­ficia muito do nível de ele­vação do pau­pe­rismo que o go­verno Temer pro­move. No en­tanto, Lula já mos­trou até onde é capaz de levar sua con­ci­li­ação. E também já mos­trou até onde dá pra chegar mesmo quando as coisas pa­recem dar certo. Re­petir isso pa­rece um pouco tra­gédia, tem algo de farsa, sal­pi­cada com co­média. As di­reitas in­ten­si­fi­carão a de­vas­tação, de Alckmin a Mei­relles, para não falar da aber­ração Bol­so­naro. E, é bom lem­brar, Trump também pa­recia so­mente aber­ração...

Existe ainda uma grande di­fi­cul­dade das es­querdas em buscar al­ter­na­tivas junto aos mo­vi­mentos po­pu­lares, a suas mi­li­tân­cias. Talvez o exemplo mais forte hoje das lutas so­ciais seja o MTST. Há uma im­por­tante li­de­rança que se con­so­lida, com res­paldo so­cial e po­lí­tico. Mas há uma enorme di­fi­cul­dade das es­querdas (para além do PT) em cons­ti­tuir pos­si­bi­li­dades pró­prias. Falo do PSOL, PCB, PSTU e de pe­quenos grupos em seu en­torno.

Não há dú­vidas de que, dentre estes, o PSOL é o mais forte elei­to­ral­mente e possui mais pre­sença so­cial. Mas aquela dis­po­sição de pensar o con­junto de forças so­ciais do tra­balho, sin­di­catos, pe­ri­fe­rias, que pu­desse de­sem­bocar num polo al­ter­na­tivo, ainda pa­rece ine­xistir. É com­pre­en­sível, mas uma pena. Porque se as es­querdas pensam de­mais na luta par­la­mentar, não con­se­guem pensar numa ação po­lí­tica ra­dical cujo eixo não seja o par­la­mento ou a ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, mas as lutas so­ciais ex­tra­par­la­men­tares e ex­trains­ti­tu­ci­o­nais. Não adi­anta ga­nhar as elei­ções, como Lula, e se deixar fa­go­citar pelo es­quema do­mi­nante, pelos in­te­resses que de fato do­minam.

Por­tanto, não adi­anta falar em “união das es­querdas” e impor seus nomes es­co­lhidos a partir dos grupos ma­jo­ri­tá­rios de cada um destes par­tidos. O mo­vi­mento de­veria ser outro: buscar den­si­dade nas lutas so­ciais, sin­di­cais e po­lí­ticas a partir das bases. E, a partir destes mo­vi­mentos de massa, criar os ca­nais ne­ces­sá­rios para que eles ad­quiram or­ga­ni­ci­dade, es­tru­tu­ração e, aí sim, apre­sentá-los po­lí­tica e elei­to­ral­mente, porém, com uma for­mu­lação de outro tipo, con­quis­tada a partir das lutas po­pu­lares, sin­di­cais, das co­mu­ni­dades in­dí­genas, dos ne­gros, mo­vi­mentos fe­mi­nistas, am­bi­en­ta­listas, LGBT, pela base e não pelas cú­pulas. É po­si­tivo, dentro deste quadro di­fícil, o exer­cício ini­ciado pelo MTST e pelo Vamos.

O de­safio é enorme, até porque a con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva é global, bra­si­leira, la­tino-ame­ri­cana, como vimos na Ar­gen­tina, em Hon­duras, na re­cente vi­tória elei­toral da di­reita ul­tra­con­ser­va­dora do Chile. Tem o Trump nos EUA, tem a di­reita na Áus­tria, a eleição da França onde um ne­o­li­beral pe­ri­goso apa­receu como freio à ul­tra­di­reita... E não pre­ciso ir a Itália, Hun­gria, Polônia... Essa onda vai passar, mas está aí hoje e é forte.

Em 2010, 2012, es­tá­vamos numa era de re­be­liões que não con­se­guiu se con­verter em era de re­vo­lu­ções. Agora vi­vemos a era de con­trar­re­vo­lu­ções. Ela vai passar, mas as placas tectô­nicas estão ba­tendo. E não sa­bemos que tipo de coisa sairá daí. É evi­dente que cresce a opo­sição nos EUA, o Bernie San­ders era um bom exemplo, cresce a opo­sição na In­gla­terra através do Je­remy Corbyn, no Chile a es­querda pró­xima ao Par­tido Co­mu­nista e ali­ados atingiu 20% dos votos... Na pró­pria França, Jean Luc Me­len­chon se mos­trou elei­to­ral­mente como uma al­ter­na­tiva à es­querda.

Vi­vemos uma nova fase, mais des­tru­tiva, do ideário re­gres­sivo ne­o­li­beral, de com­pleta he­ge­monia do ca­pital fi­nan­ceiro. Nisto, a na­tu­ra­li­zação da mi­séria global é o em­pre­en­di­mento en­fei­xado pelas classes do­mi­nantes glo­bais. Esta é o quadro, o ce­nário que os ca­pi­tais querem cons­truir.

Por isso hoje há um mo­vi­mento pe­sa­dís­simo, como mostra com muita com­pe­tência a Vir­gínia Fontes, de grupos em­pre­sa­riais que vão fazer “tra­balho vo­lun­tário” em es­colas pú­blicas pra in­tro­jetar o vírus da ânsia por acu­mular desde a mais tenra idade. Lem­brando um ar­tigo ge­nial do jovem Gramsci, “as es­colas não podem ser in­cu­ba­doras de pe­quenos mons­tros”. O vo­lun­ta­rismo em­pre­sa­rial nas es­colas pú­blicas é pra fazer das cri­anças “pe­quenos mons­tros”. E até na TV vemos gente mos­trando como cri­anças devem aprender a poupar e a acu­mular desde cedo. É o que es­tamos vi­vendo, ainda que não será eterno. Logo en­tra­remos no­va­mente num pe­ríodo muito tenso e de muita con­fron­tação.

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda sobre a es­querda e sua in­ca­pa­ci­dade de aglu­tinar um pro­jeto de massas, há muita gente afi­nada a suas ideias fora desses par­tidos e grupos mais tra­di­ci­o­nais, mas que não se apro­xima, e não são apenas anar­quistas. Não es­ta­ríamos di­ante de um mo­mento onde elas estão um pouco atra­sadas em al­guns de­bates, apa­re­cendo apenas re­a­ti­va­mente e, em muitos casos, não se mos­trando tão an­tis­sis­tê­mica?

Ri­cardo An­tunes: Passa também por isso, di­re­ta­mente. Se a maior parte do oxi­gênio das “es­querdas de es­querda” é, em úl­tima ins­tância, des­ti­nado para ga­nhar o pro­cesso par­la­mentar e elei­toral, elas jogam no campo que Mészàros já con­si­de­rava a “linha de menor re­sis­tência”. O bo­xe­ador mais forte chama o bo­xe­ador mais fraco pra lutar no campo dele. Os ca­pi­tais chamam as opo­si­ções, in­clu­sive de es­querda, a lu­tarem no campo onde o ca­pital do­mina, isto é, o par­la­mento, as ins­ti­tui­ções bur­guesas.

A ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade bra­si­leira está em de­com­po­sição, nas três es­feras. Mas há também, e é muito im­por­tante en­fa­tizar, um mo­saico de mo­vi­mentos so­ciais, sin­di­cais, das pe­ri­fe­rias, das co­mu­ni­dades in­dí­genas, ne­gros, LGBTs, fe­mi­nistas, am­bi­en­ta­listas... Mas essa mi­ríade de des­con­ten­ta­mentos deve se es­forçar ao má­ximo para buscar as in­ter­co­ne­xões fortes entre gê­nero e classe; entre etnia/raça e ex­plo­ração do ca­pital; entre a ju­ven­tude de­sem­pre­gada e sua con­dição de classe, entre a questão am­bi­ental e as lutas an­ti­ca­pi­ta­listas, entre tantas ou­tras.

Um outro modo de vida torna-se um im­pe­ra­tivo so­ci­etal da classe tra­ba­lha­dora am­pliada e do con­junto dos mo­vi­mentos so­ciais. O MTST, por exemplo, vem mos­trando que a ar­qui­te­tura das ci­dades bra­si­leiras é de des­truição so­cial. O MST há dé­cadas luta pela terra, pela pro­dução sem trans­gê­nicos e sem agro­tó­xicos e as co­mu­ni­dades in­dí­genas com­batem pela pre­ser­vação de suas terras, contra as ten­ta­tivas de Temer para li­berar a ex­plo­ração dos ga­rimpos. Estas são as lutas vi­tais, ponto de par­tida para uma po­lí­tica ra­dical de outro tipo.

Em sín­tese: não se criam al­ter­na­tivas or­gâ­nicas de um dia para outro. Vi­vemos uma fase de tran­sição dentro do ca­pi­ta­lismo, para uma fase ainda mais des­tru­tiva. Vi­vemos uma fase de ra­di­ca­li­zação e agu­ça­mento da des­truição ne­o­li­beral e do saque fi­nan­ceiro. É por isso que o cha­mado “es­tado de di­reito” que hoje vi­gora é também um “es­tado de ex­ceção”, só pode so­bre­viver exer­ci­tando os me­ca­nismos de ex­ceção. E faço o pa­rên­tese para lem­brar que o “es­tado de di­reito” aqui men­ci­o­nado nem de longe me pa­rece o su­pras­sumo so­ci­etal.

Num quadro com essa mol­dura não posso pegar mi­nhas fer­ra­mentas fra­gi­li­zadas e jogá-las fora. Porque aí fico sem nada, de vez. Re­parem que o ca­pital não joga ne­nhuma de suas fer­ra­mentas, mesmo as pi­ores, na lata do lixo. Apa­re­lhos mi­diá­ticos, re­li­gi­osos, re­pres­sores, es­ta­tais, par­la­men­tares... Ele não joga ne­nhum desses apa­re­lhos fora. Eles con­fi­guram o lócus da do­mi­nação bur­guesa. E as lutas so­ciais, ope­rá­rias e po­pu­lares têm fun­da­men­tal­mente três fer­ra­mentas: seus sin­di­catos, seus par­tidos e seus mo­vi­mentos so­ciais.

Os sin­di­catos têm um mé­rito: quando são de classe e de­fendem de forma in­tran­si­gente suas ca­te­go­rias re­pre­sen­tadas. Essa é sua força, mas é também o seu li­mite. Os sin­di­catos dos pro­fes­sores, dos me­ta­lúr­gicos, dos ban­cá­rios, podem lutar pela de­fesa dos di­reitos de seus tra­ba­lha­dores. Mas nem sempre con­se­guem pensar a ca­te­goria que re­pre­sentam como parte de um todo, da to­ta­li­dade da classe tra­ba­lha­dora. E fre­quen­te­mente res­valam para uma de­fesa ex­ces­siva da ca­te­goria. A de­fesa da re­dução dos im­postos da in­dús­tria au­to­mo­bi­lís­tica é exemplo de sin­di­ca­lismo com com­po­nentes cor­po­ra­tivos, que de­fende a sua ca­te­goria, tem di­fi­cul­dade de vi­su­a­lizar o con­junto.

Os par­tidos: qual sua força? Se formos ver PSOL, PCB, PSTU, todos dirão que são so­ci­a­listas, an­ti­ca­pi­ta­listas e de­sejam uma mu­dança pro­funda. Será di­fícil en­con­trar al­guém que veja no ca­pi­ta­lismo algo hu­mano, so­cial. Qual a força deles? Eles sabem, em li­nhas ge­rais, a di­reção da es­trada que deve ser to­mada. Qual o li­mite deles? Serem muito vol­tados à ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, ca­len­dá­rios elei­to­rais, tempo de te­le­visão, como ter mais voto, e se co­meçam a ser cri­ti­cados por ra­di­ca­li­zarem, logo co­meçam a fazer con­ces­sões, amo­lecer e por fim se en­fra­quecem. Isso não vale para todos, mas nin­guém está imune a estes riscos. Basta crescer para ver como eles apa­recem. A sua força é o pro­jeto de fu­turo, a fra­queza a vida co­ti­diana, o dia a dia.

Os mo­vi­mentos so­ciais: mos­tram muita força na vida co­ti­diana. O MST faz ações im­por­tantes, luta pela re­forma agrária, faz ocu­pa­ções, luta contra os trans­gê­nicos, pes­ti­cidas, con­segue ima­ginar uma pro­dução não des­tru­tiva. O MTST, com uma pu­jante atu­ação hoje, tem uma questão muito con­creta: a ar­qui­te­tura da des­truição joga os po­bres para a vida na lata de lixo nas ci­dades. Só há um jeito de sair das “ha­bi­ta­ções” onde a po­pu­lação pe­ri­fé­rica é ati­rada: ocupar. E há ou­tros mo­vi­mentos, do passe livre, de ju­ven­tude pe­ri­fé­rica que es­tuda, contra bar­ra­gens, co­mu­ni­dades in­dí­genas que lutam pela pre­ser­vação da água, do solo, da na­tu­reza... É a força dos mo­vi­mentos so­ciais. Não po­demos es­perar que, en­tre­tanto, ofe­reçam um de­senho de so­ci­e­dade do fu­turo, an­ti­ca­pi­ta­lista e so­ci­a­lista, salvo aqueles que têm uma es­cola, uma for­mação para tal, como o MST tem.

Essas forças todas não são ex­clu­dentes e, sim, com­ple­men­tares. Buscar a or­ga­ni­ci­dade entre elas, o que elas apre­sentam de de­ci­sivo, que é o sen­ti­mento que os as­sa­la­ri­ados po­bres têm da vida co­ti­diana: quais as ques­tões vi­tais do nosso tempo, que tocam na cons­ci­ência da po­pu­lação tra­ba­lha­dora. Você acha que a po­pu­lação está pre­o­cu­pada com a pró­xima eleição de ve­re­ador? Por favor. Se o voto não fosse obri­ga­tório nin­guém li­gava. Não que eu seja contra, mas digo que é uma piada os par­tidos gas­tarem tanta energia dis­pu­tando elei­ções e fa­zendo cam­pa­nhas pra ve­re­ador, de­pu­tado etc. sem um pro­grama an­ti­ca­pi­ta­lista que toque nas ques­tões vi­tais.

Não adi­anta falar do so­ci­a­lismo em termos abs­tratos. É pre­ciso falar das ques­tões vi­tais de hoje, dando con­cre­tude à pro­posta so­ci­a­lista. Se não formos ca­pazes de fazer isso, os mo­vi­mentos so­ciais e lutas po­pu­lares farão, mas num tempo maior. É o de­safio, talvez, mais cru­cial.

Por fim, tra­tamos muito das di­fi­cul­dades das es­querdas. Mas tem o lado de lá. Quem ima­gina que o ca­pi­ta­lismo vai bem, obri­gado, sem ten­sões, tam­pouco tem ideia do que fala. Porque a in­cons­tância se tornou traço do­mi­nante do nosso tempo. Tudo que pa­rece só­lido pode der­reter. Sig­ni­fica que não temos pre­vi­si­bi­li­dade e cer­tezas his­tó­ricas. A única cer­teza é que “a his­tória é a re­a­li­zação co­ti­diana de em­bates fun­da­men­tais entre classes so­ciais que se an­ta­go­nizam”.

A ideia de que a classe tra­ba­lha­dora acabou é ri­sível. Não há ne­nhum bur­guês que não saiba que é bur­guês. O Lu­kács diria que é em­pi­ri­ca­mente cons­ta­tável pela bur­guesia a exis­tência do ser bur­guês e da con­dição bur­guesa de classe. O que não temos con­se­guido en­tender é que a con­tra­dição do nosso tempo é, por um lado, a con­tra­dição entre o ca­pital so­cial total versus a to­ta­li­dade do tra­balho so­cial. É o de­safio cru­cial. A to­ta­li­dade do tra­balho so­cial é a luta dos as­sa­la­ri­ados, da classe tra­ba­lha­dora no sen­tido mais pre­ciso, a luta das classes tra­ba­lha­doras, também da­queles que tra­ba­lham, mas não pro­pri­a­mente as­sa­la­ri­ados, como cam­po­neses, in­dí­genas, ri­bei­ri­nhos, e as lutas so­ciais dos mo­vi­mentos dos ne­gros, mu­lheres, am­bi­en­ta­listas, LGBT... Mas é pre­ciso co­nectá-las com um olhar para além do ca­pital.

O de­safio está aí. Se não ti­vemos, no con­junto de ações, este olhar e estes pontos de co­nexão tudo fi­cará mais di­fícil.

Fonte: Correio da Cidadania

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