O ativista socioambiental Miguel de Barros conta a experiência de movimentos sociais e comunitários na Guiné Bissau na gestão sustentável de florestas e ecossistemas.
Por Gabriel Brito
Enquanto vivemos dias de profundo desencanto com o sistema representativo e mesmo entidades que ao longo dos anos representaram os interesses sociais e democráticos mais urgentes, novas experiência e articulações eclodem. Um exemplo disso é trazido pelo sociólogo e ativista socioambiental Miguel de Barros, que nesta entrevista conta a experiência de movimentos sociais e comunitários da Guiné Bissau na gestão sustentável de florestas e ecossistemas onde vivem.
“Quando estive em março na Maré (Rio de Janeiro), no âmbito da Internacional das Periferias que realizou seu primeiro Seminário Internacional, decidimos criar uma rede internacional em prol de uma visão convergente entre as organizações, movimentos, coletivos e pessoas que dele participaram sobre as periferias e seu lugar no mundo contemporâneo”, contou ele, que esteve no Brasil por conta do recém-finalizado I Seminário Internacional Tecendo redes antirracistas: África(s), Brasil, Portugal (Colonialidade e descolonialidade em debate).
“A Guiné-Bissau vive, infelizmente, uma situação politicamente parecida com o Brasil, onde uma elite econômica corrupta açambarcou o poder político, sem compromisso com a transformação de um país cheio de potencial natural, cultural e econômico, apoiado internacionalmente por alguns países na região da África ocidental com interesses nos recursos naturais da Guiné-Bissau, alimentando uma agenda oculta do regime”, explicou.
Além de contar um pouco das similaridades entre os países representados no seminário, fala um pouco dos processos sociais e econômicos africanos, do agressivo papel da China nos países deste continente, inclusive como parte dos obstáculos que movimentos locais têm enfrentado, da cultura sustentável em tempos de transgênicos e, por fim, do proeminente papel desempenhado pelas mulheres na preservação da natureza.
A entrevista completa com Miguel de Barros pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, você já esteve no Brasil com um grupo de pesquisadores internacionais para um encontro sobre a realidade das periferias e agora retornou para palestrar no I Seminário Internacional Tecendo redes antirracistas: África(s), Brasil, Portugal (Colonialidade e descolonialidade em debate). Que articulação se deu na concepção destas iniciativas?
Miguel de Barros: Obrigado pela entrevista. É com muito agrado que voltei ao Brasil neste ano, num momento de grandes lutas e desafios enfrentados pelos movimentos sociais na procura de emancipação dos povos, da salvaguarda da dignidade e da cidadania ativa e plena. A realidade sociopolítica hoje enfrentada pelo Brasil não pode ser vista apenas como problema brasileiro, mas questões mundiais da agenda pública que deve servir de mobilização dos povos do mundo.
Essa dimensão de assumir os desafios pelo que passa o Brasil constitui aquilo que o fundador da nacionalidade guineense e cabo-verdiana, Amílcar Cabral, dizia: “(..) o que quer o Homem africano é ter a sua própria expressão política e social – independência. Quer dizer, a soberania total do nosso povo no plano nacional e internacional, para construir ele mesmo, na paz e na dignidade, à custa dos seus próprios esforços e sacrifícios, marchando com os seus próprios pés e guiado pela sua própria cabeça o progresso que tem direito como qualquer povo do mundo!”
As conquistas verificadas no Brasil com pautas para promoção de igualdade e equidade a favor dos povos negros, pobres, mulheres, nas matérias de insegurança alimentar e aumento da renda, foram das mais avançadas deste século ao nível dos países do Sul. Essas mudanças ocorridas no Brasil influenciaram não só a autoestima dos povos excluídos, também impulsionaram políticas públicas nos países menos avançados economicamente. Ao nível cultural, a mobilidade entre produtores e criadores artísticos aumentou e os centros culturais brasileiros pelo mundo passaram a ter programação mais intensa e multicultural integrando os povos.
Essas mudanças na abordagem do espaço público e no protagonismo de atores ditos “não naturais” do espaço público brasileiro constituiu uma ameaça não só no nível da ordem interna, mas também dentro do sistema de valores neocoloniais, o que ficou claro após a última cúpula dos BRICS, que consagrou a criação de um modelo alternativo ao financiamento ao desenvolvimento, como postula o FMI. Neste sentido, o que se vive hoje no Brasil, a vigência de um governo ilegítimo e golpista, é a consequência da reação do medo face ao monopólio de uma economia financeira neocolonialista que procura encontrar na aliança entre setores financeiros, mídia e alguns movimentos religiosos para a manutenção da tradição colonial.
Por isso, quando estive em março na Maré (Rio de Janeiro), no âmbito da Internacional das Periferias que realizou seu primeiro Seminário Internacional, decidimos criar uma rede internacional em prol de uma visão convergente entre as organizações, movimentos, coletivos e pessoas que dele participaram sobre as periferias e seu lugar no mundo contemporâneo.
Para nós é fundamental o fortalecimento, mobilizarmos para o reconhecimento de potências inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e manifestações culturais e de comunicação contra-hegemônicos, próprios de cada território. Felizmente está a acontecer. Esse seminário “tecendo redes” embora não integrado dentro de tal movimento, constitui para mim a abordagem e a filosofia que defendemos, porém, com a particularidade de ser dentro do espaço acadêmico, abrangendo todos os países da língua oficial portuguesa.
Uma das conclusões mais fortes deste encontro é a assunção de uma lógica “contracolonial”, que permite um enfrentamento no qual a produção do conhecimento científico deve ter utilidade social na emancipação dos povos e na mobilização das sociedades para as transformações estruturais desejáveis, produtoras de justiça e igualdade social em todos os níveis e para todos os povos.
Correio da Cidadania: Como as experiências das delegações africanas podem contribuir para as discussões sobre os temas antirracistas e violência urbana, especialmente como é o caso do Brasil, onde os jovens afrodescendentes das periferias são os mais vulneráveis e as maiores vítimas?
Miguel de Barros: O poder político no Brasil não tem sido capaz de assegurar condições de vida dignas para pessoas que vivem nas favelas. Isso resulta do fato de uma maioria com mentalidade colonial querer ainda “controlar” a maioria da população e que constitui o setor mais produtivo, criativo – para eles uma ameaça ao status quo. Nesta base, o extermínio da população que vive nas favelas não é senão uma ação deliberada do Estado para impor uma cultura de medo e de recalcamento a essa potência humana, econômica e cultural.
Hoje, vimos o “modelo brasileiro” da violência chegar a países como Cabo Verde (Cidade da Praia) ou Nigéria (Lagos) que importaram inclusive modelos repressivos de uma polícia corrupta, assassina e que goza de forte cobertura do setor judicial e político, sendo que estes dois estão cooptados pelo crime organizado.
Porém, a nossa fala tem sido baseada na promoção de lógicas de convivência mais comunitárias e sustentáveis de reciprocidades e cumplicidades das sociedades africanas, onde ainda podemos encontrar culturas horizontais, de dom da terra e com formas de governança baseadas em corresponsabilidade e cogestão de espaços e recursos naturais e culturais, nos quais os jovens não só são a esperança e o futuro, mas são chamados a desempenharem papéis cruciais dentro do sistema participativo e inclusivo nas tomadas de decisão.
Deste modo, estamos a querer dizer que os modos de vida projetados sobre os jovens pobres, negros e indígenas nas sociedades como a brasileira devem ser capazes de superar futuros incertos para a concretização de oportunidades de participação e integração social, rasgando horizontes de realização pessoal, mantendo viva a plausibilidade de futuros desejados. Isso significa mais educação, mais economia, mais cultura e mais cidadania.
Correio da Cidadania: Que experiências vocês de Guiné Bissau compartilharam no encontro?
Miguel de Barros: A Guiné-Bissau vive, infelizmente, uma situação politicamente parecida com o Brasil, onde uma elite econômica corrupta açambarcou o poder político, sem compromisso com a transformação de um país cheio de potencial natural, cultural e econômico, apoiado internacionalmente por alguns países na região da África ocidental com interesses nos recursos naturais da Guiné-Bissau, alimentando uma agenda oculta do regime.
Mas uma boa possibilidade de partilha que a Guiné-Bissau traz é de ser um país jovem com uma democracia recente, na qual os jovens acreditam e apostam na educação, democracia e desenvolvimento e sustentabilidade. Cada vez mais estão a se inscrever e procurar serem os principais agentes de mobilização social e de ação cívica. Têm liderado movimentos de contestação pública ao regime, denunciam golpes, mobilizam nas ruas, procuram estar vigilantes relativamente à governança de setores vitais da sociedade.
Ano passado, coordenei uma publicação científica com o título “Juventude e Transformações Sociais na Guiné-Bissau” no âmbito do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), podemos dar conta de variadas formas de organização social do movimento juvenil portadoras de inventividade e empoderamento, na qual os rappers, por exemplo, procuram resgatar, atualizar e desenvolver uma cultura crítica, segundo Cabral, baseada na história e nas relações da própria luta, promovendo a constante consciência política do povo (de todos os grupos sociais), do patriotismo enquanto condição para fazer a história da emancipação da sua sociedade.
Correio da Cidadania: O que pensa, de modo geral, dos conceitos dominantes a respeito dos modelos econômicos frente à questão ambiental e sua relação com direitos humanos?
Miguel de Barros: Os progressos alcançados no campo ambiental, infelizmente foram à custa da valorização dos saberes ancestrais e tradicionais, que permitiram salvaguardar o patrimônio natural que hoje temos. O modelo colonial assentou o seu crescimento à custa de territórios ocupados e explorados que dizimou culturas, tradições, territórios e recursos. Esse modelo extrativista empobreceu nações e ficou insustentável com o fim formal da colonização.
Entretanto, o fim da colonização não implicou o fim do modelo econômico colonial. Construiu-se uma “visão do Norte”: desenvolvidos e produtores de tecnologia; e Sul: subdesenvolvido e fornecedores de matéria-prima, como as antigas colônias. Isso teve como consequência o aumento da dependência dos países do Sul em relação ao Norte e o reforço de uma visão financeira da gestão dos recursos naturais e do ambiente. Gerou conflitos fortes nos países africanos, por exemplo, República Democrática do Congo, Gabão e Nigéria, um dos mais ricos do continente africano, cujas lideranças lutam pelo controle dos recursos naturais para servir de fiel parceiro à antiga potencia colonizadora, mas sem criar condições de transformação de condições de vida de quem produz ou de partilha das vantagens, menos ainda de geração de capacidade interna de transformação.
Em consequência, a saúde dos recursos ambientais, dos serviços dos ecossistemas e das populações foi degradada, esses países estão hoje mergulhados em crises políticas internas graves e profundas, com risco de colapso.
Numa outra linha, a emergência dos BRICS não melhorou muito o panorama, sobretudo com comportamentos verificados no plano nacional de países como o Brasil e a Índia, cuja sociedade tem um enorme contingente populacional e servidora dos recursos naturais, cujas situações de expropriação de terras produtivas e agressões aos camponeses estão a acontecer a favor do lobby florestal, da especulação imobiliária e da indústria mineira, numa clara afronta aos diretos de propriedade e direitos humanos de proprietários tradicionais de espaços que antecederam a própria existência do Estado moderno tal e qual conhecido hoje.
Isso ainda torna-se mais preocupante quando encontramos a China como um dos países emergentes que mais está a colonizar África, alienando governos e presidentes com “doações” em infraestruturas precárias, a troco de devastação dos recursos pesqueiros e florestais. O exemplo é o meu país: o que a China lucrou com corte ilegal e abusivo das florestas só em exportação direta da Guiné-Bissau correspondeu ao valor do investimento feito pela China na construção do palácio da Assembleia Nacional Popular (parlamento), cuja edificação foi feita apenas com equipamentos e mão de obra chineses em degradação. Esta situação é igualmente homóloga à do Brasil que, por exemplo, aproveitando as relações de fraternidade com os países africanos de língua oficial portuguesa, como é o caso de Moçambique, está a fazer grilagem de grande extensões de terra para produção em monocultura e uso de transgênicos na produção.
Ou seja, isso mostra que até podem mudar os protagonistas, de esquerda ou de direita, mas se o modelo econômico mundial baseado no extrativismo e na especulação financeira não se alterar, os modos de relacionamento com os recursos naturais e ambientais jamais poderão ser duráveis, pois a sustentabilidade não pode ser vista apenas no campo de fluxos financeiros, mas sim na capacidade de conservação, provisão de serviços sociais e culturais, capacidade de geração de renda ecologicamente aceitáveis, utilização de tecnologias adaptadas e não colonizadoras e, consequentemente, o respeito pelos valores que cada pessoa associa na sua relação com o espaço natural.
Correio da Cidadania: É possível uma economia verdadeiramente “sustentável” dentro dos marcos do capitalismo, isto é, da gestão lucrativa de biomas, ecossistemas e locais específicos onde o capital ficar responsável pela sua exploração econômica?
Miguel de Barros: Com certeza não é possível, e não se trata de uma retórica e nem utopia. As experiências de economia justa baseada em trocas, produtos, mercados e serviços solidários é hoje uma realidade não só nos países cuja capacidade econômica permitiu injetar contribuições públicas para o terceiro setor, mas também em zonas periféricas e semiperiféricas que têm adotado forma de vida em comunidades que procuram maior sustentabilidade.
É o caso, por exemplo, do Brasil, onde existe uma rede de Ecovilas com enorme potencial de altermundialismo e que conseguem promover permacultura, integrando métodos holísticos para planejar, atualizar e manter sistemas de gestão ambiental sustentáveis, socialmente justos e financeiramente viáveis. Aliás, pude visitar duas experiências aqui nos arredores de Brasília, o Sítio Nós Na Teia e Aldeia do Altiplano, exemplos de locais há 15 e 25 quilômetros de Brasília, onde encontramos pessoas em comunidades que estão na vanguarda de modos de vida sustentáveis. Promovem produção biológica e integrada, agroflorestal, bioconstrução, sistemas de aproveitamento e distribuição da água das chuvas, uso de energia alternativa e feiras para troca dos produtos.
O desafio será ampliar cada vez mais esta forma de estar com outras comunidades e outros povos. Por exemplo, na África já temos comunidades étnicas que vivem em harmonia com espaços e recursos naturais. É o caso, por exemplo, dos Bijagós na Guiné-Bissau, que vivem num arquipélago de 88 ilhas e ilhéus dos quais apenas 23 são habitadas. Desenvolvem formas de gestão do espaço natural através de um sistema de sacralização de recursos marinhos e florestais estratégicos fundamentais para sua sobrevivência como um povo. Esse mecanismo tem permitido durante séculos financiar um sistema de segurança social e transmissão de saberes e valores que inspiraram a criação das áreas protegidas de gestão comunitária com a participação de comunidades tradicionais locais na cogestão desses territórios na Guiné-Bissau.
Isso significa que quanto mais partilhadas tais experiências solidárias entre atores, mais podemos pensar em modelos de sustentabilidade, com processos de transferibilidade de competências e ativos como forma emancipação e superação de dependência de mercados e estilos de vida mais perniciosos.
Correio da Cidadania: Como se posiciona, de modo geral, governo e sociedades guineenses a respeito das disputas em torno da ideia de economia versus sustentabilidade?
Miguel de Barros: Claude Ake define bem o que se passa na África e hoje é o retrato do que vivemos na Guiné-Bissau. Segundo este pensador ganês, o que vivemos é uma crise de simultaneidade, ou seja, não sabemos se é a democracia que leva ao desenvolvimento ou se é desenvolvimento que leva à democracia. Mas a verdade é que aspiramos todos nos desenvolver sem consensos em torno das nossas necessidades e prioridades, e sem cultura democrática que permita com que o exercício do poder político se assente na prestação de serviço à sociedade.
As instituições do Estado são frágeis e descontínuas. Os servidores do Estado servem-se do Estado sem garantir serviços que favoreçam a satisfação das necessidades básicas da população. Daí que a abordagem dos governos tem sido bastante imediatista, tendo em conta a abordagem de necessidade, mas sem exame das prioridades e capacidade de mobilização de recursos econômicos e financeiros que geram impacto não só na macroeconomia, mas também na geração de emprego, na promoção de investimento público e na melhoria das condições de vida das mulheres em terem parto seguro, das crianças em terem escolas sem greves, de abastecimento à energia elétrica e acesso à agua potável, enfim, até nos pagamentos de salários regulares sem “apoio” internacional, recurso da venda de títulos de Tesouro.
Em contraponto, o investimento privado é nulo. É centrado apenas num único produto de exportação, sazonal e produzido em regime de monocultura, castanha de caju. Mas esse mesmo setor privado é o único que beneficia um sistema de crédito amórfico, são os que detêm dívidas com o Estado e que depois integram partidos políticos e estruturas presidenciais para fugir do fisco e não cumprir com as suas obrigações.
Resultado: o país com forte potencial natural e de desenvolvimento não consegue transformar em grande escala os seus produtos, recorre aos intermediários estrangeiros (China na exploração de madeira; União Europeia na pesca; Rússia na exploração mineira; Índia na exploração do caju), e deste modo aliena todo o seu potencial de crescimento e desenvolvimento sustentável.
O que a sociedade civil, em particular algumas ONGs, têm chamado atenção, como é o caso da Tiniguena – Esta Terra é nossa, organização que dirijo há três anos, fundada ha mais de 26 anos por uma Assistente Social que trabalhou com Paulo Freire na educação em língua materna das comunidades rurais, Augusta Henriques, a quem aproveito para homenagear o seu combate, é que o Estado deve mudar a sua lógica de desenvolvimento sob pena de empobrecer o país e esgotar os recursos e gerar maior dependência externa. Para efeito, propomos e desenvolvemos ideias de investimento em quatro setores:
- Reestruturação do sistema produtivo: significa o investimento na segurança alimentar e nutricional através de incremento de políticas públicas que permitem apoio direto à agricultura familiar camponesa na promoção e diversificação dos potenciais de produção (rizicultura, horticultura, fruticultura, silvicultura);
- valorização socioeconômica dos produtos da biodiversidade: recursos pesqueiros, marinhos e florestais: criamos há mais de 10 anos o slogan “kil ki di nos ten balur”, ou seja, o que é nosso tem valor, com aposta da linha dos produtos da terra, e tem gerado grande impacto na promoção de criação de autoestima e de estímulo à produção dos atores socais;
- educação ambiental e para a cidadania: temos apostado numa escola de pensamento e de ação desde a fase de adolescência com as escolas e que permita aos guineenses descobrirem o seu potencial natural e cultural, a sua história, mas também os desafios que enfrenta. Desde 1993, com lema “conhecer para amar, amar para proteger” estamos a permitir com que a geração de guineenses seja militante do desenvolvimento do seu país e produtora de uma cidadania ativa contra o estado das coisas;
- por último, governança participativa, na qual temos tido ações de mobilização das comunidades rurais na gestão direta do seu território, como são casos da animação do processo de cogestão da área marinha protegida comunitária das ilhas Urok e na legalização de terras comunitárias dos agricultores no sul da Guiné-Bissau, mas sobretudo a implicação da Sociedade Civil na monitorização e fiscalização das políticas públicas na matéria de exploração dos recursos naturais (floresta, pesca, minas e petróleo).
Assim acreditamos que estamos a criar possibilidades não só de influência de políticas favoráveis ao desenvolvimento durável, mas simultaneamente forjar uma nova geração mais capaz e comprometida com a sustentabilidade da sua sociedade. É essa a visão na qual estamos a trabalhar para que seja apropriada pelo Estado.
Correio da Cidadania: Há uma ligação entre a disputa pela natureza e suas riquezas e velhas formas de discriminação, como o racismo, tema central do encontro que debatemos no começo da entrevista?
Miguel de Barros: Esse fenômeno existe, sobretudo, em países como Brasil e Índia ou África do Sul, mas também nos modelos projetados pela atual China capitalista e expansionista, onde modos de exploração de recursos naturais têm cor da pele (índios, negros e minorias étnicas), implica expropriação de grandes extensões de terras, exploração da mão de obra e precariedade laboral, bem como exposição a riscos de doença e ainda repressão policial. No fundo, transformam os donos da terra em operários nas suas próprias terras sem se beneficiarem do que produzem, assim como da mais valia do que produzem, além de empobrecer as terras, as culturas, os saberes da tradição local dos povos indígenas.
Muitas das vezes, esses processos são acompanhados com sistema de endividamento de camponeses que depois dos solos ficarem mais pobres, são obrigados a comprarem em regime de crédito fertilizantes químicos e sementes transgênicas com baixa capacidade de reprodução e algumas vezes para culturas não alimentares, como é o caso de algodão, criando-lhes a ilusão de um mercado que não dominam. E que assim torna-os completamente dependente dos novos “donos” das suas antigas terras e deste modo nunca mais sair de um sistema escravocrata.
Correio da Cidadania: Qual é a experiência a ser compartilhada sobre o tema “Gestão Comunitária de Florestas” e políticas públicas?
Miguel de Barros: Acreditamos que a gestão comunitária das florestas é um dos meios mais eficazes da conservação dos espaços e recursos florestais. Por exemplo, o meu país conserva ao sul as últimas manchas de florestas subtropicais da África ocidental - a Cantanhez. Florestas de Cantanhez onde os guerrilheiros do PAIGC estiveram e resistiram durante 11 anos na luta contra o colonialismo para a independência nacional. Na década de 2000 foi elevada ao estatuto de parque nacional com comunidades locais residindo no seu interior.
Muitos não compreenderam por que, mas o segredo era ter sido considerada patrimônio a preservar, correspondia a 14 florestas sagradas que a etnia local usava como santuários, espaços de rituais e fontes de vida. Ou seja, foi graças ao saber cultural desses povos que se conseguiu preservar aquele que é um dos maiores patrimônios da África ocidental. Com isso, aprendemos que a comunidade deve estar no centro da gestão comunitária, devido a funções sociais e políticas que a sua cultura e o seu saber desencadeiam.
Deste modo, o nosso apelo é apenas reforçar esses mecanismos dentro da melhoria do quadro legal florestal com vista ao reconhecimento dos direitos das comunidades locais no seu controle e gestão, reforçar as competências e capacidades educativas, técnicas, operativas nas instituições públicas descentralizadas, nas organizações comunitárias implicadas na gestão florestal e nas comunidades e, por fim, criar oportunidades econômicas, de emprego e serviços às comunidades locais através de produção, transformação e valorização dos produtos florestais não lenhosos e do ecoturismo florestal. Esta é uma aprendizagem que podemos partilhar com o mundo.
Correio da Cidadania: Qual é o papel da mulher de Guiné Bissau na Gestão Comunitária de Florestas e na sociedade Guineense?
Miguel de Barros: As mulheres constituem o baluarte da conservação florestal, a reserva na salvaguarda dos saberes sobre conhecimento de propriedades das essências florestais e dinamizadoras da economia florestal, através de modos de exploração que respeitem o calendário natural da regeneração dos recursos.
Vou dar um exemplo: na zona norte da Guiné-Bissau, uma confederação camponesa iniciou uma experiência piloto de gestão comunitária das florestas devido à forte ameaça dos chineses, que invadem as suas florestas com autorização de licenças emitidas pela direção geral da floresta.
Depois de darem conta que os homens não eram capazes de enfrentar os chineses, as mulheres dessa confederação entraram nas matas, aprisionaram todas as motosserras dos invasores e ainda confiscaram todas as árvores curtas, exigiram indenização das árvores cortadas e proibiram os delegados florestais de acesso a suas zonas de floresta comunitária. Quando fomos perguntar o por que dessa medida tão drástica, uma delas respondeu: se um ladrão assalta um banco, qual é a medida que lhe é aplicada?! Surpreendente! Ou seja, a visão que essa mulheres têm da gestão florestal é, sobretudo, todo um modelo de promoção de sustentabilidade, geração de renda com base na solidariedade e liderança na sua governança.